PL PROJETO DE LEI 1974/2024
Projeto de Lei nº 1.974/2024
Dispõe sobre o reconhecimento dos direitos do Watu – Rio Doce, no Estado de Minas Gerais, e seu enquadramento como ente especialmente protegido e dá outras providências.
A Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais decreta:
Art. 1º – Ficam reconhecidos os direitos intrínsecos do Rio Doce como ente vivo e sujeito de direitos, bem como de todos os outros corpos d´água e seres vivos que nele existam naturalmente ou com quem ele se inter-relaciona, incluindo os seres humanos, na medida em que coexistem em um sistema interconectado, integrado e interdependente.
Art. 2º – Dentre os direitos do Rio Doce e outros entes relacionados exemplificadamente no artigo 1º, ficam reconhecidos os direitos de:
I – manter seu fluxo natural e em quantidade suficiente para garantir a saúde do ecossistema;
II – nutrir e ser nutrido pela mata ciliar, pelas vegetações e pela biodiversidade;
III – existir com suas condições físico-químicas adequadas ao seu equilíbrio ecológico;
IV – inter-relacionar-se com os seres humanos por meio da identificação biocultural, de suas práticas espirituais, de lazer, de pesca artesanal, agroecológica e cultural.
Art. 3º – O Rio Doce e os seres inter-relacionados devem ser protegidos e se manifestarão por meio de seus guardiões legais, que servirão como sua representação pública, atuando como conselheiros do Poder Público e da comunidade no exercício destes direitos.
Art. 4º – O Poder Executivo regulamentará esta lei para criar o Comitê de tutela dos interesses do Rio Doce, que atuará como guardião dos direitos estabelecidos nesta lei, participando de todos os processos decisórios públicos.
§ 1º – O Comitê Guardião deverá ser eleito a partir da indicação comprovada dos membros de sua comunidade, sendo necessária a participação das seguintes representações:
I – Comunidade indígena Krenak;
II – Comunidade indígena Puri;
III – Pescadores;
IV – Comunidades remanescentes quilombolas;
V – Unidades tradicionais de terreiro e religiões de matriz africana;
VI – Movimento Social que atue com foco na preservação e recuperação do Rio Doce;
VII – Atingidos pelo rompimento da Barragem de Fundão;
VIII – Comitê de bacia hidrográfica do Rio Doce;
IX – Câmaras municipais;
X – Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais.
§ 2º – O Comitê Guardião deverá, ao menos a cada 12 (doze) meses, preparar com a contribuição do Poder Público, um relatório escrito conciso para informar a comunidade sobre a saúde e o estado do Rio Doce e o planejamento das ações estratégicas de efetivação dos direitos garantidos por esta lei.
Art. 5º – O Executivo regulamentará esta lei no prazo de 90 (noventa) dias, contados da data de sua publicação.
Art. 6º – Esta lei entrará em vigor da data de sua publicação.
Sala das Reuniões, 1º de fevereiro de 2024.
Beatriz Cerqueira, presidenta da Comissão de Educação, Ciência e Tecnologia (PT).
Justificação: O presente projeto de lei visa reconhecer o Rio Doce como sujeito de direitos e garantir o seu direito à existência, a viver livre de contaminação, a preservar os seus ciclos de vida, a regenerar-se e a restaurar oportuna e eficazmente os seus sistemas de vida.
O Rio Doce possui cerca de 853 km de extensão, sua bacia hidrográfica está totalmente incluída na Região Sudeste, banha os estados de Minas Gerais e Espírito Santo.
Desde sua colonização aos tempos atuais a Bacia Hidrográfica do Rio Doce constitui-se num território fortemente marcado por relações de poder, que geraram um pernicioso processo de exploração de seus bens naturais. Os rios, sobretudo o Doce, exerceram papel significativo no processo de territorialização da Bacia. Processo este conduzido por ciclos extrativistas não sustentáveis, que a princípio formaram a base da economia mineira.
Apesar de tratar-se de um território com muitas riquezas naturais e potencialidades econômicas, apresenta elevada heterogeneidade no tocante ao desenvolvimento econômico dos municípios que dele fazem parte. Algumas regiões, sobretudo a do Vale do Aço, tiveram uma maior expressão em suas atividades econômicas contribuindo para uma melhor distribuição de renda. As desigualdades socioeconômicas que permeiam os municípios da Bacia sobrepõe-se ainda um grande passivo ambiental.
