PL PROJETO DE LEI 1650/2023
Projeto de Lei nº 1.650/2023
Proíbe a prática e divulgação de terapias de conversão de orientação sexual, identidade de gênero e expressão de gênero, bem como terapias correlatas em Minas Gerais.
A Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais decreta:
Art. 1º – Esta lei busca proibir as terapias de conversão de orientação sexual, identidade de gênero e expressão de gênero, bem como práticas correlatas criando mecanismos para punir a sua realização e divulgação.
Art. 2º – Para fins de aplicação desta lei, consideram-se:
I – orientação sexual: refere-se ao endereçamento emocional, afetivo e sexual de cada ser humano; pode se configurar de maneiras diversas, saudáveis e legítimas, não constituindo doença, desvio nem anomalia; pessoas que desenvolvem relações íntimas afetivas e/ou sexuais com pessoas de um gênero diferente do seu (heterossexuais), ou de seu próprio gênero (homossexuais), ou de mais de um gênero (bissexuais); pessoas que desenvolvem relações íntimas afetivas e/ou sexuais com todos os gêneros e orientações sexuais, sem distinção e não se limitando à binária de gênero homem/mulher (pansexuais), pessoas que tem falta total, parcial ou condicional de atração sexual a qualquer pessoa, independente do sexo biológico ou gênero (assexuais);
II – identidade de gênero: é a experiência interna e individual do gênero como cada pessoa a sente, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no momento do nascimento, incluindo a experiência pessoal do corpo, o que pode envolver, ou não, a modificação da aparência ou da função corporal através de meios médicos, cirúrgicos ou outros, desde que seja escolhido livremente, e outras expressões de gênero, incluindo o vestuário, o modo de falar e maneirismos;
III – expressão de gênero: é a manifestação externa do gênero de uma pessoa, por meio da sua aparência física, que pode incluir o modo de vestir, penteado, uso de artigos cosméticos, ou por meio de maneirismos, modo de falar, padrões de comportamento pessoal, comportamento ou interação social, nomes ou referências pessoais, entre outros e pode ou não corresponder à sua identidade de gênero autopercebida;
IV – terapia de conversão: qualquer prática, esforço sustentado, serviço, tratamento ou terapia que seja direcionada a uma pessoa ou a um grupo em função de sua orientação sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero e que tenha como finalidade mudar, reprimir, suprimir, reorientar, desvalorizar, desqualificar ou propor mudanças a sua orientação sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero; toda e qualquer prática que estimule, favoreça ou reforce a patologização e estigmatização de comportamentos ou práticas homoafetivas;
V – a homossexualidade não é considerada patologia, segundo a Organização Mundial de Saúde – OMS –, é da condição humana a existência de diversas sexualidades e expressões de gênero não hetero-cis-normativas.
Art. 3º – Constituem atos puníveis, nos termos desta lei:
I – submeter pessoa a tratamento; cirurgia; internação; aplicação indiscriminada de medicação sem consentimento ou prescrição médica; chantagem; castigos e penitências físicas; trabalhos extenuantes e abusivos; aulas ou sessões de aconselhamento; isolamento social; extorsão; cultos; grupos de oração; ritual ou tarefa religiosa e espiritual; destinadas a tentativa de “correção” de sua orientação sexual, identidade e/ou expressão de gênero;
II – promover ou anunciar tratamento ou serviço, destinado a tentativa de “correção” da orientação sexual, identidade e/ou expressão de gênero de pessoas LGBTQIAP+;
III – obter, direta ou indiretamente, qualquer tipo de vantagem material oriunda de tratamento ou serviço, destinado a tentativa de “correção”, da orientação sexual, identidade e/ou expressão de gênero de pessoa LGBTQIAP+;
IV – proferir ameaças, chantagem emocional, palestras, aconselhamento, a fim de induzir a “correção” da orientação sexual, identidade e/ou expressão de gênero de pessoa LGBTQIAP+;
V – promover encontros, retiros, acampamentos, jornadas, mentiras ou qualquer tipo de reunião, aberta ou fechada, que tenha como objetivo a indução de pessoa LGBTQIAP+ a “corrigir” sua orientação sexual, identidade e/ou expressão de gênero;
VI – expor ou coagir, a pessoa LGBTQIAP+, em cultos, missas ou sessões religiosas, a assumir sua orientação sexual, identidade e/ou expressão de gênero, bem como aceitar tratamento de “correção”;
VII – coagir ou obrigar, a pessoa LGBTQIAP+, a desempenhar castigos, se submeter a punições em dinâmicas, assistir ou ouvir conteúdos que envolvam esforços de “correção”, “demonização”, “criminalização” de orientação sexual, identidade e/ou expressão de gênero;
VIII – solicitar doação de valores ou bens, com o objetivo de proporcionar a repressão ou a tentativa de “correção” da orientação sexual, identidade e/ou expressão de gênero de pessoa LGBTQIAP+;
IX – induzir ou conduzir, a pessoa LGBTQIAP+, a tratamento religioso, de saúde ou a qualquer tipo de prática alternativa com o objetivo de tentar “mudar” sua orientação sexual, identidade e/ou expressão de gênero.
