Dos porões da ditadura às estantes do Arquivo Público
CPI realizada em 1998 para apurar destruição de arquivos do extinto Dops inicia resgate histórico.
A expressão queima de arquivo pode ser entendida, aqui, em seu sentido literal. A Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) instaurou, em março de 1998, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar a destinação dos arquivos do extinto Departamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais (Dops-MG), instituído para combater a militância política contrária ao regime militar.
Os trabalhos da comissão se debruçaram sobre três aspectos: a denúncia de que os documentos originais do Dops foram incinerados, o uso indevido de informações contidas nos registros policiais produzidos no período e o descumprimento da Lei Estadual 10.360, de 1990, a primeira lei ordinária a determinar a transferência dos documentos para o Arquivo Público Mineiro (APM). O Decreto 46.143, editado pelo governador em janeiro deste ano, regulamenta a Lei 13.450, de 2000, que, por sua vez, alterou a norma anterior.
O relator da CPI, deputado Ivair Nogueira (PMDB), conta que, na verdade, as leis ordinárias representaram mais um esforço do Legislativo para dar acesso aos arquivos, uma vez que a própria Constituição do Estado já havia determinado a transferência dos documentos para o APM. “Como a própria Constituição e a Lei 10.360 não haviam sido efetivadas quase dez anos depois de entrarem em vigência, nós entendemos que deveríamos cobrar o seu cumprimento do Executivo”, explica o parlamentar.
Ao resgatar a construção do direito de acesso a esses documentos, a ALMG é apontada como protagonista desta difícil empreitada, assim reconhecida inclusive pelo APM. Conforme o texto de apresentação do acervo: “De acordo com a Constituição Mineira de 1989, a documentação deveria ser transferida para o Arquivo Público Mineiro. No entanto, somente em 1998, após a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Assembleia Legislativa, o Arquivo Público Mineiro recebeu a documentação do extinto Dops”. A comissão foi instaurada a requerimento do deputado Adelmo Carneiro Leão (PT).
“Não poderíamos permitir que a memória desses fatos fosse apagada. Apesar de tristes, eles fazem parte de nossa história. A evolução da sociedade passa justamente pela capacidade de aprender com os erros do passado ou perpetuar as descobertas, o conhecimento construído”, pondera Adelmo, ao falar sobre a trajetória da CPI para garantir a preservação da documentação.
O parlamentar acredita que, graças à atuação da ALMG junto aos diversos movimentos de defesa dos direitos humanos, como o Tortura Nunca Mais, não aconteceu o pior: a destruição de todos os documentos. Para ele, o decreto “tardio” (ele se refere ao Decreto 46.143, de 2013, editado quase 13 anos depois da primeira leva de documentos ter sido enviada ao APM) é inerente às “forças conservadoras” do Estado. “Quando os cidadãos não se mobilizam, os interesses de poucos se sobrepõem ao interesse público”, conclui Adelmo.
“Desova” de fichas
Um dos pontos mais polêmicos da CPI foi a confirmação de que os documentos originais tinham sido devastados e, paradoxalmente, o recebimento de parte desses arquivos. Em depoimento, o então delegado da Polícia Civil Ediraldo Brandão confirmou a incineração da documentação e afirmou ser tal ato um procedimento de praxe, feito periodicamente. Ainda segundo o depoente, os documentos foram levados ao forno da Siderúrgica Mannesmann, restando apenas os rolos de microfilmagem.
“Os próprios representantes da Secretaria da Segurança Pública que atuaram ou ainda atuam na área de informações afirmam que toda a documentação foi incinerada, que não houve consideração sobre o seu valor histórico e que não houve lavratura do termo em livro próprio, exigências estabelecidas em lei”, diz o relatório final da CPI.
O mesmo relatório informa como parte desses documentos considerados originais, e em tese destruídos, chegou até os membros da CPI. O primeiro lote de fichas de identificação do Dops foi enviado anonimamente à Rádio CBN. Após essa primeira remessa, feita em março de 1998, outras vieram, ocorrências reportadas pelo relator da comissão, deputado Ivair Nogueira: “Paralelamente à investigação dos fatos referentes ao processo de incineração e à guarda dos microfilmes, o relator desta comissão recebeu, em ocasiões diferentes, consideráveis volumes de fichas com dados sumários e fotografias de pessoas. Em todas elas, havia o cabeçalho “Secretaria de Segurança Pública - Coordenação Geral de Segurança (Coseg)”.
