PL PROJETO DE LEI 2497/2024
Projeto de Lei nº 2.497/2024
Dispõe sobre o reconhecimento dos direitos do Rio São Lamberto, afluente do Rio Jequitaí na bacia do Rio São Francisco, no Estado de Minas Gerais e seu enquadramento como ente especialmente protegido e dá outras providências.
A Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais decreta:
Art. 1º – Ficam reconhecidos os direitos intrínsecos do Rio São Lamberto e sujeito de direitos, e de todos os outros corpos d’água e seres vivos que nele existam naturalmente ou com quem ele se inter-relaciona, incluindo os seres humanos, na medida em que são inter-relacionados num sistema interconectado, integrado e interdependente no âmbito do Estado de Minas Gerais.
Art. 2º – Dentre os direitos do Rio São Lamberto e outros entes relacionados exemplificadamente no art. 1º, ficam reconhecidos os direitos de:
I – manter seu fluxo natural e em quantidade suficiente para garantir a saúde do ecossistema;
II – nutrir e ser nutrido pela mata ciliar e as Florestas do entorno e pela biodiversidade endêmica;
III – existir com suas condições físico-químicas adequadas ao seu equilíbrio ecológico;
IV – inter-relacionar-se com os seres humanos por meio da identificação biocultural, de suas práticas espirituais, tradicionais, de lazer, da pesca artesanal, agroecológica, cultural e do Turismo de Base Comunitária;
V – manter sua cabeceira intacta, sendo impedido qualquer tipo de extração mineral nas áreas que delimitam os polígonos e/ou coordenadas geográficas.
Art. 3º – O Rio São Lamberto e os seres inter-relacionados devem ser protegidos e manifestarem seus requerimentos e vozes por guardiões legais, que servirão como sua representação pública, atuando como conselheiros do Poder Público e da comunidade no exercício destes direitos.
Art. 4º – O Poder executivo regulamentará esta lei para criar o Comitê Guardião de tutela dos interesses do Rio São Lamberto, que atuará como guardião dos direitos estabelecidos nesta lei, participando de todos os processos decisórios públicos ou privados que eventualmente versar sobre o Rio São Lamberto.
§ 1º – O Comitê Guardião deverá ser eleito a partir de indicação comprovada dos representantes de agricultores(as) familiares e povos e comunidades tradicionais que vivem à beira do Rio São Lamberto.
§ 2º – O Comitê Guardião deverá, ao menos a cada 12 (doze) meses, preparar com a contribuição do Poder Público, um relatório escrito conciso para informar a comunidade sobre a saúde e estado do Rio e planejamento das ações estratégicas de efetivação dos direitos reconhecidos nesta lei, sendo o relatório do ano primeiro considerado o “Marco Zero”, servindo como referência comparativa para as questões a serem analisadas nos relatórios subsequentes.
§ 3º – O relatório deverá ser publicado e discutido com a participação dos membros do Poder Executivo e Legislativo, que realizará ao menos 2 (duas) audiências públicas, extraindo-se as recomendações.
§ 4º – O Comitê Guardião, em seu relatório anual terá a faculdade de apresentar proposta ao Poder Executivo para a implementação de ações de preservação e ou melhoria da vida do Rio São Lamberto bem como a execução de obras físicas impeditivas de sua degradação.
Art. 5º – O Poder Executivo regulamentará esta lei no prazo de 90 (noventa) dias, contados da data de sua publicação.
Sala das Reuniões, 12 de junho de 2024.
Leninha (PT), 1ª-vice-presidente.
Justificação: A bacia hidrográfica do Rio São Lamberto, é uma das sub-bacias do Rio São Francisco e seu curso principal corresponde a um afluente da margem direita do Rio Jequitaí. Localiza-se na região Norte do estado de Minas Gerais e abrange os municípios de Montes Claros, Claro dos Poções e Jequitaí em quase toda a sua extensão. Pequenas regiões da bacia compreendem ainda os municípios de Glaucilândia, São João da Lagoa, Francisco Dumont e Bocaiuva. A área total da bacia é de aproximadamente 120.200 hectares.