Art. 4º – São passíveis de punição administrativa a pessoa cidadã, inclusive as detentoras de função pública, civil ou militar, e toda organização social ou empresa, com ou sem fins lucrativos, de caráter privado ou público, instaladas neste Estado, que intentarem contra o que dispõe esta lei.
Parágrafo único – Às pessoas servidoras públicas que, no exercício de suas funções e/ou em repartição pública, por ação ou omissão, deixarem de cumprir os dispositivos da presente lei, serão aplicadas as penalidades cabíveis nos termos do Estatuto dos Funcionários Públicos, sem prejuízo das sanções previstas nesta lei.
Art. 5º – A prática de “terapias de conversão” da orientação sexual, identidade e/ou expressão de gênero, a que se refere esta lei, será apurada em processo administrativo, que terá início mediante:
I – denúncia da pessoa vítima;
II – denúncia de pessoa familiar ou pessoa que tenha ciência dos fatos;
III – ato ou ofício de autoridade competente;
IV – comunicado de organizações não-governamentais de defesa da cidadania e direitos humanos.
§ 1º – A denúncia poderá ser feita pessoalmente ou por carta, telegrama, telex, via internet ou fac-símile, ao órgão estadual competente.
§ 2º – A denúncia deverá conter a descrição do fato, seguida da identificação da pessoa denunciante, garantindo-se, na forma da lei, o sigilo em relação aos seus dados.
§ 3º – Recebida a denúncia, deverá o órgão competente promover a instauração de processo administrativo para apuração e imposição das penalidades cabíveis.
Art. 6º – As penalidades aplicáveis aos que praticarem quaisquer atos previstos no art. 5º, desta lei, serão as seguintes:
I – multa de 500 (quinhentos) UFEMGs – Unidades Fiscais do Estado de Minas Gerais –, em caso de primeira infração;
II – multa de 1.000 (mil) UFEMGs – Unidades Fiscais do Estado de Minas Gerais –, em caso de segunda infração;
III – multa de 1.500 (mil e quinhentos) UFEMGs – Unidades Fiscais do Estado de Minas Gerais –, em caso de terceira infração;
IV – suspensão da licença estadual para funcionamento por 30 (trinta) dias, em caso de quarta reincidência de infração; ou de identificação de maus-tratos ou violações de direitos humanos;
V – cassação da licença estadual para funcionamento, em caso de quinta reincidência de infração; ou de identificação de maus-tratos ou violações de direitos humanos.
§ 1º – As penas mencionadas neste artigo não se aplicam aos órgãos e empresas públicas, os agentes públicos que praticarem serão punidos nos termos da lei.
§ 2º – Os valores das multas previstas nos incisos I a III deste artigo, poderão ser elevados em até 10 (dez) vezes, quando a pessoa vítima for menor de 18 (dezoito) anos, pessoa indígena ou quilombola; os valores arrecadados com estas multas serão destinados ao fundo estadual de direitos da pessoa LGBT.
