Da página infeliz à escrita de uma nova história
Conheça a trajetória de Sinval Bambirra, Clodesmidt Riani e Dazinho, deputados cassados após o golpe de 1964.
Logo após a deposição do presidente João Goulart, a Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) “escreveu página infeliz de sua história ao antecipar-se às decisões do regime de exceção e cassar os mandatos de três de seus deputados, que haviam sido democraticamente eleitos", conforme publicação do próprio Parlamento, "Diálogo com o Tempo: 170 anos do Legislativo Mineiro", da historiadora Maria Auxiliadora de Faria e do cientista político Otávio Dulci. Eles se referem à cassação de Sinval Bambirra, Clodesmidt Riani e José Gomes Pimenta, o Dazinho, que perderam seus mandatos no dia 8 de abril de 1964.
Os parlamentares foram eleitos em 1962 para a 5ª Legislatura (1963-1967). Eles integram a lista dos 4.862 brasileiros que perderam seus direitos políticos durante a ditadura, que perdurou até 1985. Foram os primeiros a serem cassados no Brasil. A outrora chamada “Revolução”, pelos militares, perseguiu de forma implacável todos aqueles que foram considerados apoiadores do comunismo, ainda que não pertencessem, de fato, à legenda propriamente dita, o Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Sinval Bambirra e Clodesmidt Riani se elegeram pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e Dazinho, pelo Partido Democrata Cristão (PDC). O requerimento para a cassação, protocolado no dia 3 de abril de 1964, acusava-os de infringir o artigo 20, inciso III, da Constituição Estadual vigente, que previa a perda de mandato devido a comportamentos incompatíveis com o decoro parlamentar. A acusação foi baseada em discursos realizados enquanto eles eram deputados estaduais e em documentos do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), cujos arquivos os descreviam como “agitadores comunistas”.
O deputado Athos Vieira de Andrade, em representação que pedia a cassação de seus pares, atestava que após a extinção do PCB, houve “infiltração” de comunistas em outras legendas. Para ele, Bambirra, Dazinho e Clodesmidt eram os “infiltrados” da ALMG: “são reconhecidamente comunistas, conforme comprovam, além de outros documentos, os pronunciamentos que fizeram nesta Assembleia, de acordo com o registro feito nos seus anais, pronunciamentos atentatórios ao decoro parlamentar e com ele incompatível.”
Além de Athos Vieira, outros 68 deputados assinaram o pedido de cassação. O requerimento foi entregue à Comissão de Constituição e Justiça no dia 6 de abril de 1964. Os deputados foram intimados a apresentarem defesa no dia seguinte, no entanto, já se encontravam presos. Da própria prisão, enviaram respostas às acusações.
De acordo com Maria Auxiliadora de Faria e Otávio Dulci, a comissão já havia decidido previamente pela cassação, aprovada em reunião naquele mesmo dia, após a criação às pressas e para cumprir as exigências do Regimento Interno, de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI). O parecer da CPI foi lido em Plenário no dia 8 de abril, em reunião secreta em que os 75 deputados presentes votaram a favor da cassação.
A memória da cassação se encontra viva para o próprio Clodesmidt Riani. Aos 93 anos, ainda hoje ele se refere ao fato com estranhamento. “Jamais imaginei esse desfecho. Muitos fugiram antes mesmo de terem sido convocados pelos militares. Ao tomar conhecimento de que havia um processo contra mim, me apresentei às autoridades policiais porque sou homem de bem e não tinha infringido lei alguma. Mas minha inocência não interessava aos militares ou aos parlamentares: eles já haviam se decidido sobre meu futuro”.
