PAULO ROBERTO DA COSTA KRAMER, Mestre e Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - IUPERJ. Professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília - UnB.
Discurso
Comenta o tema do evento.
Reunião
2ª reunião ESPECIAL
Legislatura 16ª legislatura, 4ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 24/02/2010
Página 38, Coluna 2
Evento Painel temático: "Os dilemas da representação e o papel do Parlamento nas democracias contemporâneas."
Assunto LEGISLATIVO. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. (ALMG).
Observação Este evento é parte das ações da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais para subsidiar a elaboração de seu planejamento estratégico para 2010 - 2020.
Legislatura 16ª legislatura, 4ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 24/02/2010
Página 38, Coluna 2
Evento Painel temático: "Os dilemas da representação e o papel do Parlamento nas democracias contemporâneas."
Assunto LEGISLATIVO. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. (ALMG).
Observação Este evento é parte das ações da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais para subsidiar a elaboração de seu planejamento estratégico para 2010 - 2020.
2ª REUNIÃO ESPECIAL DA 4ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 16ª
LEGISLATURA, EM 11/2/2010
Palavras do Sr. Paulo Roberto da Costa Kramer
Bom dia a todos. Na pessoa do Presidente, Deputado Alberto Pinto
Coelho, cumprimento todos os presentes. Agradeço a oportunidade de
participar, ao lado de colegas tão brilhantes, de um evento tão
importante como este do planejamento estratégico da Assembleia
Legislativa de Minas Gerais. Não preciso estender-me muito por
causa da excelência da civilização mineira, sobretudo da sua
cultura política, que elevou a política à qualidade do que ela
realmente é: muito mais do que uma ciência, uma arte. Por isso
também estou muito feliz em estar aqui.
Não seguirei servilmente a ordem das minhas transparências
porque, como sempre faço, produzi transparências demais. Mas
todos, se quiserem, poderão ter acesso à íntegra da apresentação.
A primeira coisa que gostaria de esclarecer é que se fala muito
em democracia participativa, democracia das bases, democracia
isso, democracia aquilo. Eu sou um liberal, graças a Deus, e, na
minha opinião, nem a lição da democracia representativa nós
fizemos direito, porque laboram contra isso, no Brasil, forças
muito poderosas. Peço licença a vocês para me remeter ao
pensamento de um dos maiores filósofos e analistas políticos
brasileiros vivos - não sei se é do conhecimento de todos, mas, se
não for, é uma pena -, que é o Prof. Antônio Paim, o grande
historiador da filosofia no Brasil. É um polímata, é uma
inteligência multiforme que se multiplica numa série de áreas,
como a análise política e a história do Brasil. Ele escreveu um
livro imperdível, “Momentos decisivos da História do Brasil”,
publicado em 2000. Tenho a honra de ser amigo dele. Sempre
conversamos, e o Paim sempre me alerta: “Paulo, as forças que
militaram historicamente contra a representação, o sistema
representativo no Brasil são muito poderosas”. É uma gororoba
ideológica, com origem na contrarreforma. Não precisamos pensar na
contrarreforma apenas como aqueles desfiles na Espanha, com os
indivíduos encapuzados, como a Ku Klux Klan. A contrarreforma
possui avatares modernos, como a Teologia da Libertação. Mas
também é contrarreforma no que diz respeito ao ódio, ao sistema
representativo, à propriedade privada, enfim, à sociedade liberal
moderna. Com o tempo, essa carapaça ideológica contrarreformista
assimilou outras tendências da história das ideias no Brasil, como
o positivismo. Por sua vez, o positivismo é - vamos usar uma
palavra que está na moda - um avatar, uma manifestação de um
antigo fenômeno na história do pensamento, na história política do
Brasil - o patrimonialismo na sua versão modernizadora. O
patrimonialismo não é necessariamente uma convocação ao atraso;
ele possui vertentes modernizadoras, como as reformas do Marquês
de Pombal, em Portugal. O positivismo brasileiro, em sua versão
política, se entroncou no patrimonialismo modernizador. O Estado
foi o laboratório pioneiro dessas ideias, como o Rio Grande do
Sul, cujos três primeiros governantes foram positivistas - Júlio
de Castilhos, Borges de Medeiros e Getúlio Vargas. A partir da
Revolução de 30, quando Getúlio Vargas empalma o poder no Brasil,
tem-se a oportunidade de projetar nacionalmente a versão
positivista do nosso patrimonialismo modernizador. No que diz
respeito ao sistema representativo e às vicissitudes sofridas por
ele no Brasil, fica muito claro o exemplo do Pombal. O que ele
queria? Para Pombal, iluminismo era ou deveria ser ciência,
tecnologia, técnica, tudo isso aplicado ao fortalecimento do
Estado, menos direitos humanos, direitos dos cidadãos e sistema
representativo. Nos centros em que essas ideias foram geradas, as
coisas caminhavam lado a lado - iluminismo, ciência, tecnologia,
economia de mercado e fortalecimento dos direitos dos cidadãos -,
mas não para Pombal. Podemos dizer que, no controle da alfândega,
em Lisboa, determinada parte do pacote podia entrar, mas outra,
como o sistema representativo e os direitos dos cidadãos, não:
“Vamos usar esses mecanismos para o fortalecimento do Estado, não
do cidadão”. Isso limitava o Estado, a grande bandeira do
liberalismo. Não sei quantos dos senhores estão familiarizados com
o pensamento que, como diria Nelson Rodrigues, é o puro, o
legítimo, o escocês. Benjamin Constant de Rebeque não deve ser
confundido com o positivista Benjamin Constant Botelho de
Magalhães, um dos padrinhos da nossa República. A propósito, sou
monarquista também.
