Dedos queimados e calos são cicatrizes comuns deixadas pelo crack nas mãos de quem fuma
A coordenadora do Mães de Minas contra o Crack, Dalvineide Almeida Santos
Sílvia Pereira dedica sua vida para ajudar o filho a largar o crack

Famílias de usuários de crack também são vítimas

Agressões e furtos dentro de casa fazem parte da rotina de quem convive com dependentes da droga.

Por Natália Martino
08/07/2013 - 08:00

Com a voz embargada, Sílvia de Araújo Pereira dos Santos diz que não aguenta mais. Nas próximas frases, ela já não consegue conter as lágrimas. “Luto há quase dez anos com ele, mas ele só piora. Já tentou me matar duas vezes, rouba tudo o que vê pela frente, está sempre machucado”. Aos 47 anos de idade, Sílvia dedica a vida à busca de uma cura para o filho, usuário de crack. A confissão é feita para uma pequena audiência formada apenas por mulheres que viveram, ou ainda vivem, dramas parecidos com o dela. Nos fundos de uma casa no bairro Sagrada Família, na Zona Leste de Belo Horizonte, ela participa pela primeira vez de uma reunião do grupo Mães de Minas contra o Crack. “Não podemos desistir”, é o que ela escuta da coordenadora, Dalvineide Almeida Santos, que durante mais de 20 anos conviveu com um filho usuário de drogas.

A fim de combater o uso de drogas e discutir tratamentos para os dependentes químicos, entre outros, a Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) realizou o Ciclo de Debates Um Novo Olhar sobre a Dependência Química, nos dias 24 e 25 de junho, e promove, em agosto deste ano, a 2ª Marcha contra o Crack e Outras Drogas, além de produzir uma série de matérias sobre o tema.

As duas mulheres nunca usaram nenhum tipo de droga ilícita. Mas os efeitos devastadores do crack invadiram, ainda assim, suas vidas. Roubo de objetos ou dinheiro em casa, agressividade excessiva e falta de notícias durante dias permeia todos os relatos de familiares de dependentes de crack.

De acordo com a diretora do Centro Mineiro de Toxicomania (CMT-Fhemig), Raquel Martins Pinheiro, a droga desinibe e cria um cenário favorável a condutas pouco aceitas socialmente. “O crack não deixa ninguém agressivo, só permite que ele libere a agressividade que, em outras circunstâncias, controlaria”, explica.

A substância química também pode gerar quadros de desnutrição, ansiedade e depressão. Enquanto o usuário sofre sozinho esses efeitos, as pessoas próximas observam o quadro sem saber como ajudar. “Qualquer conversa, proibição ou tentativa de ajudar o torna violento”, lamenta Sílvia durante a reunião do Mães de Minas contra o Crack.

Mães de Minas contra o Crack

O grupo de apoio a familiares foi fundado por Dalvineide Santos há três anos para ajudar os que estão ao lado do usuário. “Nos tornamos codependentes, nossa vida passa também a girar em torno do crack. Precisamos nos fortalecer antes de ajudar o outro”, diz ela, que conhece de perto o problema e é hoje uma das pessoas que participa ativamente das discussões sobre o tema na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG).

Desde o início de 2013, a instituição criou uma comissão permanente para discutir soluções que pudessem livrar usuários e familiares dos efeitos nefastos da droga. Formas de financiamento de políticas públicas sobre o tema, tipos de tratamento mais eficientes e a melhor forma de tratar os dependentes dentro do sistema penal são levados a audiências públicas que contam com especialistas de vários segmentos. Dalvineide está sempre entre eles, contando sua experiência e a de várias famílias que ajudou nos últimos anos.

O filho do coordenadora do Mães de Minas contra o Crack tem hoje com 38 anos de idade e foi usuário durante mais de uma década. No início, Dalvineide diz que fazia vista grossa – quando algum objeto de valor sumia, ela logo criava uma desculpa como “esqueci em algum lugar”. Mas a situação foi piorando até o dia em que ela acordou com o quarto do filho pegando fogo – cortinas, livros, edredon, tudo – enquanto ele dormia, desmaiado pelo abuso de uma substância química. Dalvineide precisou assumir o problema e começar a enfrentá-lo. Denunciava roubos na polícia, proibia de voltar para casa de madrugada, expulsava de casa, levava para tratamento. Nada funcionava. A ineficácia de todas as investidas é também um denominador comum entre as histórias. Nesse contexto, os familiares alternam raiva, compaixão e desespero.