§ 3º – Quando imposta a pena prevista no inciso V deste artigo, a autoridade responsável pela emissão da licença deverá ser comunicada e providenciará a cassação da licença estadual para funcionamento, comunicando-se, igualmente, à autoridade municipal para eventuais providências no âmbito de sua competência.
§ 4º – Sem prejuízo, tratando de pessoa profissional regularmente habilitada por órgão de classe, deverá ser encaminhada cópia do processo administrativo com a decisão da penalidade aplicada, para apuração de eventual responsabilização junto ao órgão.
Art. 7º – As despesas decorrentes da execução desta lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.
Art. 8º – Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
Sala das Reuniões, 27 de outubro de 2023.
Bella Gonçalves, vice-presidenta da Comissão de Direitos Humanos (PSOL).
Justificação: Em 1999, o Conselho Federal de Psicologia – CFP –, estabeleceu que os profissionais psicólogos não poderiam ceder ou participar de eventos ou serviços de tratamento para tentativa de reversão da homossexualidade, nem reforçar o preconceito por meio de associações entre orientação sexual ou identidade de gênero a transtornos psicológicos. Contudo, apesar dessa medida, ainda são ouvidos relatos de pessoas LGBTQIAP+ que foram submetidas aos esforços de correção.
Os esforços de correção consistem em tratamento, serviços e atividades, destinados a tentar reprimir a orientação sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero de uma pessoa. Estas práticas assumem inúmeras formas, incluindo o aconselhamento e modificação comportamental. Ressalta-se que mostram-se extremamente discriminatórias, além de comprovadamente prejudiciais ao bem-estar físico, mental e social da vítima, mesmo para pessoas maiores de 18 (dezoito) anos que consentem com o tratamento.
Tratado muitas vezes como questão de menor relevância social, o universo da sexualidade, do gênero e da diversidade humana abrange, na verdade, dimensões fundamentais da vida dos indivíduos. Com esteio na previsão da Carta Magna, que em seu art. 5º estabelece os direitos fundamentais, insculpindo o direito à liberdade e a personalidade estendido a todo cidadão, é patente a necessidade de proibição de práticas como os esforços de correção, haja vista que atentam contra o direito a personalidade e a liberdade de expressão, pensamento e sexualidade.
Ao serem visualizados os direitos de forma desdobrada em gerações, é de se reconhecer que à livre orientação sexual, identidade ou expressão de gênero, são direitos do primeiro grupo, do mesmo modo que a liberdade e a igualdade, pois compreendem o direito à liberdade, aliado ao direito ao tratamento igualitário. Trata-se assim de liberdades individuais que, como todos os direitos de primeira geração, são inalienáveis e imprescritíveis. Neste sentido, tratam-se de direitos naturais que acompanham o ser humano desde o seu nascimento, pois decorrem de sua própria natureza.
É necessário considerar que a livre orientação sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero são direitos, também, de segunda geração, por darem origem a um grupo social que deve ser protegido, por ser considerado hipossuficiente. Aqui, destaca-se que a hipossuficiência não deve ser identificada somente sob o viés econômico. É pressuposto e por causa de um especial tratamento dispensado pelo Direito. Assim, devem ser reconhecidos como hipossuficientes os idosos, as crianças, as pessoas com deficiência, as pessoas negras, as mulheres, mas também as pessoas LGBTQIAP+, por sempre terem sido alvo da discriminação social.
Ademais, à livre orientação sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero, devem ser compreendidas como direitos também de terceira geração – que compreende os direitos decorrentes da natureza humana, mas não tomados individualmente, porém genericamente, solidariamente, a fim de realizar toda a humanidade, integralmente, abrangendo todos os aspectos necessários à preservação da dignidade humana. Não podendo ser desprezado o respeito ao exercício da livre sexualidade e gênero.