Vejam só que definição bacana de sistema representativo. O
Benjamin Constant de Rebeque percebeu que representação é, antes
de mais nada, representação de interesses. Então, nada mais
distante da nossa gororoba ideológica contrarreformista
positivista. Vamos ler o que ele diz: “O que é o interesse geral
senão a transação que se faz entre os interesses particulares? O
que é a representação geral senão a representação de todos os
interesses parciais que devem transigir naquilo que lhes é comum?”
A política é a arte da negociação. “O interesse geral é diferente,
sem dúvida, dos interesses particulares, mas não é contrário a
eles”. Quer dizer, refere-se àquela balela rousseauniana da
vontade geral que só iluminados como Rousseau supostamente seriam
capazes de captar e traduzir para nós, pobres mortais: “Fala-se
sempre como se uma pessoa ganhasse o que os outros perdem. O geral
não é senão o resultado desses interesses combinados. Deles difere
como o corpo difere de suas partes. Os interesses individuais são
os que mais concernem aos indivíduos; os interesses dos distritos
são os que mais concernem a estes. Ora, são os indivíduos e os
distritos que compõem o corpo político; são, consequentemente, os
interesses desses indivíduos e desses distritos os que devem ser
protegidos. Ao protegê-los, a todos, suprimir-se-á de cada um
deles o que prejudica os demais, disso resultando o verdadeiro
interesse público, que coincide com os interesses individuais, uma
vez que lhes foi tirado o poder de se prejudicarem mutuamente. Cem
Deputados nomeados por cem distritos de um Estado levam ao seio da
assembleia os interesses particulares, as preocupações locais dos
seus representados. Essa base é útil a eles: forçados a
deliberarem juntos, logo percebem os sacrifícios respectivos que
são indispensáveis. Esforçam-se para diminuir a extensão deles, e
nisso reside uma das maiores vantagens da forma de sua designação.
A necessidade acaba sempre por uni-los numa transação comum, e
quanto mais fragmentadas tiverem sido as eleições, a representação
consegue um caráter mais geral.”. Isso é espetacular. Estamos nos
referindo a um grande arquiteto do pensamento político. É uma pena
que, muitas vezes, ao longo de semestres inteiros, lá na
Universidade de Brasília, seja eu apenas o único que fale para os
alunos de Benjamin Constant de Rebeque. Continuando a leitura:
“Convém que o representante de um distrito atue como um órgão do
mesmo, que não abra mão de nenhum dos seus direitos, reais ou
imaginários, senão depois de tê-los defendido; que seja parcial na
defesa dos interesses de que é mandatário, porque, se cada um for
parcial nessa defesa, a parcialidade de cada um, unida e
conciliada, terá as vantagens da imparcialidade de todos.”. Como
diriam alguns provérbios do rei Salomão, ata essas palavras aos
teus dedos para que te sirvam de orientação para o resto da vida.
Essas coisas estão ligadas.
Na sua gênese, o liberalismo foi um movimento político e de
ideias na Inglaterra no final do século XVII. A Revolução Gloriosa
será o berço histórico. Ali era uma questão de lutar contra o
absolutismo. Quem naquele momento queria o regime representantivo
para lutar contra o absolutismo e tinha condições, até materiais,
de se opor à violência e à cooptação da monarquia absoluta? Os
nobres aburguesados, grandes proprietários de terras. Então, a
representação inicialmente foi monopolizada por eles, mas vejam
que interessante: como diz o Paim, à medida que a ideia liberal se
democratiza e o sufrágio se estende a outras classes, os outros
grupos da sociedade vão participar do jogo por terem algo a perder
no confronto com uma monarquia absoluta e com a ameaça de um poder
absoluto, que tende a corromper absolutamente, como disse o lorde
Hector, um grande pensador liberal católico inglês. Essa é a
história das reformas eleitorais britânicas em um longo período.
