Testes científicos com animais dividem opiniões no Brasil
Enquanto protetores dos bichos defendem o fim da prática, especialistas alertam que isso ainda não é possível no País.
Eram quase duas horas da manhã quando cerca de cem ativistas e moradores de São Roque (SP) invadiram a unidade do Instituto Royal na cidade, em outubro do ano passado. Na ocasião, foram recolhidos 178 cães da raça beagle e sete coelhos, em protesto contra o uso dos animais em testes realizados pelo laboratório. Dezenove dias após a invasão, o instituto divulgou o encerramento das atividades no município.
A ação dos defensores dos animais no interior paulista intensificou o debate sobre o uso dos bichos em testes científicos em todo o País. Embora permitidas no Brasil, essas pesquisas têm sido cada vez mais questionadas. O tema, um dos mais polêmicos que envolve a causa animal, já foi discutido, no primeiro semestre de 2014, pela Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), em uma das seis audiências públicas realizadas para abordar assuntos ligados ao bem-estar animal.
A preocupação da Assembleia com a causa animal se reflete em projetos de lei (PLs) voltados para a garantia dos direitos dos bichos. Uma dessas proposições, que já recebeu parecer favorável de 1º turno da Comissão de Meio Ambiente, cria o Código Estadual de Proteção dos Animais (Cepa). Trata-se do PL 1.197/11, de autoria do deputado Dalmo Ribeiro Silva (PSDB).
Polêmica – As opiniões de especialistas e defensores dos animais são opostas quanto à possibilidade de se abdicar do uso dos bichos em testes científicos. Para o presidente do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), José Mauro Granjeiro, atualmente é impossível abolir o uso em pesquisas voltadas para a produção de medicamentos. “Até o momento, não se pode estabelecer a segurança e o mecanismo de ação de fármacos apenas com modelos in vitro, ou seja, sem animais”, afirma. O Concea, órgão integrante do Ministério da Ciência e Tecnologia, é responsável por validar e regulamentar experimentos com animais no País.
A ex-coordenadora e atual integrante da Comissão de Ética no Uso de Animais da Fundação Ezequiel Dias (Funed), Myrian Morato Duarte, também defende a pesquisa com os bichos, que, segundo ela, leva ao conhecimento e ao avanço científico. “Infelizmente, ainda não temos nenhum método substitutivo. Não se consegue fazer testes contra doenças mais complexas, como Alzheimer, câncer e aquelas relacionadas ao coração, de modo mais simples, usando apenas o cultivo de células ou por meio de um modelo matemático”, argumenta.
Para o presidente do Concea, a participação dos animais em pesquisas é fundamental para não colocar no mercado produtos que possam comprometer a segurança da população. “Esses testes auxiliam a entender, por exemplo, a toxicocinética de medicamentos”, afirma. Na opinião de Myrian Morato, são inúmeros os riscos em se abdicar do uso dos bichos. Segundo a integrante da Funed, a pesquisa é feita com o objetivo de “proteger o ser humano”.
A Comissão de Ética no Uso de Animais da Funed é responsável por analisar a viabilidade e a necessidade da participação dos bichos em projetos voltados para a produção de medicamentos. Segundo Myrian Morato, já houve projetos que voltaram para o pesquisador, para que pudesse adequá-lo em relação à quantidade de animais requisitados. “São inúmeros problemas que analisamos com cuidado, antes de conceder a aprovação”, ressalta.
Defensores dos animais criticam a prática
O biólogo Sérgio Greif, que, a pedido do Ministério Público, realizou uma vistoria no Instituto Royal após a invasão de ativistas no laboratório, diz ser “totalmente contrário” à experimentação animal, tanto por motivos éticos quanto científicos. “Eticamente não é justificável, porque animais são seres sencientes e, portanto, sujeitos de direito, com interesses particulares. Não há motivos plausíveis para validar o seu uso em laboratórios”, acredita. Senciência é a capacidade de um animal de sentir prazer e dor, manifestando felicidade e sofrimento.
Sérgio Greif critica o discurso de pesquisadores que dizem que, se um medicamento fosse aprovado sem que fossem feitos testes com animais, o produto poderia causar danos para os humanos. “Essa é mais uma falácia científica comumente utilizada para a defesa da experimentação animal”, acredita.
Ele diz que, de todos os medicamentos colocados no mercado todos os anos, a maior parte é retirada com menos de um ano de prateleira, embora os mesmos tenham sido testados em animais. “São retirados porque apresentaram efeitos intoleráveis em seres humanos, efeitos esses que não haviam sido detectados em animais de laboratórios. Medicamentos danificam pessoas atualmente, e a isso chamamos efeitos adversos ou efeitos colaterais”, pontua.
Em termos científicos, o biólogo afirma que não é possível extrapolar dados obtidos de uma espécie para outras. “Organismos reagem de forma distinta a diferentes produtos químicos. Seria como tentarmos entender o funcionamento de um Boeing 747 utilizando manuais de instrução de fuscas ou bicicletas”, salienta. Para José Mauro Granjeiro, presidente do Concea, ainda que os modelos de testes em animais não sejam perfeitos, não existem outros métodos que permitam, no atual estado do conhecimento, substituir completamente a pesquisa com os bichos.
