Plenário da ALMG foi palco do segundo dia do ciclo de debates sobre os 50 anos do golpe militar

Para estudiosos, Brasil não completou transição democrática

No segundo dia do ciclo de debates sobre os 50 anos do golpe de 1964, especialistas destacam herança da ditadura.

01/04/2014 - 13:06 - Atualizado em 01/04/2014 - 16:55

“O que resta da ditadura entre nós? Muita coisa ruim”, afirmou o jurista José Luiz Quadros Magalhães, um dos palestrantes do segundo dia do Ciclo de Debates Resistir Sempre, Ditadura Nunca Mais – 50 anos do Golpe Militar. Na manhã desta terça-feira (1º/4/14), foram discutidas as políticas de transição da ditadura para a democracia e as heranças do período ditatorial. A Lei de Anistia e o caráter econômico por trás das decisões políticas que levaram ao golpe militar e ao seu fim permearam as palestras, conduzidas pelo deputado Paulo Lamac (PT).

José Luiz Quadros sustentou que a ditadura brasileira foi marcada por um teatro no qual se simulava a democracia – e que o fim do regime militar seguiu o mesmo caminho. O teatro, segundo ele, se caracterizava especialmente pela suposta existência de instituições democráticas – havia a sucessão de pessoas no poder a cada quatro anos, o Congresso foi mantido e até o Poder Judiciário continuou a funcionar. “Foi uma formatação diferente do que aconteceu, por exemplo, no Chile, onde Augusto Pinochet permaneceu no poder durante todo o regime militar”, explicou.

Para o jurista, o último ato desse teatro foi a convocação, por meio do que foi chamado de emenda constitucional, de uma Assembleia Constituinte. “Que só pode ser legítima se vier de uma quebra, portanto, não há nenhum instrumento jurídico válido para sua convocação. Esse ato, levado a cabo por José Sarney, não passou de um recado claro de que não se tratava de uma ruptura, mas apenas do começo de uma nova fase”, avaliou.

A falta dessa ruptura teria garantido, de acordo com Quadros Magalhães, que certos mecanismos de distorção, encobrimento da verdade e manutenção de alguns grupos no poder se mantivessem até hoje. Para ele, a herança desse período se manifestaria atualmente, por exemplo, na Polícia Militar. “Não dá para ter, em um regime democrático, uma polícia que é contra o povo, que diariamente humilha os mais pobres. Precisamos é de inteligência policial que seja usada para proteger todos. A desmilitarização da corporação é um debate que precisa ser enfrentado”, defendeu.

A mídia também foi criticada pelo palestrante, que alertou para um possível “bloqueio de informação”. “Não temos liberdade de imprensa, é possível até encontrar brechas, mas a grande mídia, concentrada nas mãos de poucos, faz parte do mesmo teatro que existiu na ditadura. Ela mente sistematicamente”, disse. Luiz Quadros Magalhães defendeu que até o uso do termo “anistia” para se referir aos presos políticos do período é equivocado. “Anistia é perdão, e não temos nada a perdoar daqueles que deram suas vidas para defender a democracia: temos que agradecê-los”, afirmou.

Para professor, transição para a democracia não se completou

A Lei de Anistia, de 1979, que teria garantido “anistia ampla e irrestrita”, foi o principal tema abordado pelo doutor em direito Emílio Peluso Neder Meyer, professor adjunto da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Segundo ele, processos de transição entre regimes tradicionalmente contam com anistias, que têm o objetivo de estabelecer condições para que opositores políticos possam voltar a conviver em um regime democrático em processo de implantação.

No Brasil, porém, a lei teria sido gestada no gabinete do então ministro da Justiça Petrônio Portela e teve a finalidade de garantir um pano de fundo que não permitiria a responsabilização individual daqueles que agiram em nome do regime. "A ditadura foi pródiga em estabelecer instrumentos que pudessem permitir a transição controlada de regime”, disse.