Primeiro, vem a nobreza aburguesada proprietária de terras;
depois, os industriais; depois, as classes médias; até chegar
enfim ao sufrágio censitário, ou seja, aquele que exigia renda
mínima para votar e ser votado. Era assim no império brasileiro e
em praticamente quase todos os lugares, naquela época. Em 1884,
extinguiu-se a exigência de renda mínima para votar e ser votado,
e a democratização da ideia liberal se completou na Inglaterra, em
1918, com a extensão do voto às mulheres. Insisto muito na
expressão do Antônio Paim, “democratização da ideia liberal”, que
considero muito feliz, porque liberalismo e democracia - e digo
isso aos meus alunos -, conceitualmente falando, não nasceram
grudados um no outro. A democracia liberal, a meu ver, é o feliz
resultado do encontro histórico entre liberalismo e democracia. O
liberalismo tem a ver, fundamentalmente, com a limitação do poder
do Estado sobre o indivíduo, e a democracia é um método de tomada
de decisões coletivas baseado na regra da maioria. O último
balanço da “Freedom House”, dos Estados Unidos, mostrou que as
democracias iliberais, infelizmente, voltam a se alastrar pelo
mundo, e, quando a democracia é iliberal, os primeiros a sofrer
são os membros das diferentes minorias, uma vez que uma das regras
do jogo da democracia liberal garante que o vencedor no voto
chegue ao poder, mas há algumas coisas que ele não pode fazer,
como tentar destruir fisicamente a minoria. Esse é o perigo da
democracia iliberal que hoje o mundo enfrenta, com o chavismo e
outras patologias políticas tão queridas ao nosso grande guia
genial dos povos, Lula.
Não vou historiar, mas apenas citar a sequência do que está aqui.
Aí, temos a Revolução Gloriosa. É interessante que Cromwell lança
oficialmente o seu Segundo Tratado sobre o Governo Civil, o
esqueleto histórico do regime representativo moderno, em 1688 e
1689, à época da Revolução Gloriosa, mas seus originais, seus
rascunhos, suas cópias já vinham sendo lidos pela elite inglesa -
uma parte dela até no exílio, nos momentos mais difíceis do
absolutismo no continente europeu, principalmente na França.
Aquilo era lido, discutido e comentado. Aqui vemos a Revolução
Gloriosa, a declaração de direitos, o “Bill of Rights”.
Como vocês sabem, a Grã-Bretanha não tem, até hoje, um documento
constitucional. Aquilo que Sir Ivor Jennings chamou de a
Constituição britânica é, na verdade, o conjunto desses diplomas
legais que, se levarmos na ponta da faca, remontam a 1215, à Magna
Carta que o Rei João sem Terra - vejam que os sem-terra já enchiam
o saco desde aquela época - teve que concordar em assumir as
reivindicações contidas na Carta Magna de 1215. Então, a
Constituição britânica é esse conjunto histórico de diplomas
legais que garantem a liberdade do indivíduo “vis-à-vis” o Estado.
Mais tarde, vem a anuidade dos impostos. A princípio dizia-se que
não poderia haver taxação sem representação. Isso também motivou
imediatamente a Magna Carta. Antes da Revolução Gloriosa, antes da
Revolução Francesa, os parlamentos funcionavam como corpos
consultivos convocados de vez em quando. Até a Revolução Francesa,
os estados gerais estavam sem ser convocados há mais de 100 anos.
Eles eram convocados de vez em quando, principalmente em situações
de guerra, em que o monarca precisava arrecadar mais. Ele reunia,
em alguns lugares, os estados gerais e em outros lugares, na
Espanha e Portugal, cortes. Reunia esses representantes das
principais categorias sociais para que eles o ajudassem a
legitimar, pelo seu consentimento, o aumento dos impostos. Por
isso, taxação e representação estão muito ligadas historicamente.
É interessante essa noção do parlamentarismo, associada comumente
ao parlamentarismo britânico, de que o rei reina mas não governa.
Na verdade, essa frase é de Alphonso Tier, um francês, se não me
engano, o primeiro Presidente da terceira república francesa. Essa
é a fórmula dele, que se aplica muito mais à Inglaterra, à Grã-
Bretanha do que propriamente à França e a outros países.
O que impressiona muito nas audiências, sobretudo as plateias
mais jovens, é essa questão do voto censitário. Perguntam:
“Professor, que história é essa de as pessoas terem que ser
proprietárias, terem que deter alguma renda para poderem votar e
para poderem ser votadas?”. Isso pode não fazer sentido hoje, mas
fazia todo sentido àquela época. O objetivo dos parlamentos não
era estabelecer um contraponto ao absolutismo monárquico, tanto na
sua vertente cooptadora quanto na sua vertente coercitiva? Só quem
tinha renda tinha um mínimo de independência para fazer isso. Com
a Revolução Industrial, à medida que outras classes sociais vão
entrando na espiral de prosperidade, também elas passam a ter algo
a perder, “vis-à-vis” um governo arbitrário, elas podem
participar. Um grande liberal francês, François Guizo, grande
operador político da chamada Monarquia de Julio, na França, que
vai de 1830 a 1848, quando cobrado sobre as reformas eleitorais
para baixar o censo, para baixar a exigência de renda para votar,
ele disse apenas uma frase: “Enrichissez-vous”. Enriqueçam
primeiro e venham falar comigo depois. Quer dizer, não podemos
julgar o passado em termos absolutos com os critérios do presente,
o que não é uma coisa muito honesta do ponto de vista intelectual,
porque à época aquilo fazia sentido.