Valor intrínseco – A coordenadora da ONG Associação Cão Paixão em Defesa dos Animais, Marimar Poblet, também se diz contrária à prática com animais. Ela usa o mesmo argumento de que o corpo é diferente do humano. “Para o medicamento Talidomida, por exemplo, foi feito teste com animais, e não gerou nenhum efeito negativo. Quando usado em humanos, causou um dano imenso”, destaca. Para ela, é preciso ir além desse pensamento. “A vida dos animais tem valor intrínseco. Eles têm o direito de viver suas vidas”, afirma.
Marimar Poblet faz parte de uma comissão interinstitucional do Conselho Municipal de Saúde de Belo Horizonte, criada em 2006 com o objetivo de discutir a interface entre saúde humana e qualidade de vida animal. Integram a comissão representantes da sociedade civil ligadas à proteção animal, representantes do Conselho Regional de Medicina Veterinária, das polícias Civil e Ambiental, da vigilância sanitária da Capital e da Gerência de Controle de Zoonoses de Belo Horizonte.
Para biólogo, testes devem ser feitos em humanos
Como alternativa ao uso dos bichos em pesquisas, o biólogo Sérgio Greif defende que os testes científicos sejam feitos diretamente em humanos. “Não há nada de errado, desde que os estudos atendam aos critérios éticos que estabelecem a forma correta de utilização das pessoas”, afirma. Segundo ele, ao contrário dos animais, seres humanos são, de fato, protegidos por comitês de ética, assim, eles podem ser familiarizados com os propósitos da pesquisa, podem aceitar participar ou não dos testes e podem desistir de sua participação a qualquer momento. “É óbvio que sou contra forçar alguém a participar de pesquisas. Mas as pessoas serão cobaias em alguma etapa, utilizemos animais ou não. E usar os bichos não muda em nada esse fato”, pondera.
Assim como Sérgio Greif, Marimar Poblet defende os testes feitos apenas com humanos. “Com a pessoa, você explica, faz um contrato. Se estiver sentindo dor ou incômodo, pode se retirar da pesquisa a qualquer momento”, acredita. Ela diz que animais podem ser comparados a crianças: não se pode fazer um acordo com ambos, pois não têm consciência para conhecer a extensão da experiência. “Não devemos dispor da vida animal ao bel prazer. A espécie humana não é superior, embora seja hegemônica. Todas as vidas têm sua importância e uma função biológica e ecológica no mundo”, argumenta.
Exigência jurídica – Na Fundação Ezequiel Dias, em Belo Horizonte, são feitos testes de lotes de injetáveis (vacina e soros) e também pesquisas para novos medicamentos. Na instituição, os estudos são feitos, na maioria dos casos, com coelhos. Devido aos riscos que podem ser causados à saúde humana, atualmente, para uma vacina ou para qualquer medicamento ser liberado, juridicamente é exigida a participação de animais. “São obrigatórios esses testes. É antiético e ilegal testar primeiro em humanos”, afirma Myrian Morato.
Para um medicamento completamente novo ser liberado, é preciso, inclusive, que se façam testes em mais de um tipo de animal, sendo um não roedor, conforme explica a integrante da Comissão de Ética no Uso de Animais da Funed. A Fundação, por exemplo, utiliza camundongos nesses casos. A partir do momento em que o medicamento é liberado, só são feitos testes com animais por segurança de lotes.
Segundo Myrian Morato, o objetivo das pesquisas na Funed é garantir que o coelho permaneça bem. “Caso o animal tenha febre ou alergia, um lote inteiro é rejeitado”, explica. Ela diz que nunca houve, na Funed, um caso de morte dos bichos durante as pesquisas. “Mas se isso acontecer, os testes servem para isso mesmo, para dar a demonstração de que há um problema e que o lote não pode ser distribuído”, diz.
Sofrimento causado a animais é argumento usado contra os testes científicos
Um dos argumentos apontados por defensores dos animais contra o uso de bichos em testes científicos é o possível sofrimento que as pesquisas podem causar. No Brasil, a Lei Federal 9.605, de 1998, prevê pena para quem realiza "experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos".
Para Sérgio Greif, não é possível, de modo algum, utilizar animais em pesquisa sem que sofram. “Mesmo que refinemos os experimentos e apliquemos analgésicos nos animais, não podemos determinar a quantidade de sofrimento que incide sobre determinado indivíduo, nem mesmo quando esse indivíduo pertence à mesma espécie que a nossa”, destaca.
De acordo com o biólogo, ainda que a dor seja minimizada ou mesmo eliminada, há outras formas de sofrimento que devem ser contabilizadas e que normalmente não o são. “Animais presos, forçados a viver em um ambiente estranho ao seu habitat e a receber estímulos estranhos à sua natureza estão certamente sofrendo”, afirma. Na opinião do presidente do Concea, nos estudos nos quais o sofrimento e a dor possam ocorrer, todas as medidas devem ser tomadas para seu controle. “É importante que as pesquisas sejam muito bem planejadas e justificadas quanto à sua relevância”, salienta.
Sérgio Greif acredita, no entanto, que não há como dizer que um possível sofrimento seja aceitável frente aos prováveis benefícios que podem ser obtidos com os resultados. “Quando se colocam em uma balança os interesses animais e humanos, os dos bichos sempre perdem. Não é possível dizer que estamos considerando os interesses dos animais porque isso não é verdade”, opina.