O relator pontuou também as inúmeras contradições a respeito do destino da documentação. O impasse sobre a incineração dos arquivos não encontrou resposta definitiva. Não se sabe quantos documentos, de fato, tornaram-se cinzas e quantos ainda podem ser descobertos. Contudo, o deputado comemora, pois acredita que o trabalho da comissão foi significativamente produtivo.
Para ele, o resultado mais relevante de ter suportado as ameças constantes e os obstáculos encontrados para apurar esses fatos foi ver encaminhados para o Arquivo Público Mineiro as 924 fichas em papel e os 98 rolos de microfilmagem. “Temo que esse acervo estivesse perdido ou fosse completamento destruído, se a ALMG não tivesse feito fazer valer a lei e se empenhado para dar transparência à história de Minas e, particularmente, preservado a história de vida de muitos mineiros”, destaca o relator da CPI.
Resiliência e militância
“Me vigiavam há muito tempo. Fui preso em casa no dia 7 de dezembro de 1971. Eu não pude fugir ou me esconder. Meu filho havia acabado de nascer. Com o parto, minha mulher ganhou 33 pontos. Levaram meu filho com apenas cinco dias de vida. Depois de 40 dias, entregaram a criança aos avós maternos. Mas, antes, usaram-na para nos atormentar. Minha mulher, já debilitada, ainda suportou seis meses de tortura. Eu fui levado para o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna). Durante 45 dias, fui torturado fisicamente. Queimaram com cigarros meu ânus, fui colocado no pau de arara, recebi eletrochoques. Além das agressões físicas, fui torturado psicologicamente, chegaram a me mostrar um atestado de óbito da minha mulher”. O relato é de Sálvio Humberto Penna, que depôs na CPI do Dops sobre a sua dificuldade de obter um atestado de bons antecedentes junto à Polícia Civil devido aos registros policiais referentes ao período em que foi militante político.
De acordo com Sálvio, em 17 de dezembro de 1997, ele havia tentado obter o documento em um posto de identificação, mas o sistema acusava sua implicação na Lei Nacional de Segurança Pública, embora a Lei da Anistia (Lei Federal 6.683, de 1979) já estivesse em vigor desde 1979. Outros dois depoentes relataram o mesmo problema.
Segundo o relatório final da CPI, “esses três casos demonstram que as fichas produzidas durante o regime militar ainda continuam sendo usadas”. Para os membros da comissão, isso representou mais uma conduta lesiva do Estado para com aqueles que já foram dura e equivocadamente penalizados.
Sálvio, desde os questionamentos feitos à Polícia Civil pela CPI, pôde ir tranquilo a um posto para retirar seu atestado e ainda celebrou a descoberta dos arquivos. “Este acervo representa uma vitória de todos aqueles que resistiram, que desejavam construir um país mais justo e livre. Os processos, as indenizações são conquistas importantes, mas ainda é preciso lutar”, avalia o militante, ao comentar o restabelecimento da condição de cidadão daqueles que foram presos durante o regime.
O depoente diz acreditar ainda que o acesso aos documentos pode trazer informações novas, sobretudo, sobre as vítimas da ditadura. Para ele, há muitos fatos a serem esclarecidos: “Não sabemos onde estão enterrados muitos dos que são considerados até hoje desaparecidos”. Esse é justamente o caso de Carlos Alberto Soares de Freitas, outro mineiro perseguido pela ditadura.
O nome do militante, conhecido como Beto, consta no Anexo I da Lei Federal 9.140, de 1995. Ele é uma das 136 pessoas desaparecidas durante o período de exceção, que foram oficialmente reconhecidas como mortas por responsabilidade do Estado. Segundo a biografia Seu amigo esteve aqui, escrita pela jornalista Cristina Chacel, Carlos Alberto não fora mais visto depois de ter sido preso no Rio de Janeiro em 15 de fevereiro de 1971.
Em depoimento à biógrafa, a também mineira Inês Etienne Romeu conta que foi torturada e seviciada na “Casa da morte”, onde Beto teria sofrido os mesmos suplícios. O centro clandestino, localizado na serra de Petrópolis, era utilizado pelos agentes da repressão para torturar os presos políticos.