Nesse processo, algo importante foi a eliminação gradual dos
burgos podres. Burgos no sentido de distritos eleitorais, círculos
eleitorais. Por quê? Como a revolução industrial e urbana foi
muito rápida, não se refletiu imediatamente na composição, na
origem dos parlamentares na Câmara dos Comuns. O que acontecia?
Muitas localidades que foram esvaziadas pelo êxodo rural tinham
uma sobrerrepresentação, ou seja, representação demais. Enquanto
isso, Manchester, Liverpool e Birmingham, cidades que cresceram
com a Revolução Industrial, tinham representação de menos. Uma das
reformas eleitorais, além da extensão do sufrágio, que foi a
Reforma de 1832, começou a desmontar essa distorção eleitoral, que
rebatia na composição parlamentar.
Esse modelo, apesar de ser considerado um avanço da democracia,
na Grã-Bretanha, manifestou-se de formas diferentes em outros
países. Minha tese de doutoramento em ciência política foi sobre
Tocqueville e Weber, dois grandes pensadores liberais. Em uma de
suas correspondências, Tocqueville dizia: “é sempre a mesma
revolução”. Depois, um “tocquevilleano” da melhor cepa, que muito
admiro, o Raymond Aron, disse: “os franceses, volta e meia, fazem
uma revolução porque são incapazes de empreender as reformas
necessárias ao país”. Vejam que interessante. Nessa dupla
conceitual, dicotômica, reforma e revolução, o termo forte é
revolução, e o Aron inverte. Ele diz que os franceses, de vez em
quando, precisam fazer uma bagunça, uma revolução, porque são
incapazes de realizar as reformas necessárias ao país. Isso não
está restrito apenas à França, não?
Esse modelo semipresidencialista, que, dependendo do ângulo, pode
ser chamado semiparlamentarista, é o adotado pela França e por
Portugal hoje. Do que se trata? Parlamentarismo, porém com Chefe
de Estado - Presidente da República - votado diretamente, o que dá
uma condição de legitimidade “vis-à-vis” do parlamento ao Chefe de
Estado. Não se trata de uma mera “Rainha da Inglaterra”. A
primeira experiência desse modelo, infelizmente malsucedida,
ocorreu na França. Depois da Revolução de 1848, logo depois da
Constituinte, foi eleito o Presidente, que era sobrinho de
Napoleão Bonaparte, o Luís Bonaparte, e a Constituição estabelecia
o seguinte: o Presidente era eleito diretamente, mas tinha que se
entender com um gabinete formado pelas lideranças do partido ou
pela coalizão majoritária de partidos no parlamento. Na segunda
vez em que se tentou isso, também deu errado. Foi na chamada
República de Weimar, que ocorreu depois da Primeira Guerra Mundial
até a ascensão de Hitler. Era um Presidente com poderes
importantes, não só relativos à defesa e segurança. Ele podia
também, por exemplo, dissolver o parlamento. Essa era a figura do
Presidente do Reich da República de Weimar, que também não deu
certo e acabou como sabemos. Esse modelo voltou a ser tentado.
Depois da Segunda Guerra Mundial, o Presidente Charles de Gaulle,
em 1958, conseguiu implantar esse modelo com sucesso. O De Gaulle
e Michel Debret, Ministro da Justiça, praticamente escreveram
sozinhos a Constituição. O modelo parlamentar clássico adotado
pelos franceses logo após a libertação, ou seja, depois da Segunda
Guerra Mundial, provou ser um sistema com enorme instabilidade,
com conflitos paralisantes. O De Gaulle, que, por curtos períodos,
logo no início, depois da libertação, foi chefe de governo, creio
que por duas vezes, retirou-se, mas havia um movimento “mollista”
durante esse tempo todo, e os políticos foram bater à sua porta,
em sua propriedade em Colombey-les-Deux-Églises, para pedir-lhe
que, por favor, aceitasse ser o Presidente da República. Ele
respondeu que só aceitaria com uma condição: “Eu escreverei a nova
Constituição”. E essa Constituição, na verdade, restabelece, à luz
da experiência histórica, esse sistema - com o Presidente eleito
com uma carga própria de legitimidade, o qual tem de trabalhar ao
lado de um 1º-Ministro -, que reflete a composição de forças
partidárias no parlamento. Muitas vezes, elas não são do mesmo
partido do Presidente, e ocorre o fenômeno que os franceses
denominam de “la co habitacion”, ou seja, o Presidente tem de
coabitar com um Ministro de partido diferente, como aconteceu com
o Presidente Chirac e os socialistas no passado recente.
O que tenho de mais importante a dizer a vocês sobre a Alemanha
do século XX, antes da Segunda Guerra Mundial, é o seguinte:
ocorreu o fracasso retumbante e sangrento do sistema eleitoral
baseado na representação proporcional - RP. A fragmentação e a
polarização político-ideológica, ou seja, o regime, desacreditou o
sistema e permitiu a ascensão de Hitler, com a participação
eleitoral ativa de comunistas. Via-se que esses votos eram
colhidos nos distritos e nas circunscrições eleitorais dominadas
pelos comunistas, que, para apressarem a queda do regime, votaram
nele, e ocorreu um colapso, provocado, em grande medida, pelo
regime da representação proporcional.
