Participantes da Parada LGBTS de Brasília protestam contra a violência: o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo
A Escola Estadual Pedro II, em BH, possui cursinho pré-vestibular voltado para pessoas trans e travestis
Jovens transgêneros também costumam sofrer preconceito na rede pública de saúde, quando decidem passar pelo
Para escolher seu nome social, Libernina uniu as palavras liberdade e feminina
Escute reportagem da Rádio Assembleia sobre as políticas públicas voltadas para a juventude
Estudo revela que a maioria das vítimas de mortes por homofobia no Brasil têm menos de 30 anos

Dicionário

Jovens transgêneros: entre a luta e a discriminação

Preconceito nega direitos básicos a essa população, como educação, saúde e segurança.

Por Natália Martino
16/08/2017 - 09:00

“Eu achava que alguém tinha jogado um feitiço em mim e que um dia eu seria transformada em menina”, diz Libernina, ao se lembrar da infância. Hoje, aos 23 anos, ela se apresenta com o nome que escolheu para si há três anos, ao desembarcar em Belo Horizonte. Do passado, não quer nem o sobrenome.

A jovem, que até então vivia em Almenara (Vale do Jequitinhonha), precisou se afastar em mais de 700 quilômetros de casa para assumir sua identidade de gênero. Ela hoje se apresenta como mulher travesti bissexual. Para entender, é preciso saber diferenciar identidade de gênero e sexualidade.

Em síntese, gênero está diretamente ligado à pessoa e à forma como ela se identifica. Orientação sexual, por sua vez, tem a ver com os outros, aqueles que despertam desejos e com quem se desenvolve envolvimento físico ou afetivo.

A sexualidade é um dos temas que pautam a Semana Estadual das Juventudes, que se comemora pela primeira vez em 2017. Instituída pela Lei 22.413, aprovada pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) em 2016, a semana tem o objetivo de estimular o debate sobre medidas de proteção de segmentos jovens específicos, como negros, moradores das periferias e da zona rural.

Autorização para viver

Diante desse cenário de preconceitos e dificuldades, Libernina conta como é ser uma jovem trans. “É não saber se deixaremos de ser jovens, se teremos futuro”, afirma.

De acordo com grupos que militam pelos direitos dos transsexuais, a expectativa de vida de transgêneros no Brasil é de 35 anos. O País é o que mais mata travestis e transexuais no mundo, segundo a ONG Transgender Europe: entre janeiro de 2008 e março de 2014, foram registradas 604 mortes.

Os ataques chegam das mais diversas formas. O jovem trans João Maria, por exemplo, relata que, quando estava na Bahia, sofreu um “estupro corretivo”, nome que grupos conservadores usam para explicar a violência sexual contra esse público. Ele nem mesmo chegou a denunciar o abuso. “Preferi não correr o risco de encontrar um policial transfóbico, depois um juiz transfóbico e ser humilhado tantas vezes novamente”, explicou.

Superar essas violências demanda discutir a questão nas escolas e em outros espaços públicos para vencer os preconceitos, mas também, como salienta o psicólogo Marco Aurélio Prado, do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da Universidade Federal de Minas Gerais (NUH-UFMG), criar políticas públicas de proteção que vão de marcos legais a redes efetivas de proteção.

As demandas desse segmento da população têm sido discutidas em diversos movimentos que tratam de violências de gênero. João Maria explica que são esses movimentos autônomos, que garantem o mínimo de dignidade e ajuda aos transgêneros.

É aí que aparece o que talvez seja a característica mais marcante da juventude: força e vontade de transformar o mundo. “Tudo o que conquistamos até agora foi porque corremos atrás e agarramos com as mãos – e vamos conquistar muito mais”, arremata.

As escolas devem falar sobre gênero?

A discussão sobre gênero não é recente, como explica a professora de literatura Duda Salabert, que é transexual. “Dou aulas há 18 anos e sempre discutimos essas questões em sala de aula. É impossível estudar literatura sem fazer esse debate”, explica.

Segundo ela, tal discussão se fortaleceu especialmente depois da década de 1970, com o crescimento do movimento feminista. A diferença agora é que a realidade dos transgêneros, tantas vezes abafada, veio adicionar questões ao debate. Outra novidade é que movimentos políticos mais conservadores têm se organizado para barrar tais conversas nas escolas.

“Falar em educação de gênero é falar sobre respeito às diferenças”, defende Duda Salabert. Ela rebate, ainda, a expressão “ideologia de gênero”, por desqualificar a discussão e induzir as pessoas a acreditarem que há algum tipo de doutrinação. “Isso não existe. Não é sobre doutrinação, é sobre respeito. Não há debate mais cristão possível”, afirma.