A informação teria sido revelada pelo próprio algoz, o ex-sargento Ubirajara Ribeiro de Souza, dirigindo-se a ela com o seguinte comunicado: “seu amigo esteve aqui”. O militar se referia ao sociólogo formado pela UFMG Carlos Alberto Soares de Freitas, que havia adotado na época o codinome de Breno. Por ironia do destino, Ubirajara conhecera Beto anos antes em Belo Horizonte, quando ambos jogavam basquete em equipes locais. Segundo a biografia, o militar teria dado a Inês detalhes da morte de Beto, que teria sido exterminado com um tiro na cabeça depois de “terem lhe arrancado a humanidade”.
Carlos Alberto foi condenado junto a muitos outros “subversivos”, conforme lê-se no ofício 780 da circunscrição militar de Juiz de Fora: “decidiu o seguinte: condenar à revelia todos como incursos no art. 36 do Dec.-lei 314/67”. O crime consistia em “constituir, filiar-se, manter organização de tipo militar, de qualquer forma ou natureza, armada ou não, com ou sem fardamento, com finalidade combativa”. Na mesma sentença foi condenado também o estudante mineiro Apolo Heringer Lisboa, um dos líderes, juntamente com Beto, do Comando de Libertação Nacional (Colina), organização de esquerda que pretendia vencer os militares e propor uma sociedade socialista. A data do documento é de 10 de julho de 1972. No entanto, Beto já havia sido preso em 71.
Felizmente, Apolo, que também prestou depoimento à CPI do Dops em 1998, não teve o mesmo fim do companheiro. Heringer foi preso pela primeira vez em 1964, um mês após o golpe militar. Na época, ele já atuava no movimento estudantil e escreveu um manifesto contra o golpe, o que motivou sua detenção. Já em 1967, quando foi preso pela segunda vez, o militante já fazia parte de organizações políticas como o Colina.
O médico e professor, recentemente aposentado pela UFMG, explica que, ao longo do regime, as tensões políticas e a reação dos militares aos movimentos de resistência oscilaram bastante. Para Apolo, é preciso desconstruir a ideia de que a ditadura foi “uma coisa só”. Ele afirma ainda que o Brasil, assim como o mundo, estava divido em dois grandes blocos (EUA x União Soviética), conforme a lógica da guerra fria. Ele defende que a Comissão Nacional da Verdade vá além da apuração dos crimes cometidos contra os direitos humanos. “Ela deve propor uma reflexão sobre os acontecimentos históricos, propor uma tentativa de superação das causas que levaram ao enfrentamento. Todos precisam reconhecer os seus erros”.
Museu - A sede do atual Departamento de Investigação Antidrogas da Polícia Civil, localizado na Avenida Afonso Pena, na Capital, abrigou o extinto Dops. Para Henriger, o local deveria ser transformado em um museu sobre a repressão política. “O verdadeiro reconhecimento do Estado aos militantes que lutaram contra a ditadura seria dar os seus nomes às ruas e às praças mineiras”.
Ele propõe ainda que aqueles que tiveram seus mandatos cassados por imposição do regime militar tivessem suas fotos expostas nas casas legislativas do País. No âmbito da ALMG, ele se recorda dos ex-deputados Clodesmidt Riani, Sinval Banbirra e José Gomes Pimenta (conhecido como Dazinho), que perderam seus mandatos durante a ditadura.
“Silenciar é consentir, é desertar, é tornar-se conveniente”. Carlos Alberto Soares de Freitas ofereceu essa resposta ao regime militar após ser preso pela primeira vez pelo Dops por “crime de opinião”. Ele e tantos outros que ousaram lutar foram calados.
A pressão popular, somada à atuação da ALMG, possibilitou que histórias como as dele fossem contadas. Para os deputados Adelmo Carneiro Leão e Ivair Nogueira, a recuperação, a preservação e a abertura dos documentos vão permitir que tais brasileiros não sejam esquecidos e que o Estado possa aprender com o passado. A transferência em curso dos ainda desconhecidos arquivos do Dops ao Arquivo Público Mineiro sugere, enfim, que o silêncio deu lugar à construção da memória – desalentadora, mas necessária.
Esta é a terceira da série de matérias sobre os arquivos do extinto Dops-MG. O processo de abertura dos documentos que registraram as atividades da repressão política no Estado foi abordado também em duas outras matérias, já publicadas no site da ALMG. Confira no "Saiba Mais" abaixo.