Isso é do conhecimento geral, ou seja, regimes eleitorais
majoritários e regimes eleitorais proporcionais estão voltados
para duas diferentes preocupações. No caso da representação
proporcional, a preocupação chave é permitir que o parlamento, o
sistema político, caso o tenhamos, reflita, espelhe, com a maior
fidelidade possível, se não todas, pelo menos as principais
correntes de opinião e grupos de interesse da sociedade. A
representação proporcional está preocupada fundamentalmente com a
representatividade.
O sistema majoritário está preocupado com o que denominamos
governabilidade, ou seja, em como criar maiorias sólidas para
governar. A tendência do sistema de representação proporcional,
que tem vários tipos e subtipos, em razão das particularidades
locais, é sempre multiplicar o número de partidos representados,
ao passo que, no sistema majoritário, sobretudo na versão clássica
do voto distrital puro, que há na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos
e no Canadá, a tendência é - digo tendência, pois não é sempre que
isso ocorre - o processo se fechar em torno de dois grandes
partidos, com poucas chances para os outros, a não ser, como no
caso do Canadá, que haja um bolsão étnico, uma corrente política
importante e muito concentrada, como no Quebec, que permitiu,
mesmo com um sistema de voto distrital puro, o surgimento de um
terceiro partido.
Não sei se tive a boa ideia de recomendar o livro que está na
transparência, de Ferdinand Hermens, “Democracia ou anarquia:
estudo sobre o sistema proporcional”. É o caso da Alemanha. O
livro acaba sendo um libelo contra o sistema eleitoral de
representação proporcional, que, na visão de Hermens, foi o
causador da debacle da República, com a ascensão do nazismo. Os
alemães, depois da guerra, introduzem um sistema de voto
semimajoritário, que é aquilo que popularmente chamamos de
distrital misto, em que o eleitor elege nominalmente um candidato
e, ao mesmo tempo, vota num partido. Esse partido, então, mediante
um sistema de lista fechada, já predefiniu na sua convenção quem é
que se beneficiará, em ordem de preferência, dos votos que
chegarão primeiro. O Parlamento federal alemão é dividido entre
Deputados eleitos nominalmente e Deputados indicados pela lista
partidária.
Nas minhas palestras para empresários, estudantes, sindicatos e
outros grupos variados da sociedade, quando falo sobre a reforma
política, perguntam-me o que é a lista fechada. Quando explico às
pessoas, elas ficam com muita raiva e dizem: “Então, nem o
Deputado poderemos escolher”. Eu penso: “Nossa, e vocês escolhem
tão bem!”. Dizem que não querem essa lista fechada. Dado o forte
caráter personalista da política brasileira, isso dificilmente
pegaria. É uma pena, porque parece que o voto distrital puro, que
é o da minha preferência pessoal, está reservado a um número
relativamente pequeno de países culturalmente mais homogêneos,
geralmente de cultura anglo-saxã. O fato é que, infelizmente, a
tentativa de previsão constante no livro de Hermens não deu certo
depois da Segunda Guerra Mundial, porque alguns países alcançaram
um relativo grau de estabilidade política, de representatividade e
de popularidade, adotando diferentes formas de representação
proporcional.
Quando ligamos a TV a cabo em Portugal ou na Espanha, vemos os
políticos soltando fogo pelas narinas, xingando-se, cobrando
veementemente coisas que um fez e que o outro não fez. Demorei
muito tempo para perceber que, muitas vezes, aquilo é cobertura
jornalística de convenções partidárias, são companheiros com ou
contra outros companheiros. Isso quer dizer que ali, pelo menos, a
lista fechada proporcionou uma grande vitalização ou revitalização
da vida partidária da democracia interna do partido. Nós não
dizemos sempre que isso é importante? A lista fechada permite
isso. É claro que, no começo, é provável que ela espelhe mais as
preferências das cúpulas caciquistas e oligárquicas que ainda
temos em muitos Estados e em muitos partidos. Imaginem um falecido
ACM ou um Sarney, no Maranhão, nos tempos áureos do “sarneysismo”.
É claro que a lista seria sempre composta pelos preferidos, pelos
queridinhos, pelos favoritos dos oligarcas.
Como a democracia é competição, se esses oligarcas falham em
apresentar sistematicamente Deputados ou candidatos bons de voto,
isso pode levar, com o tempo, a uma rebelião das bases também,
querendo se descartar daquela liderança, porque ela os está
fazendo perder a eleição e precisam ganhá-la.
O “trade off” é a compensação pela compensação. O voto distrital
majoritário serve para a governabilidade. A representação
proporcional serve para a representatividade. A propósito, costumo
dizer que o nosso regime eleitoral é representativo demais, e não
de menos. Digo isso porque em muitas Casas Legislativas, a começar
pelo Congresso Nacional de Brasília, e também pela nossa
melancólica Câmara Legislativa do Distrito Federal, há
representantes do narcotráfico, do crime organizado, das milícias.