Esta situação é reflexo de uma ocupação predatória desordenada, que fez com que a Bacia do Rio Doce atingisse atualmente elevado estágio de degradação ambiental, abarcando problemas que vão desde a redução da cobertura vegetal original e infertilidade dos solos à contaminação, poluição e assoreamento dos seus rios. Todos estes fatores a colocam como uma unidade territorial que merece atenção especial na elaboração de políticas públicas em prol de sua revitalização.
O rompimento da barragem do Fundão de propriedade das mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton, que ocorreu em 05 novembro de 2015 no distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, é considerado o maior crime ambiental do país, com o derramamento de 54 milhões de m³ de rejeitos de minério de ferro, deixando um rastro de lama e contaminantes que avançou sobre a bacia do rio Doce até chegar ao litoral do Espírito Santo, provocando a morte de toda a vida aquática do rio, incluindo sua fauna e flora, e afetando diretamente a cultura e economia ribeirinha. Foram mais de 230 municípios atingidos, e dois estados brasileiros afetados, além da vida marinha localizada na foz do rio Doce, em Linhares no Espírito Santo. Atualmente, o Rio Doce segue com altos índices de contaminação e sem um plano efetivo para sua recuperação.
Em 2017, a Associação Pachamama ajuizou ação judicial perante a Justiça Federal em prol do reconhecimento do Rio Doce enquanto sujeito de direitos embora não tenha sido julgada procedente, este fato demonstra o desejo crescente da sociedade civil que vem se organizando para a superação do paradigma que separa seres humanos e natureza. A lógica antropocêntrica vigente tem se mostrado altamente destrutiva e insustentável, por fundar-se na apropriação dos bens naturais para o acúmulo de capital, em detrimento do bem comum e do equilíbrio entre os seres que habitam a mesma casa, o planeta Terra, em detrimento da continuidade da vida.
Desta forma, os Direitos da Natureza, também chamados de direitos da Mãe Terra ou da Pachamama, partem da visão biocêntrica ou ecocêntrica, inserem-se no contexto de um novo paradigma ético e jurídico, que reconhece a Natureza como detentora de direitos e não como extensão de direitos humanos, de forma utilitarista e passível de ser explorada indiscriminadamente. Não se trata, portanto, do direito humano à natureza, mas do direito da natureza ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Tal perspectiva inspira-se na cosmovisão dos povos originários, que reconhece a interdependência entre os seres e elementos naturais, sejam eles minerais, vegetais, animais ou humanos.
A promulgação da Constituição Federal do Equador em 2008, figura como o marco da institucionalização dos Direitos da Natureza, repercutindo desde então em diversos países, tais como: Bolívia, Argentina, Nova Zelândia, Indonésia, Índia, Colômbia, EUA e Brasil. Nos Municípios brasileiros de Bonito e Paudalho, em Pernambuco, Florianópolis em Santa Catarina e Serro em Minas Gerais, já foram aprovadas legislações que reconhecem os Direitos da Natureza. Nos Estados de São Paulo, Pará, Santa Catarina, Paraíba e Bahia, tramitam proposições nesse sentido. Nesta Casa Legislativa tramita a PEC n° 12/2023 que propõe acrescentar dispositivos à Constituição do Estado de Minas Gerais, que atribui à natureza direitos plenos, intrínsecos e perpétuos, inerentes a sua existência no planeta.
Importante destacar que dada relevância dos Rios, os cursos d'água foram os primeiros elementos naturais a serem reconhecidos como sujeitos de direitos, neste movimento que está se fortalecendo mundialmente. O Rio Laje, localizado no município de Guajará-Mirim, em Rondônia, foi o primeiro rio brasileiro a ter direitos reconhecidos por lei.
Com o reconhecimento dos Direitos do Rio Doce que se busca a partir do presente projeto de Lei, almeja-se o fortalecimento da política comunitária, a valorização das relações interculturais, bem como dos saberes dos povos e comunidades tradicionais, visando políticas públicas capazes de proporcionar programas e projetos para o Bem Viver.
Pela importância da matéria aludida, conto com o apoio dos nobres pares para a aprovação desta proposição.
– Publicado, vai o projeto às Comissões de Justiça e de Meio Ambiente para parecer, nos termos do art. 188, c/c o art. 102, do Regimento Interno.