O clima da região é tropical com período de inverno seco e a precipitação anual varia de 750 mm a 1800 mm, pelo qual reside em ambiente rural um conjunto de comunidades tradicionais autointituladas como geraizeiras. Diante de uma perspectiva microrregional do Norte de Minas Gerais, geraizeiros são habitantes da margem direita do Rio São Francisco, mais precisamente nas regiões do Alto Rio Pardo, Baixada Sanfranciscana, Planalto Sanfranciscano e Gerais da Serra, habitantes do bioma Cerrado, que possuem um modo de vida tradicional com base em relações muito íntimas entre identidade, agricultura e territorialidade, utilizando historicamente os recursos existentes nos gerais para criação de sistemas agroalimentares baseados na criação de animais, plantios em áreas consorciadas nas mangas e coleta de frutos nativos. Atualmente, o Norte de Minas abriga aproximadamente 290 comunidades tradicionais geraizeiras.
Desde o século XIX, os geraizeiros possuem um longo histórico de lutas ocasionadas por conflitos ambientais territoriais diante de contextos diversos, como por exemplo, o extrativismo de pedras preciosas, a introdução da lógica da propriedade privada e da mercantilização de terras no Norte de Minas, as políticas de colonização agrária durante a ditadura militar e a concessão de terras devolutas para as empresas monocultoras, e atividades industriais diversas. De fato, tais contextos fixaram uma lógica expropriatória de planejamento regional pautada em formas de uso e ocupação do solo as quais têm resultado num processo de desertificação, mudanças climáticas e escassez hídrica, gerando consequências no tempo presente.
Ainda na década de 1980, as alterações do clima foram percebidas pelos agricultores e agricultoras da região como um dos grandes desafios a serem enfrentados, demandando assim o desenvolvimento de estratégias de ação colaborativas capazes de apresentar soluções práticas no que tange aos desafios cotidianos do modo de vida camponês.
O Rio São Lamberto tem suas principais nascentes localizadas nas áreas de maior altitude do município de Montes Claros, compõe a bacia do Rio Jequitaí, tributário do Rio São Francisco, e tem enfrentado alto grau de degradação devido às ações antrópicas – ainda na década de 1970 com a retirada da canga laterítica nas áreas de recarga, próximo a importantes nascentes e cursos d’agua, que se tornaram intermitentes ao longo dos anos, deixando secas cerca de 300 pequenas nascentes na sua sub-bacia, chamada de esponja d’água pelos moradores locais, para asfaltamento da BR 135, que liga o município de Bocaiuva a Montes Claros. Nos últimos anos a frequência de desmatamentos para instalação de chacreamentos tem agravado ainda mais os problemas socioambientais e as grandes voçorocas formadas têm causado o secamento de suas nascentes e afluentes.
Refletir alternativas para uma região criticamente atingida pela ação antrópica como a bacia hidrográfica do Rio São Lamberto tem demandado esforços integrados de instituições públicas e privadas, organizações não governamentais – ONGs –, população local, associações comunitárias, sindicatos e poder público com o intuito de desenvolver ações que propiciem a recuperação das áreas degradadas nos topos dos morros e nas grotas. Ao longo dos anos, um conjunto de ações vem sendo realizadas com o intuito de gerar melhorias na condição hídrica da região, as mesmas apresentando potencial para a transformação social das comunidades de agricultores familiares geraizeiros, mas também, contudo, limitando-se a iniciativas esparsas.
É notória a influência das mudanças climáticas na escassez de alimentos e no conflito pela água. No caso da insegurança hídrica, no momento em que são obrigados a disputarem com outros atores o uso de cursos d'água perenes e intermitentes, de regiões de cabeceira e nascentes e, especialmente no uso das águas superficiais em pontos de captação de água, este projeto de Lei, ora apresentado, é a esperança para assegurar a vida do rio São Lamberto e, consequentemente, das mais de 12 mil famílias da sua bacia hidrográfica e garantirá, junto com as demais ações e projetos de recuperação das áreas degradadas ao longo das suas sub-bacias, a segurança hídrica local, o modo de vida das populações locais e a soberania e segurança alimentar e nutricional dos agricultores e agricultoras familiares da região.