Essas pessoas, para mim, tinham de estar na cadeia, e não na
cadeira parlamentar legislativa. Desse ponto de vista, o nosso
regime tem alguma coisa errada, porque é representativo até
demais. Aí, historio o caso português, depois brasileiro. Comungo
com a tese do Antônio Paim de que a República foi uma infeliz
ruptura num processo de gradual amadurecimento, que já se estava
tendo, de consolidação de um regime realmente representativo no
Brasil. É só lembrar que muitos dos republicanos eram
positivistas. E os positivistas consideravam - os discípulos de
Augusto Comte - o Parlamento como uma triste herança de uma era
ultrapassada, chamada era metafísica. Na lei dos três estágios do
Comte, a humanidade evoluiria de uma etapa religiosa mágica para
uma etapa metafísica ou filosófica, até chegar à etapa positiva ou
científica. E, pela ótica dos discípulos de Comte, do Parlamento
se dizia que era uma instituição do passado.
O Rio Grande Sul foi um laboratório para essas idéias
positivistas antiparlamentares. Eles tinham uma Constituição
própria, bem diferente daquela forma das Constituições Estaduais
que se fizeram depois da Constituição de 1891, logo em seguida. E
a Constituição do Rio Grande do Sul estabelecia o seguinte: não se
tinha Poder Legislativo ou não se tinha ele num nível parelho,
equivalente ao do Executivo estadual. O Presidente do Estado, como
se dizia à época - na verdade, Governador -, ele e sua assessoria
formulavam os projetos de lei, que eram posteriormente
distribuídos, ou seja, corriam por todos os Municípios, eram
apresentados às Câmaras Municipais, eram feitas as emendas que, ao
chegarem de novo ao Palácio Piratini, eram acatadas ou não por
Júlio de Castilhos, por Borges de Medeiros. Foi o que tivemos de
mais próximo a uma ditadura antiparlamentar positivista.
Repetindo, a República interrompeu um processo lento de
sedimentação dos partidos e de enraizamento desses partidos nas
suas diferentes bases sociais. E foi uma pena. Por isso culpo a
República por tantos descaminhos na história subsequente do
Brasil.
Bem, os militares de 1964 - muitos deles ainda egressos do
movimento tenentista, uma grande ala conservadora do tenentismo
das décadas de 20 e 30, também muito influenciados pelo
positivismo, que era forte no Exército - não podemos dizer que
deram contribuições valiosas ao fortalecimento do sistema
representativo no Brasil. Criam também naquele curto período de
19, 20 anos, entre a Constituição de 1946 e o golpe de 1964,
aquilo que a saudosa falecida Maria do Carmo Campello de Souza,
professora da USP, chamou de um realinhamento do sistema
partidário com as suas bases sociais, quer dizer, o PTB
representava, cada vez mais, o operariado urbano; a UDN
representava, cada vez mais, as classes médias, e o PSD
representava, cada vez mais, as suas origens oligárquicas morais.
Então, como a representação política é a representação de
interesses, era muito bom que isso acontecesse. O que aconteceu
quando os militares subiram ao poder? Em menos de dois anos, esse
sistema partidário foi derrubado e arquivado, substituído por um
bipartidarismo artificial. Pela chamada Lei de Duverger, de
Maurice Duverger, grande cientista político do século passado,
francês, o sistema partidário tende a ser reflexo do sistema
eleitoral. Ou seja, voto majoritário distrital puro, por exemplo,
poucos partidos - dois; sistema representativo moderado, um número
maior de partidos; por exemplo, sistema semimajoritário, como o
alemão, três ou quarto partidos no máximo; sistema proporcional,
um número bem maior de partidos com aquelas variantes internas
dentro de representação proporcional, que variam de país para
país. Criaram um bipartidarismo de camisa de força sem lastro no
sistema eleitoral, porque o bipartidarismo funciona quando é uma
função - no sentido matemático da palavra “função” - do sistema
eleitoral. Então, se existia o sistema representativo, Arena 1,
Arena 2, Arena 3 - as pessoas mais velhas devem se lembrar disso -
e bipartidarismo, as coisas não casavam, não dava liga o sistema
eleitoral com o sistema partidário.