Evasão - Estudos indicam que o índice de evasão escolar de transexuais é maior do que a média. De acordo com o psicólogo Marco Aurélio Prado, a desistência escolar em geral coincide com o período da pré-adolescência, quando as transformações corporais são mais evidentes.

Estudo do NUH-UFMG feito em 2014 com mulheres transexuais em BH ligadas ao mercado do sexo – que acaba sendo, de acordo com o psicólogo, a única opção para muitas - identificou que em quase 30% dos casos elas saíram de casa antes de completarem 15 anos. Essa porcentagem, considerando-se a margem de erro, coincide com os 31% que abandonaram a escola ainda no ensino fundamental.

Os estudos sobre homens trans são, segundo o psicólogo, mais raros. Ele afirma, porém, que eles permanecem mais tempo em casa e uma das razões é que eles seriam mais aceitáveis.

Os problemas com a escola, porém, vão além do abandono da família. Enquanto pouco mais de 50% das mulheres trans entrevistadas na pesquisa saíram de casa antes de completar a maioridade, mais de 90% abandonaram a escola no ensino médio.

As dificuldades para o término dos estudos estariam relacionadas a vários fatores, todos permeados pelo preconceito que dificulta a vida dentro e fora do ambiente escolar. “A sexualidade é do âmbito privado; o gênero, não. Você pode esconder sua orientação sexual, mas não sua identidade”, explica Duda Salabert.

O estudante Jean Paulo Gabriel, do Coletivo Metamorfose, um grupo de diversidade sexual, fala um pouco sobre essas dificuldades na escola, que depois acabam se repetindo no mercado de trabalho.

A sociedade civil e a luta por direitos

Libernina se considera sortuda. Conseguiu, pelo menos, concluir o ensino médio, mas admite que isso só foi possível porque escondeu sua identidade de gênero no período. Ela relembra também o quanto foi difícil entender sua identidade no ambiente conservador da cidade em que vivia, Almenara.

Como ninguém tocava no assunto, Libernina nunca soube o que acontecia com ela. “Percebia que era diferente dos meus irmãos, não me adaptava ao universo considerado masculino”, conta. Foi só quando leu uma entrevista com uma das primeiras transgêneras brasileiras com alguma repercussão positiva na imprensa, Léa T., que ela percebeu que não estava sozinha.

“Sou uma mulher presa em um corpo de homem”, dizia a modelo. Libernina se identificou. Hoje, a frase não faz mais sentido entre os militantes dos direitos dos transgêneros, uma vez que se tenta desconstruir a ideia de corpo certo ou errado.

Mas se a jovem está a par desses debates é porque se mudou para a Capital, onde acabou encontrando o apoio que precisava em movimentos sociais que buscam garantir direitos dos transgêneros.

A maioria das pessoas, porém, segue ignorando todos os meandros da discussão. Além da confusão entre gênero e sexualidade, muitos não sabem que não existe diferença entre transexuais e travestis.

Se o governo ainda não se encarrega de enfrentar a questão e discutir o assunto nas escolas, a sociedade civil tem se mobilizado para aumentar a inclusão de transgêneros na educação. Em Belo Horizonte, duas entidades oferecem, por exemplo, aulas de pré-vestibular especialmente para esses grupos: o Transenem e o Transvest.

Duda Salabert é idealizadora e coordenadora do Transvest. Segundo ela, a instituição é uma ONG que oferece uma série de serviços ao público transgênero, de pré-vestibular e ensino de idiomas a casa-albergue, passando por apoio jurídico, psicológico e médico. “Começamos como pré-vestibular, mas não há como ofertar educação sem o suporte para que a pessoa possa estudar”, explica.

As dificuldades com os estudos não terminam com o vestibular. João Maria, por exemplo, conseguiu vencer vários obstáculos até chegar ao ensino superior. Começou a cursar Letras na UFMG, mas desistiu no sexto período. “Acordava diariamente pensando qual seria o preconceito do dia”, explica.

João, hoje aos 26 anos, fala de outra dificuldade: acesso aos tratamentos necessários para fazer a transição de gênero. No caso dele, trans masculino, é mais difícil do que para as mulheres trans. Elas podem recorrer a hormônios facilmente encontrados em farmácias, vendidos como anticoncepcionais femininos, ainda que a recomendação seja de que o processo se dê com acompanhamento médico adequado. Já eles só têm acesso à testosterona com receita médica.