A viúva de Sinval Bambirra, Maria Auxiliadora Bambirra, conta que o marido também recebeu “perplexo” o documento da ALMG, informando-o de que deveria enviar sua defesa contra a representação de cassação já em curso na Casa. “Ele não esperava por isso. Sentiu-se traído e decepcionado. Bambirra estava ciente de que ele, Dazinho e Riani eram os únicos representantes de esquerda na ALMG. Esperavam por retaliações como a recusa em aprovar os projetos e requerimentos deles, mas não esperavam que os deputados chegariam a esse ponto, e por iniciativa própria”, lamenta Maria Auxiliadora.
“Éramos massacrados lá dentro”. A afirmação é de Dazinho, em depoimento para a biografia sobre ele: "Dazinho, um cristão nas Minas", de Michel Marie Le Ven, professor de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O ex-deputado se referia ao tratamento dispensado a ele, Bambirra e Riani pelos demais parlamentares. Apesar de viver diariamente essa animosidade, também se surpreendeu com a decisão da ALMG e com a ordem de prisão, anterior à própria cassação. Contudo, não considerou a possibilidade de apresentar uma defesa por escrito. Em vez disso, resolveu apresentar uma “contestação”, porque entendia que não havia motivo para se defender, uma vez que não havia cometido crime.
A ausência de decoro parlamentar, no caso dos três deputados, foi justificada pelo fato de que eles exerciam liderança no movimento sindical. Clodesmidt Riani corrobora esse ponto de vista, ao afirmar que a única motivação para a sua prisão e as dos companheiros foram as suas bandeiras. “Fomos condenados, na verdade, por defender a classe operária, maior remuneração e condições dignas de trabalho para os nossos trabalhadores."
De acordo com Maria Auxiliadora de Faria, a prisão e a cassação dos sindicalistas foi o prenúncio de que a democracia, no Brasil, tornaria-se uma lembrança remota. De fato, outras cassações por motivos ideológicos se seguiram.
Segundo o livro "Diálogo com o Tempo", mais sete parlamentares mineiros foram cassados por atos ditatoriais: Wilson Modesto Ribeiro, Antônio Pereira de Almeida, Aníbal Teixeira de Souza, Matosinhos de Castro Pinto, Raul Belém, Sebastião Fabiano Dias e Sílvio Menicucci.
Cárcere, repressão e exílio
“Numa noite recebemos a visita de um major do Exército, juntamente com um investigador de apelido Coice de Mula - ele era um dos que mais espancavam os presos. Entraram na cela do amigo Sinval Bambirra e o espancaram tanto até romper o tímpano. Vi quando ele foi retirado todo ensanguentado. Posteriormente foi a vez de José Gomes Pimenta, o espancaram muito também. Ouvíamos os gritos dele e o barulho das pancadas. Chegou a minha vez, eles me retiraram da cela, não me espancaram, mas o Coice de Mula me agredia verbalmente e aos gritos dizia que eu não tinha jeito...” O relato de Clodesmidt Riani oferece um panorama do que foram os dias de prisão durante o regime militar.
Riani fora condenado a 17 anos de reclusão, no mesmo julgamento em que Bambirra e Dazinho foram sentenciados a cumprirem penas semelhantes. Foram penalizados conforme os artigos 2º, alínea IV, 8º e 40º da Lei 1.802, de 1953, que define os crimes contra o Estado e a ordem política e social. Em síntese, foram acusados e condenados por “subverter a ordem social” com a finalidade de instalar regime de classe social; opor-se ao funcionamento de algum dos Poderes da União; e por terem sido considerados “cabeças” de movimentos de resistência à ditadura.
A audiência de sentença ocorreu em 14 de dezembro de 1965, na 4ª Circunscrição Judiciária Militar, em Juiz de Fora (Zona da Mata). Clodesmidt Riani afirma que quando recebeu a condenação, já estava preso há um ano e oito meses. “Embora eu tenha obtido decisão favorável do Supremo Tribunal Federal, reduzindo a minha pena para um ano e dois meses, acabei recluso cinco anos e oito meses. Só fui solto em 5 de março de 1971”, relembra.
