Uso de animais em pesquisas para cosméticos é criticado
Entretanto, especialistas argumentam que ainda não há métodos substitutivos no Brasil.
Se o uso de animais em testes para medicamentos é refutado por defensores dos bichos, a utilização em pesquisas para produção de cosméticos é ainda mais criticada. “Nesses casos, a defesa é muito difícil, uma vez que não se trata de uma questão de saúde, como no caso da produção de fármacos. A vida dos animais fica muito aviltada por motivos torpes, que são os interesses comercial e lucrativo”, opina a coordenadora da ONG Associação Cão Paixão em Defesa dos Animais, Marimar Poblet.
O Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia responsável por validar e regulamentar experimentos com animais no País, negou, em março de 2014, o banimento do uso de bichos em pesquisas de cosméticos. O órgão, porém, aprovou a substituição progressiva dos testes com animais, não somente para cosméticos. De acordo com o Concea, os centros de pesquisa terão cinco anos para encerrar as pesquisas com animais, depois da validação de cada método alternativo.
Sobre o prazo de cinco anos, o Concea afirma que o "período é necessário para que a infraestrutura laboratorial e os recursos humanos estejam adequados e capacitados para a realização dos ensaios substitutivos”. O órgão também diz que “os métodos alternativos devem ser executados corretamente para não colocar em risco a saúde humana, a dos próprios animais e o meio ambiente”.
Cientistas pedem fim dos testes de cosméticos com animais
Em uma carta aberta divulgada em março de 2014 e direcionada ao Concea, 17 cientistas brasileiros e estrangeiros manifestaram-se a favor da proibição, em todo o País, do uso de animais em testes para cosméticos. Os profissionais que apoiam essa proibição são professores, cientistas da área biomédica e toxicologistas de universidades e institutos de pesquisa.
"No mundo inteiro, cresce a frustração com os métodos de avaliação de segurança baseados em testes com animais. Muitas dessas abordagens nunca foram atualizadas desde os anos 1930, são caras e demoradas, informam muito pouco sobre o modo de ação das substâncias no corpo humano e frequentemente não conseguem prever reações humanas em condições reais”, afirma um trecho do documento.
Para o grupo, a proibição definitiva “incentivará o interesse e investimentos em métodos alternativos no Brasil, como foi o caso na União Europeia, e será um sinal claro de que a hora para progredir para além de testes com animais já chegou”. Testar cosméticos em animais é proibido em toda a União Europeia e também em Israel e na Índia. Em janeiro deste ano, o Estado de São Paulo introduziu uma proibição total desses testes. São Paulo abriga mais de 700 das 2.300 empresas de cosméticos do País, mais do que qualquer outro Estado brasileiro.
De acordo com a ex-coordenadora e atual integrante da Comissão de Ética no Uso de Animais da Fundação Ezequiel Dias (Funed), Myrian Morato Duarte, o uso de animais ainda é necessário para testes de cosméticos. “Há alternativas para algumas etapas das pesquisas, mas não para todas. Dessa forma, acaba-se usando o animal em todo o processo”, destacou.
Segundo ela, as pesquisas com os bichos são também uma questão de segurança para o ser humano, uma vez que os produtos podem causar danos, como alergias graves. “No entanto, os cosméticos não são essenciais. Se não querem os testes, então estão dizendo que não precisam ter os produtos. Mas as pessoas estão dispostas a abrir mão?”, questiona.
Europa – Segundo Myrian Morato, “é muito relativa essa história de que a Europa baniu os testes”. Ela explica que os únicos produtos que dispensam as pesquisas com animais são feitos a partir de cosméticos que já foram testados. “Mas não existe nenhum princípio ativo que nunca foi testado em animais. Nenhum produto começa do zero sem pesquisas com bichos”, enfatiza. O que é comum é haver grandes companhias que atuam na Europa fazendo testes em outros países, como o próprio Brasil. “O Instituo Royal, por exemplo, que encerrou suas atividades no ano passado, era um dos principais no País que realizava esses procedimentos”, afirma.
Com relação à nova lei de São Paulo, que proíbe os testes com animais, o presidente do Concea, José Mauro Granjeiro, diz que a norma não distingue entre produto cosmético acabado e produto com ingrediente desconhecido. “Da forma como foi aprovada, há risco de a população estar exposta a produtos cuja segurança não esteja adequadamente determinada”, opina.
Myrian Morato acredita que a lei foi “uma medida tomada no calor da mídia”, totalmente fora das discussões cientifica e técnica. “Há vários produtos que têm restrições. Os testes vão acabar sendo feitos em outros Estados brasileiros, o que vai levar ao encarecimento dos cosméticos”, acredita.
Possibilidade de utilização de métodos substitutivos é polêmica
Afinal, não existem meios de se substituir os animais nas pesquisas científicas para cosméticos e fármacos? A resposta está longe de alcançar um consenso. O biólogo Sérgio Greif, que, a pedido do Ministério Público, realizou uma vistoria no Instituto Royal após a invasão de ativistas no laboratório, afirma que sim.
Sérgio conta que há vários métodos científicos alternativos. “A ciência in vitro, que utiliza células animais, tecidos e órgãos em cultura, bactérias e protozoários, é um deles”, exemplifica. Ele também cita, como métodos substitutivos, estudos epidemiológicos e clínicos; autópsias; vivissecção não invasiva, como a tomografia; simulações computacionais e modelos matemáticos; técnicas fisico-químicas, como a cromatografia; e a nanotecnologia.