Saúde para além dos hormônios

Tratamentos hormonais, acompanhamento psicossocial e redesignação de sexo são alguns dos procedimentos de saúde que compõem o chamado “processo transexualizador”, implantado no Sistema Único de Saúde (SUS) em 2008. Desde então, alguns hospitais e ambulatórios foram credenciados no País para realizar esses procedimentos.

Para os homens transexuais, foi preciso esperar até 2013 para ter acesso, pelo SUS, a procedimentos importantes, como retirada de mamas e ovários. Pessoas transgêneros realizam transformações corporais até onde desejam – não é necessário, por exemplo, chegar até a redesignação de sexo caso não haja esse interesse.

A oferta desses serviços na rede pública de saúde foi um avanço, mas ainda há obstáculos. Primeiramente, são poucas unidades habilitadas ao trabalho. Pode-se citar o Ambulatório do Hospital das Clínicas de Uberlândia (Triângulo Mineiro), que é referência nacional no serviço.

Outro problema é que as demandas médicas dos transgêneros vão além de tratamentos hormonais ou cirurgias de transição. Marco Aurélio Prado, do NUH-UFMG, destaca que é necessário atenção integral à saúde e, muitas vezes, os médicos e profissionais da área não estão preparados para lidar com a questão e tratam com preconceito quem procura o serviço – o que acaba afastando essas pessoas.

A idade mínima para a realização do tratamento é outra barreira que os jovens trans querem vencer. Atualmente, como explica Marco Aurélio Prado, o uso de medicamentos é autorizado a partir dos 16 anos. Como, nessa idade, os caracteres sexuais já estão desenvolvidos, inicia-se o uso de bloqueadores hormonais a partir de 12 anos.

Em geral, pessoas transgêneras se identificam como do gênero oposto ao sexo biológico desde crianças e, segundo Prado, em vários países – como Argentina, Alemanha e Canadá – o direito ao tratamento no início da puberdade é garantido.

Prado explica que a transgeneridade ainda é considerada uma psicopatologia pela Classificação Internacional de Doenças (CID). O que se reivindica é que ela seja transferida para a categoria “outras formas de saúde sexual”, onde está, por exemplo, a gravidez. Assim, ser transgênero seria uma forma natural de exercer a sexualidade que, porém, necessitaria de atendimentos especiais em saúde.

Minha identidade, meu nome

Permeando todas essas questões de saúde, educação e preconceito, está o nome. Se gênero diz respeito a identidade, o nome tem papel central na discussão. Nada mais constrangedor do que uma mulher ser chamada na fila de um hospital pelo nome de um homem – ou o contrário. Por isso, reivindica-se a mudança dos documentos para reconhecimento da identidade de gênero.

Atualmente, há o reconhecimento de “nomes sociais” em órgãos públicos federais. Isso significa, por exemplo, que a carteira do SUS pode trazer o nome escolhido pela pessoa de acordo com o seu gênero. “As pessoas acham que nome social é apelido. Não é. É meu nome, minha identidade”, explica Libernina. Seu nome não poderia ser mais adequado à sua identidade: uma mistura das palavras liberdade e feminina.

O problema é que os documentos oficiais, como carteira de identidade e CPF, permanecem com o nome conferido à pessoa no nascimento. Para retificar os documentos oficiais, o processo é longo e dura, de acordo com a Defensoria Pública, de oito a dez meses.

O fato de a transgeneridade ainda ser considerada doença dificulta essa troca. É preciso laudo médico e psicológico, além de testemunhas que afirmem que a pessoa já vive como alguém de gênero oposto ao sexo biológico.

No dia 26 de julho deste ano, a Defensoria fez um mutirão para receber os pedidos de troca de nome. Eram 62 vagas, mas 132 pessoas procuraram o serviço. Segundo o órgão, não foi possível atender mais pessoas nesse dia, quando uma equipe multidisciplinar, com psicólogos de plantão, tentou facilitar o trabalho. Os que não conseguiram vagas tiveram audiências agendadas para agosto e setembro.

Conselho - Para tentar discutir, encaminhar e avançar em todas essas questões, o governador Fernando Pimentel encaminhou para a ALMG a proposta de criação do Conselho Estadual de Cidadania de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CEC-LGBT).

Em tramitação sob a forma do Projeto de Lei (PL) 4.398/17, o texto diz que o órgão deve integrar a estrutura da Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania. Sua função será propor políticas públicas e diretrizes de ação governamental para essa população.

Caberá ao conselho, por exemplo, sugerir a alocação de recursos para programas e ações voltados ao público LGBT na Lei Orçamentária Anual (LOA) e no Plano Plurianual de Ação Governamental (PPAG).

Esta é a primeira matéria de uma série especial sobre a juventude. A próxima será publicada nesta sexta sexta (18).