Em geral, a rotina passa a girar em torno do dependente. “Depois de 32 anos longe da escola, eu tinha voltado a estudar. Adulta, cursei da 5º à 8º série do ensino fundamental. Mas aí o Gustavo se envolveu com o crack”, conta Sílvia, que precisava sair das aulas quase diariamente para socorrer o filho até abandonar de vez a escola. Ela também precisou abrir mão da sua casa.

“Depois da segunda vez que ele tentou me matar, tive que ir embora. Hoje, ele nem sabe onde eu moro, precisei me esconder”, conta. Antes dela, sua outra filha já tinha fugido de casa com o marido, também sob ameaças de Gustavo. Na antiga casa, agora só vive o filho e o crack. Nem o cachorro e os dois gatos da família sobreviveram. “Ele furou os bichos vivos”, diz Sílvia. Semanalmente, ela vai visitar o filho e leva comida para ele, mas até isso tem ficado difícil. “Botijão de gás não dura um dia. Ele troca por mais pedras”.

Sílvia segue sozinha na expectativa de que a vida volte ao normal. O conselho da terapeuta Raquel Martins, do CMT, é de que a postura seja dura. “O usuário tem que saber que, se quiser ajuda para parar, ele encontrará em casa, mas que roubos e agressões não serão aceitos na família”, diz.

Dalvineide, coordenadora do Mães de Minas, só conseguiu afastar seu filho da droga quando o expulsou de casa e não só deixou de oferecer comida como também proibiu outros familiares e amigos de o fazerem. “Depois de dois anos, ele ficou desempregado, brigou com o dono do barracão que alugava e já não tinha para onde ir. Veio pedir ajuda e está agora há um ano sem fumar crack internado em uma comunidade terapêutica”, conta.

Claro que não é fácil. “Precisei me tratar e me fortalecer para ter coragem de fazer o que era preciso. Não podia deixar que ele continuasse colocando em risco a minha vida e as vidas dos meus outros seis filhos”, diz. Foi para ajudar as famílias a se fortalecerem que Dalvineide fundou o Mães de Minas contra o Crack. “É preciso voltar a se cuidar, a realizar suas tarefas diárias e tirar o usuário do centro da sua vida, senão ficará tão doente quanto o dependente. E quem está doente não ajuda ninguém”, explica.

Para Sílvia, que está em sua primeira reunião com o grupo de apoio, a solução ainda parece distante. Mas entre lágrimas e súplicas de ajuda, ela deixa claro que não vai desistir. “Minha esperança só vai acabar se o meu filho morrer”, diz.

Como ajudar - O primeiro passo para ajudar um dependente químico é saber e reconhecer que existe um problema. O papel das pessoas próximas a ele é fundamental na superação do problema e é indicado procurar grupos locais de apoio ao usuário e à família - que podem ser indicados pelo Viva Voz (0800 5100015), linha nacional de orientações e informações sobre o uso de drogas.

DE OLHO NOS SINAIS

Conheça algumas das mudanças comportamentais que podem ser um sinal de alerta:

Queda no desempenho escolar ou profissional

Mudanças no vestuário

Excesso de mentiras ou respostas evasivas

Gastos financeiros maiores do que os habituais

Mudanças radicais nos assuntos e atividades de interesse

 

AJUDA EM CASA

Seguem dicas de especialistas sobre como lidar com o problema:

Admitir que existe um problema

Oferecer tratamento ao usuário, seja ele médico ou psicológico

Mostrar-se acolhedor, mas não permissivo

Evitar consumir drogas, mesmo que lícitas como álcool e cerveja, na presença do dependente

Reduzir o acesso do dependente a recursos financeiros

Impedir o contato com grupos de amigos que configuram risco

Impedir que o usuário frequente lugares onde o consumo de drogas é facilitado

Mostrar exemplos da mídia de vidas arruinadas pelas drogas e conversar sobre o alto custo do prazer alcançado com a substância química

Apresentar outras fontes de prazer possíveis

Estimular sonhos e planos para o futuro

Fontes: Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas e Associação Comunitária Social e Beneficente Ebenézer (Acosbe)

Esta é a última matéria da série sobre o enfrentamento ao crack.