O presidente do Concea afirma que os métodos alternativos existentes ainda não são capazes de substituir todos os tipos de estudos necessários para se avaliar a segurança de produtos. José Mauro Granjeiro diz estar alinhado, no entanto, com o pensamento do cientista alemão Thomas Hartung, que busca desenvolver métodos para estudos toxicológicos com maior capacidade preditiva, utilizando células humanas estruturadas em tecidos equivalentes ao humano. “Contudo, essa linha de pesquisa está em desenvolvimento e não tem, até o momento, resultados que permitam substituir os estudos em animais em uso atualmente”, destaca.
Uma das metodologias substitutivas mais avançadas no mundo, desenvolvida para a produção de cosméticos, é o teste de irritabilidade de pele, que é um kit de pele humana produzido e comercializado na Europa. Embora protetores de animais defendam a importação desse kit, é comum a alegação de que o produto não chegaria a tempo de ser utilizado no Brasil. “A dificuldade do uso se deve aos prazos de importação e liberação. O kit tem uma validade curta, e se houver demora na sua liberação ou se as condições de armazenamento não forem adequadas, a pele humana produzida em laboratório perde sua viabilidade e o teste pode não funcionar”, esclarece Granjeiro.
Atualmente está sendo feito um estudo sobre a viabilidade de se fazer o teste de pele humana no Brasil. No entanto, a legislação é um dos dificultadores, uma vez que não permite, no País, a comercialização de derivados de seres humanos.
Renama e Bracvam – O presidente do Concea, José Mauro Granjeiro, considera que, embora ainda não seja possível abrir mão dos animais em testes científicos, há uma preocupação brasileira com a busca por métodos substitutivos. Para ele, a prova disso é a recente criação da Rede Nacional de Métodos Alternativos (Renama) e do Centro Brasileiro de Validação de Métodos Alternativos (Bracvam). Ambos foram instituídos em 2012. “O desafio agora é desenvolver as pesquisas e validá-las”, pondera.
A Renama defende a obtenção de informações com o uso de menos animais; a promoção do alívio ou a minimização da dor, sofrimento ou estresse do animal; e a garantia de que um determinado objetivo seja alcançado sem o uso de animais vertebrados vivos. Seu objetivo principal é disponibilizar, por meio de uma rede de laboratórios associados, as metodologias preconizadas pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), observando os princípios de Boas Práticas de Laboratório (BPL). Já o Bracvam tem, entre outros, a prerrogativa de avaliar se algum teste pode ser viabilizado no País. O centro envolve diferentes órgãos, incluindo o Concea.
O biólogo Sérgio Greif diz que não é possível emitir opinião sobre o Bracvam, “visto que, até o momento, não realizou qualquer ação”. Ele acredita, também, que o órgão toma como modelo institutos estrangeiros, igualmente vinculados à experimentação animal. “Dessa forma, não é seu objetivo realmente substituir animais em testes. Qualquer instituição que se diz voltada para a busca de métodos substitutivos e que sustente o discurso de que o uso de bichos é ainda necessário desenvolve papel duvidoso”, critica.
Brasil possui reduzido número de laboratórios para validação de testes alternativos
Um dos entraves para o desenvolvimento eficaz de metodologias substitutivas no Brasil é o reduzido número de laboratórios propensos para receberem a validação dos testes. Segundo o presidente do Concea, as metodologias somente são reconhecidas se realizadas em clínicas que observam as BPLs. Só assim os resultados obtidos ganham aceitação, inclusive internacional, como prevê o acordo de Mútua Aceitação de Dados (MAD – do inglês: Mutual Acceptance of Data), pelos países signatários da OCDE.
“Este é também um ponto importante, pois um teste realizado por um lugar reconhecido pelas Boas Práticas de Laboratório é obrigatoriamente aceito pelos países da OCDE, não havendo, portanto, necessidade de repetir o estudo”, afirma Granjeiro. O fato de não precisar fazer novamente o estudo causaria uma grande redução no número de animais utilizados nos testes. “É ainda importante ressaltar que isso vale para qualquer produto, não apenas cosméticos. As BPLs são importantes por permitir a rastreabilidade do estudo, aumentando a confiança nos resultados obtidos”, pontua.
O Brasil possui apenas 35 laboratórios reconhecidos em BPL. Quem faz o reconhecimento é o Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro). Desses 35 laboratórios, apenas cinco realizam, por exemplo, estudos toxicológicos (predominando, no entanto, métodos com animais). Na opinião de Granjeiro, são necessários mais laboratórios reconhecidos em BPL que realizem os testes alternativos.
Para o presidente do Concea, seria muito importante, também, que recursos financeiros fossem destinados para atividades do Bracvam e que os princípios da BPL fossem mais amplamente difundidos, “de modo a consolidar no Brasil uma base laboratorial capacitada em métodos alternativos e reconhecida nas Boas Práticas de Laboratório”. Para ele, não é suficiente ter métodos alternativos disponíveis se os laboratórios que os executarem não forem formalmente reconhecidos em BPL.
Esta matéria é a segunda de uma série especial sobre a causa animal. A terceira e última reportagem, que será publicada nesta quinta-feira (3/6), vai abordar o controle populacional de cães e gatos de rua.