“Além das inúmeras torturas físicas sofridas ao longo de 15 meses, o Sinval era exposto recorrentemente a simulações de fuzilamentos. Os agentes o colocavam com o rosto voltado para uma parede e fingiam atirar”, conta Maria Auxiladora Bambirra. Essa e outras recordações do cárcere o perseguiram por toda vida, enfatiza a viúva. Segundo ela, até morrer, o marido sonhava com o “paredão militar”.
Por força de um habeas corpus, Bambirra obteve liberdade provisória, mas foi alertado de que, em pouco tempo, seria preso novamente. O ex-deputado já se encontrava muito debilitado, a essa altura já havia perdido a audição. Maria Auxiliadora lembra que viveram três meses na clandestinidade até conseguir asilo político no México. “O então deputado federal José Aparecido de Oliveira interveio junto à embaixada mexicana e finalmente saímos do País em 31 de dezembro de 1965”. Em seguida a família foi para a Alemanha, em busca não só de asilo como também de tratamento médico para Sinval. Ele e a esposa conviveram com o símbolo da guerra fria, o muro de Berlim, até 1979, quando foi sancionada a Lei da Anistia.
Dazinho, após os anos de reclusão e tortura, recebeu propostas de asilo político de países como Chile e França, mas não as aceitou. Embora ele já não acreditasse mais na Justiça, achava que “as coisas estavam acontecendo aqui, e deveriam ser resolvidas aqui”. De acordo com sua biografia, o outro motivo para ter ficado no Brasil foram os filhos. “Tinha nove filhos pequenos... Como o meu pessoal iria sobreviver? Não tinha como levá-los, então fiquei”.
ALMG fez reparação histórica
A ALMG buscou reparar o erro cometido em 1964 com a restituição simbólica dos mandatos dos deputados cassados durante o período ditatorial, dentre outras medidas. Por meio da Resolução 5.144, o Poder Legislativo reconheceu que a cassação teve motivação exclusivamente política e ideológica. Já a Lei 11.732, de autoria do então governador Hélio Garcia, concedeu pensão especial a Dazinho, Riani e Bambirra.
As quase quinhentas páginas que compõem o processo de cassação dos deputados, incluindo as atas das reuniões da ALMG, que ocorreram secretamente, foram liberadas para consulta pública em 1998. O acesso foi possível devido à mudança no Regimento Interno da Casa, propiciada por emenda do ex-deputado Sebastião Navarro, que instituiu prazo para abertura das atas de reuniões secretas. Na época, o parlamentar afirmou que todos os documentos eram peças de valor histórico, mas, que, sem dúvida, as de maior impacto seriam aquelas envolvendo a cassação deles.
Em 2000, foi aprovado projeto do deputado Durval Ângelo (PT) que reajustou a pensão deles, equiparando-a ao subsídio mensal de deputado estadual. O projeto deu origem à Lei 13.736, sancionada pelo então governador Itamar Franco. Em abril de 2001, Dazinho, Riani e Bambirra foram homenageados e participaram de solenidade na Assembleia, recebendo uma placa alusiva à pensão e ao reconhecimento da ALMG de que a cassação foi indevida.
De acordo com Maria Auxiliadora Bambirra, as medidas tiveram grande significado para Sinval. “Não há como apagar ou reparar plenamente o que os pares e o regime de exceção fizeram com meu marido, mas o Sinval se emocionou com o pedido formal de desculpas da ALMG. De alguma forma, ele pôde vivenciar o seu desejo de justiça antes de vir a falecer, o que aconteceu dois anos depois, em 2003", conta.
Para Clodesmidt Riani, a reabilitação como deputado, o reconhecimento de que a cassação foi equivocada e as inúmeras homenagens e prêmios recebidos trouxeram certo alento e confiança de que o tempo de repressão tinha ficado para trás. Mas o mais importante para ele foi ter percebido, duas décadas depois, que as lutas travadas naquele período proporcionaram conquistas relevantes para o País, sobretudo para os trabalhadores.