No Brasil, se tomarmos um século ou mais de história brasileira,
um grande avanço democrático é seguramente o aumento do
eleitorado. Hoje, depois da Índia e dos Estados Unidos, talvez
sejamos a 3ª ou 4ª maior democracia em termos populacionais. Vejam
como pouca gente votava nas eleições presidenciais até 1930: menos
de 10% da população. Era muito pouca gente. Isso foi se alargando,
sobretudo num ritmo cada vez mais acelerado a partir da queda do
Estado Novo, na segunda metade do fim da Segunda Guerra Mundial e
na segunda metade do século passado. Temos as reformas políticas,
que acompanhamos de perto em Brasília. Sempre digo para meus
alunos: se fôssemos antropólogos, os políticos seriam os nossos
índios. Então, vocês têm obrigação de conhecer de perto - vocês
têm essa vantagem locacional que muitos não aproveitam - os atores
do sistema político e as elites políticas dentro dessa classe
política também. Temos de aproveitar essa oportunidade. E
observando de perto a cena política em Brasília, o que vemos? Que
essas reformas políticas - não digo que elas ficam paradas o tempo
todo - avançam muito pouco, e por uma simples razão, de que
podemos não gostar, mas temos de compreender: a classe política,
os políticos profissionais têm total liberdade para regular a
própria profissão. Quero dizer que não há nenhuma carga semântica
na expressão político profissional, porque democracia moderna é
regime de políticos profissionais, é profissão muito absorvente e
exigente, e os políticos têm de se profissionalizar mesmo. Ao
contrário de outras categorias da sociedade, por exemplo, a dos
médicos ou a dos engenheiros, que tem até certo ponto restrição
legal para regular suas respectivas profissões, o político tem
total liberdade. A classe política é a categoria profissional que
mais tem liberdade de regulamentar a própria profissão, as regras
do jogo profissional, da competição político-partidário-eleitoral.
Vamos aqui nos colocar no lugar dos políticos. O Paulo Kramer vai
à “Globo News” e diz um monte de besteiras, entre elas, que o
nosso sistema político é falho. Com todas as falhas, nesse
sistema, eu me elejo e às vezes até me reelejo. Uma mudança
radical é um salto no escuro. Isso é só para lembrarmos quão
difícil é fazer reforma política, dada a variedade, a
multiplicidade de interesses políticos e partidários em jogo. Por
isso nos exasperamos. Desisti de acompanhar minuciosamente, dia a
dia, a reforma política por causa disso. Sou a favor do voto
distrital puro; sou parlamentarista, sou monarquista. Isso nunca
vai acontecer no Brasil. Então, tchau. Vou estudar Tocqueville,
vou estudar Max Weber, vou estudar Benjamin Constant, vou estudar
meus liberais queridos, porque realmente exaspera quem acompanha,
mas é preciso compreender por que muda tão pouco, menos do que
muita gente gostaria. Quando muda? Hipoteticamente, muda quando a
opinião pública, amparada na mídia, entra em cena para tornar
essas demandas crescentemente insuportáveis, incontornáveis pela
classe política. Mas, como nosso próprio sistema eleitoral produz
fragmentação e como a sociedade brasileira é muito desigual,
infelizmente, essa mobilização por uma reforma política
dificilmente passará de faixas relativamente pequenas da opinião
pública e da sociedade civil. Então, não há reforma política.
Essas são características dos vários projetos de reforma
política: cláusula de barreira ou de desempenho, que estabelece um
mínimo de votos válidos para o partido conquistar uma cadeira na
Câmara dos Deputados; a lei dos partidos políticos, que vigora com
emendas até hoje. No que diz respeito à questão do financiamento
público de campanha, infelizmente, em muitos corpos legislativos,
a tendência tem sido estatizar a função de cabo eleitoral, o
“cara” virar assessor, ocupar cargo de confiança no gabinete.
Essas assessorias indicadas pelo critério da confiança não param
de crescer porque os políticos descobriram que essa é uma maneira
muito conveniente de estatizar, de passar para o Tesouro o encargo
de manter seus cabos eleitorais entre as eleições. Bom, já
estatizaram a função de cabo eleitoral. Esse financiamento público
nessa mentalidade, nessa cultura política, vai ser uma beleza.
Reconheço que o financiamento público é útil, por exemplo, para
pessoas que têm uma expressão comunitária valiosa, importante, mas
não dispõem de meios para pagar agência de publicidade,
marqueteiro, cineasta e por aí vai. Dá uma chance a ele de
concorrer. Melhora um pouco suas condições de largada. Mas essa é
outra barreira, e seu lado mais forte é a opinião pública. Os
próprios políticos, quando estão em Brasília concedendo entrevista
para o “Correio Brasiliense”, para “O Globo”, afirmam que são
favoráveis ao financiamento público de campanha, para acabar com o
caixa dois, com a corrupção etc. Mas quem tem coragem de defender
isso frente a frente com o povão, que pensa: “Mais dinheiro para
esses `caras´? Não, é demais”.
Tive a grata oportunidade - essa foi uma das melhores coisas que
aconteceram na minha vida e, por isso, sou muito grato - de
trabalhar durante 11 anos com o Senador Jefferson Péres, do
Amazonas, grande figura política brasileira, de quem muitos de
vocês devem lembrar-se. Dizia para ele: “Senador, o senhor é um
político talhado para defender essas coisas impopulares, como o
controle da natalidade, em lançamento público de campanha, porque
as pessoas veem legitimidade na sua pessoa, sabem que não existe
nenhuma agenda oculta por trás disso”. O Senador Jefferson Péres
também era a favor não da legalização pura e simples do consumo de
drogas, mas da abertura de um debate amplo, e não hipócrita, sobre
a possibilidade de legalização das drogas, levando-se em conta
que, não só no Brasil, mas também em todo o mundo, o modelo
baseado exclusiva ou principalmente na repressão não funcionou. O
narcotráfico está aí. É muito simples: havendo demanda, haverá
sempre oferta.