Alinhado a isso, as práticas dos chamados esforços de correção, foram rechaçadas por todas as principais associações de profissionais que lidam com saúde mental. Ainda, de acordo com a Associação Médica Americana, a suposição de que a orientação sexual ou identidade de gênero de alguém pode ser alterada, não se baseia em evidências médicas ou científicas. O que tem feito com que países, como o Reino Unido, proíbam tais práticas.
Um dos estudos mais recentes publicados sobre o tema, pela JAMA Pediatrics1, uma das mais renomadas revistas científicas de medicina, realizado com cerca de 100 mil pessoas, constatou que os esforços de correção não são ineficazes apenas do ponto de vista clínico, por tratarem a orientação sexual e identidade de gênero como patologia – o que já foi comprovadamente afastado pela literatura médica – mas ainda gera inúmeros impactos negativos às pessoas a eles submetidos: o abuso de substâncias, abandono escolar, ataques de pânico, sofrimento psicológico em escala crítica, e, em casos extremos, o suicídio.
A Organização Mundial da Saúde – OMS –, também tem se oposto à realização das práticas dos esforços de correção, desde 17 de maio de 1990, quando a Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde retirou a homossexualidade do rol da lista de doenças mentais, a Classificação Internacional de Doenças – CID. Assim como em 18 de junho de 2018, retirou do capítulo de doenças mentais os “transtornos de identidade de gênero”. Com a mudança para “incongruência de gênero”, a transexualidade foi para o capítulo sobre saúde sexual.
A maior parte das organizações profissionais de saúde mental são categoricamente contra a prática das tentativas de mudança de orientação sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero, adotando declarações de política da profissão e alertas ao público sobre o perigo dos tratamentos.
Em 2012, a Organização Pan-Americana da Saúde, observou que as tentativas de mudança de orientação sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero, careciam de justificativa médica e representavam uma séria ameaça à saúde e aos direitos humanos das pessoas vítimas. Assim, em 2016, a Associação Psiquiátrica Mundial entendeu não haver evidências científicas sólidas que indicassem que a orientação sexual inata poderia ser alterada.
Nesse contexto, a função do legislador é dar concretude aos dispositivos de proteção aos direitos fundamentais, conforme consubstanciados na Constituição Federal. Assim, diante da continuidade das tentativas de mudança da orientação sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero, contrárias às garantias formais de liberdade do indivíduo, surge a imperiosa necessidade de desenvolver dispositivos legislativos que imponham penalidade específica àqueles que se furtam ao comando legal.
É importante mencionar que tais práticas são, na espécie, formas de tortura psicológica e física das pessoas vítimas que, por vezes, são submetidas aos tratamentos mais degradantes e a todo tipo de violação dos seus direitos humanos. Tudo, com a pretensão de adaptar-se a um modelo social hegemônico quanto à orientação sexual, identidade ou expressão de gênero. Tudo, já rebatido em relatório da Organização das Nações Unidas, apresentado ao Conselho Internacional de Direitos Humanos, em janeiro de 2020, como práticas que podem configurar tortura.
O Brasil como signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) tem o dever de respeitar os direitos e liberdades ali reconhecidos. Mais, amparado pela Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, recepcionada em nosso ordenamento jurídico através do Decreto de nº 4.377 de 2002, está obrigado a eliminar todo tipo de discriminação, inclusive valendo-se de medidas de caráter legislativo, para modificar e derrogar leis, regulamentos e práticas que constituam discriminação – como os esforços de correção de identidade de gênero ou expressão de gênero.
Neste contexto, a presente proposição legislativa tem por objetivo a responsabilização administrativa da prática das tentativas de mudanças destinadas a reprimir a orientação sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero de uma pessoa. Tal medida se mostra necessária para garantir a igualdade e a dignidade das pessoas LGBTQIAP+. Diante do exposto, esperamos contar com o decisivo apoio dos nobres pares para aprovação desta medida que contribuirá para o aperfeiçoamento da legislação estadual.
– Publicado, vai o projeto às Comissões de Justiça, de Administração Pública e de Direitos Humanos para parecer, nos termos do art. 188, c/c o art. 102, do Regimento Interno.