Assim, Peluso salienta que não houve ações de relevo nas décadas de 1980 e 1990 para garantir a responsabilização dos agentes da ditadura, o que para ele demonstra que a transição para o regime democrático foi incompleta. De acordo com o jurista, uma resolução do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) determina que uma real justiça de transição precisa basear-se em quatro fundamentos: direito à memória e à verdade, sistema de reparações de danos, reformas institucionais e responsabilização individual.

O professor lembrou o ajuizamento de ação no Supremo Tribunal Federal (STF) por familiares de vítimas do regime militar, mas segundo ele, em abril de 2010 a corte proferiu decisão judicial no sentido de manter a anistia aos agentes do Estado.

A defesa da anistia aos torturadores baseou-se, de acordo com Peluso, em dois argumentos principais. O primeiro seria o de que a Lei de Anistia teria sido fruto de um acordo político e, portanto, seria legítima. Também levou-se em consideração que a Assembleia Constituinte que deu origem à atual Constituição Federal foi convocada a partir desse acordo e, dessa maneira, negar a Lei de Anistia seria negar a própria Carta Maior. O professor, no entanto, refuta os dois argumentos e disse que não havia condições, durante a ditadura, de se estabelecer um acordo político. Assim sendo, na sua avaliação a lei teria sido imposta.

Peluso salientou, ainda, que a decisão contraria a Convenção Americana de Direitos Humanos, segundo a qual leis de autoanistia, como a brasileira, não devem ser consideradas legítimas. Por fim, ele destacou decisão da Corte Interamericana segundo a qual o STF se equivocou e o Estado brasileiro deve se desculpar e estabelecer sistemas de reparações. “Com base nesse entendimento, o Ministério Público Federal começa a reabrir casos arquivados e pedir responsabilizações”, diz. Para o jurista, porém, é preciso permanecer vigilante porque segundo ele as ações abertas até o momento têm sido novamente arquivadas pelo Poder Judiciário.

Sociólogo explica razões econômicas do golpe

O caráter econômico do golpe militar foi abordado pelo sociólogo Ronald Rocha, membro do Instituto 25 de Março de Sérgio Miranda. De acordo com ele, a década de 1960 foi o auge da expansão do capitalismo e o golpe serviu para consumar o processo de concentração de capitais. “O Estado centraliza seus órgãos e os funde aos monopólios internacionais, o que resulta em crescimento econômico entre os anos de 1967 e 1974. O modelo, porém, entra em crise internacionalmente, e o crescimento cessa. O 'milagre brasileiro' foi o último suspiro desse período”, disse.

Segundo ele, a falência desse modelo econômico levou à crise do regime militar. “Claro que a burguesia brasileira percebeu que a manutenção do regime 'a ferro e fogo' levaria à perda de eficiência, culminaria em uma situação revolucionária no País e criaria condições para um ruptura iniciada por baixo e com consequências imprevisíveis. Por isso, passaram a considerar uma transição controlada para a democracia”, afirmou. O sociólogo disse ainda que, nessa transição programada e gradual, houve predomínio das correntes conservadoras e, portanto, das prerrogativas da tutela militar na política nacional.

Por essas questões, muitos estudiosos defendem, de acordo com Rocha, que a transição teria sido incompleta e, portanto, não teríamos até hoje democracia no Brasil. Outros, menos radicais, defendem, ainda de acordo com Rocha, que a democracia brasileira teria características próprias, fundadas em suas condições sócio-históricas e em aspectos remanescentes da legislação da ditadura, com métodos autocráticos na gestão do Estado e ordem monopolista financeira. “Por isso, reformas sociais profundas não foram realizadas, e uma transformação só poderá ser feita com a renúncia dessas heranças militares”, afirmou.

Para fechar a manhã de debates, o deputado Adelmo Carneiro Leão (PT) citou o filósofo alemão Herbert Marcuse: “a primeira condição para um escravo se libertar é ele ter consciência de que é escravo”. O parlamentar fez um paralelo com a necessidade de se ter conhecimento da história da ditadura para construir a democracia. Convidou também para o Ciclo de Debates Comunicação, Regulação e Democracia, que será realizado na ALMG nos dias 10 e 11 de abril, ressaltando que democratizar a imprensa é  essencial para a construção da verdadeira democracia.