Para terminar, cito o pensamento de outro liberal americano,
James Madison, um dos pais e fundadores da República americana, da
Constituição americana. O artigo federalista nº 10 propõe a
criação de uma república nova, que a Constituição americana de
1776 a 1787 criou. Em geral, quando se discutia república até o
final do século XVIII, o que se tinha em mente eram aquelas
repúblicas da antiguidade, da democracia ateniense, da república
romana; havia toda uma linha de pensamento e de argumentação. O
exemplo mais brilhante é Montesquieu, que dizia que, se o
território é grande, se a população é grande, a república
dificilmente irá funcionar. O republicanismo é uma qualidade que
se cultiva ao sabor das interações face a face, em que se
estabelece a confiança entre os atores políticos. Porém, fora
isso, não existe. Essa foi a sacada genial dos federalistas
americanos, ou seja: “Vamos construir uma república, mas uma
república nova; vamos construir uma república num país grande”. O
país a que se referiram na época era menos da totalidade da
extensão da costa leste americana. Mas, em comparação com a
maioria dos países europeus da época, era um país muito grande.
Esse foi o desafio que conseguiram vencer: como criar uma
república naquelas condições. Para isso, duas coisas são
necessárias: primeiro, é preciso estabelecer um regime
representativo.
Benjamin Constant, em outra obra muito famosa, “A liberdade dos
antigos comparada à liberdade dos modernos”, que nasceu de uma
conferência que ministrou no Ateneu de Paris, em 1819, disse o
seguinte: na antiguidade clássica, na Grécia Antiga,
principalmente em Atenas, liberdade antiga se confundia com
participação. O homem livre era aquele que podia participar; o
escravo, a mulher e o estrangeiro não podiam participar; mas todos
os cidadãos, independentemente da sua riqueza, da sua pobreza, da
sua renda, participavam diretamente. É claro que havia algumas
estruturas representativas embrionárias para assessorar o corpo
político e - digamos assim - dar execução ao que antes havia sido
deliberado na Assembleia. Mas, basicamente, era uma democracia
direta. Segundo Benjamin Constant, com o aumento da população e
com a extensão maior nos estados nacionais, isso se tornou
impossível porque levou a um aprofundamento do sistema de divisão
social do trabalho. É por isso que hoje, na democracia
representativa, precisamos ter político profissional, do mesmo
jeito que precisamos ter carpinteiro e médico profissionais. Marx
tem uma frase muito engraçadinha sobre a ideologia alemã, a qual
diz o seguinte: “Sonho com uma sociedade em que eu possa pescar de
manhã, pastorear o gado à tarde e fazer crítica literária à
noite”. Aí, Paulo Kramer acrescenta: “Eu é que não queria ser
tratado por um neurologista dessa sociedade”.
O sistema de liberdade moderna é a liberdade de não fazermos
política se não quisermos. Estamos voltados para as nossas
ocupações privadas, profissionais, familiares etc. Para que as
decisões coletivas continuem sendo tomadas, é preciso eleger
representantes. Essa foi a primeira grande “sacação” dos
federalistas americanos, ou seja, uma república baseada não em uma
democracia direta, mas em uma democracia representativa.
A segunda grande inovação é um sistema constitucional que fatiou
tão intensa e minuciosamente os diferentes interesses daquela
República, daquela sociedade que o risco de absolutismo se reduziu
significativamente. Existe, então, uma divisão entre os Poderes
Executivo, Judiciário e Legislativo, uma divisão entre os níveis
de governo, União, Estados e Municípios e até entidades
submunicipais, muitas e diferenciadas, que existem nos Estados
Unidos. Além disso, existe a própria diversificação da divisão do
trabalho. Tudo isso levou a um fatiamento de interesses, de forma
que nenhum interesse tivesse facilidade para sobrepor-se e esmagar
os demais.
O francês Bernard Manin, em sua obra “Princípios do governo
representativo”, faz um histórico muito bom. Esse é um livro que
recomendo aos senhores. Ele fala sobre a democracia de audiência.
A democracia representativa estaria correndo, nos dias de hoje, o
risco de ser substituída por uma democracia de audiência porque os
partidos, tradicionais intermediadores, na verdade corretores do
voto popular para elegerem os políticos, estão cada vez mais
ultrapassados - passa-se por cima deles - pelas estratégias de
mídias eletrônicas, que estabelecem, até mesmo em países
tradicionalmente parlamentaristas, uma verdadeira
presidencialização das eleições, como vimos em casos relativamente
recentes envolvendo a Margaret Thatcher e o Tony Blair. É um
regime parlamentarista, mas o candidato a Primeiro-Ministro se
dirige, graças à mídia, diretamente ao povo. Isso tem
consequências sobre o sistema partidário, que é um pilar muito
importante do sistema representativo.
Mais uma vez, ao invés de concluir fechando, concluo abrindo:
diante disso, como nos colocamos? Vamos discutir. Muito obrigado.
- No decorrer de seu pronunciamento, procede-se à exibição de
“slides”.