No Brasil, já existem experiências de leis que reconhecem os rios como sujeitos de direitos. A Câmara Municipal de Guajará-Mirim (RO) definiu o Laje na primeira lei no Brasil que reconhece os direitos legais de um rio. A proposta foi de autoria do vereador Francisco Oro Waram (PSB), liderança da aldeia Waram, que fica na região do Rio Lage. Trata-se de um rio amazônico chamado pelos indígenas de Komi-Memen e que desemboca no Madeira, que por sua vez alimenta o Amazonas. Recentemente, foram sancionadas as leis que dispõem sobre os “direitos do Rio Mosquito” nos três municípios banhados pelo manancial – Porteirinha, Serranópolis de Minas e Nova Porteirinha. O curso d'água é afluente do Rio Gorutuba, que desemboca no Rio Verde Grande, na Bacia do Rio São Francisco. Na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) tramita o PL 2178/2024 que dispõe sobre o reconhecimento dos direitos do Rio Mosquito, afluente do Rio Gorutuba, no Estado, e seu enquadramento como ente especialmente protegido e dá outras providências de autoria da Deputada Leninha.
Tramita ainda na ALMG, PL 1026/2023 de autoria da Deputada Leninha que dispõe sobre o reconhecimento dos direitos do Rio São Francisco – Opará – no limite do Estado de Minas Gerais e seu enquadramento como ente especialmente protegido e dá outras providências.
Já na Amazônia peruana, o Tribunal de Nauta, em Loreto, estabeleceu um marco significativo na proteção dos rios do país ao reconhecer o Rio Marañón como pessoa jurídica com direitos inerentes, tornando-o sujeito de direitos. Uma decisão que é fruto da luta liderada pela Federação Huaynakana Kamatahuara Kana, grupo de mulheres indígenas Kukama do Distrito de Parinari, província e região de Loreto.
Desde 2021, lideranças indígenas travam uma batalha jurídica contra o Estado e as autoridades peruanas, exigindo a proteção do rio Marañón diante dos constantes vazamentos de óleo do Oleoduto Norperuano, operado pela empresa Petroperú. E as comunidades desta área ainda enfrentam as consequências do derrame de petróleo ocorrido em San José de Saramuro em 2010, quando foram derramados entre 300 a 400 barris de petróleo bruto.
Reconhecer a natureza como detentora de direitos indo além da exploração, é uma tarefa urgente e de toda sociedade, já que a interdependência entre os seres, inclusive os seres humanos, é uma realidade concreta.
Os rios, integrantes da natureza, sofrem constantemente a interferência do homem provocando poluição, desperdício de água e destruição.
Segundo o professor, doutor em direito ambiental e brigadista florestal Humberto Gomes Macedo uma mudança precisa ser realizada: “Vale pontuar que os recentes acidentes, chuva, incêndios, efeitos das mudanças climáticas, já nos mostram que é urgente que os rios e outros seres da natureza sejam sujeitos de direito, afinal o direito não pode contemplar apenas o ser humano, que deve ser o meio e não o fim”.
A defesa dos direitos da natureza e, em particular, o reconhecimento dos direitos do Rio São Lamberto, promoverá a criação de um novo paradigma jurídico e social baseado na vida em harmonia com a natureza e no respeito aos direitos da natureza e aos direitos humanos, em particular com referência às necessidades urgentes das comunidades tradicionais e locais, e dos ecossistemas que eles protegem por muito tempo.
Os vanguardistas nessa defesa são Equador, Peru e Bolívia que criaram leis para conceder direitos ao meio ambiente, necessárias para se pensar uma outra lógica de mundo mais justa e possível para as futuras gerações. No caso do Equador, os direitos na natureza estão presentes na constituição nacional daquele país.
Na Austrália, essa mudança está ocorrendo em relação ao Rio Yarra. O Yarra foi reconhecido como uma entidade viva e integrada, pois seus proprietários tradicionais, o povo Wurundjeri, sempre o conheceram como tal, conforme uma lei estadual de 2017.
Importante dizer que, o rio tem o direito de manter seu fluxo natural, nutrir e ser nutrido, existir com suas condições físico-químicas adequadas ao seu equilíbrio ecológico e se relacionar com seres humanos enquanto sujeito de direitos.
Portanto, assim como essas experiências brasileiras e de outros países nos mostram, queremos também reafirmar a importância do Rio São Lamberto para a vida na região.
Em defesa desse direito fundamental que comunga com os preceitos contidos na nossa Constituição Federal e Constituição Estadual é que apresentamos o presente projeto de lei, para o qual pedimos o apoio dos/as nobres pares.
– Publicado, vai o projeto às Comissões de Justiça e de Meio Ambiente para parecer, nos termos do art. 188, c/c o art. 102, do Regimento Interno.