Pronunciamentos

JUAREZ CIRINO DOS SANTOS., Professor da Universidade Federal do Paraná - UFPR - e do Instituto de Criminologia e Política Criminal - ICPC.

Discurso

Comenta o tema do evento.
Reunião 43ª reunião ESPECIAL
Legislatura 16ª legislatura, 3ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 17/10/2009
Página 52, Coluna 1
Evento Ciclo de debates: "Alternativas à Privação de Liberdade: outras formas de promover justiça".
Assunto SEGURANÇA PÚBLICA. DIREITOS HUMANOS.

43ª REUNIÃO ESPECIAL DA 3ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 16ª LEGISLATURA, EM 5/10/2009 Palavras do Sr. Juarez Cirino dos Santos Gostaria de começar esta palestra lembrando uma afirmação de um penalista, sim, mas grande filósofo - conservador, é verdade, mas humanista -, chamado Gustav Radbruch, que, na sua filosofia do direito, disse: “Não precisamos de um direito penal melhor; precisamos de qualquer coisa melhor do que o direito penal”. E esse é o sentido da nossa palestra. Fico até comovido ao ver que fui convidado a falar sobre “Alternativas à privação de liberdade: outras formas de promover justiça”. Não se trata de outras formas de punição, mas de outras formas de promover justiça. Essa é a questão. E por que se coloca a questão “outras formas de promover justiça”? Porque ninguém mais aguenta ouvir o discurso punitivo, o discurso oficial da teoria jurídica da pena, da correção, da ressocialização, da reabilitação, ninguém mais acredita no discurso da ideologia “re”, como diria o Zaffaroni. Isso porque a história da prisão, da privação de liberdade é marcada pelo isomorfismo reformista, como dizia Foulcault; ou seja, pela constatação do fracasso e pela reproposição do mesmo projeto fracassado - com algumas reformas, é verdade. A história da prisão é a história da reforma da prisão, isto é, da recomposição do projeto fracassado. Foulcault falava de 150 anos, mas, como faz 50 anos que ele disse isso, há 200 anos é assim. E por quê? Por que persiste, por que se insiste, por que esse projeto fracassado? Hoje sabemos: mesmo os ideólogos, os pensadores do sistema estão convencidos de que enfim a prisão fracassou. É verdade que a explicação, a gênese desse fracasso é mostrada pelos criminólogos, pelos críticos, pela criminologia crítica, radical, que costuma dizer que, na verdade, esse discurso do fracasso é limitado aos objetivos aparentes, declarados, da pena criminal. Os objetivos reais são outra coisa. Fracassaram os objetivos declarados de reforma, de recuperação, de correção. E esse fracasso não é do Brasil, não é da Argentina; é universal. Quanto maior a pena, maior a reincidência. Isso se reconhece até na exposição de motivos do Código Penal. A prisão não só não recupera, mas produz efeitos negativos sobre o condenado; efeitos de desclassificação social, como, por exemplo, a perda do emprego. Normalmente, o condenado não tem emprego, mas, se tem, perde-o. Existe, ainda, a perda dos laços afetivos. Com o ingresso na subcultura da prisão, a subcultura que conhecemos como da violência e da corrupção, o sujeito condenado remodela a sua imagem, reformula a sua autoimagem como criminoso. Ao ser tratado como criminoso, responde como criminoso, comporta- se como criminoso. Ou seja, há um conjunto de deformações psicológicas e emocionais. Ele entra num processo de desculturação, ou seja, de desaprendizagem das normas de convivência social e de aprendizagem das normas e das regras de sobrevivência na prisão, que são as regras e as normas da violência e da corrupção. E quando ele está absolutamente adaptado a essa subcultura violenta e corrupta que é a prisão, quando cumpriu sua pena e retorna à comunidade com as mesmas condições sociais adversas que estavam na origem da criminalização primária, enfrenta também a atitude hostil da sociedade, a atitude dos outros que esperam que o ex-condenado se comporte como egresso, como ex-condenado, como criminoso, praticando logo os crimes. Não tem saída. E se isso é assim, se todos sabem que isso é assim, por que é que continua a ideologia da prisão? Por que é que a prisão persiste como a instituição para onde são encaminhados aqueles que praticam crimes? Por que é que a pena privativa de liberdade continua como a principal resposta do Estado para o comportamento criminoso? Por que é que a política penal é a única política do Estado para a questão criminal? A criminologia crítica tem a sua resposta. É que isso se explica pelos objetivos reais da pena criminal, e não pelos objetivos declarados pela ideologia dominante. Os objetivos reais são outros. Eles são ocultos. Eles não aparecem no discurso oficial. O objetivo real da prisão, que explica a sua sobrevivência nas sociedades contemporâneas, é a garantia das desigualdades sociais. Sociedades desiguais não podem sobreviver sem a polícia, sem o sistema criminal rigoroso e sem a prisão. Ou seja, a prisão se explica, portanto, e esta é uma tese difundida na criminologia crítica não pelos seus objetivos declarados, que são os motivos por que ela fracassou, mas pelos seus objetivos ocultos ou reais, pela garantia das desigualdades sociais. E é preciso dizer isto: a Constituição institui a desigualdade social dessa relação capital e trabalho assalariado. O direito civil disciplina a desigualdade social porque trabalha a questão da propriedade. O direito do trabalho legitima a expropriação da mais-valia. O direito penal garante isso tudo. E garante como? Precisamente por aquilo que Foulcault chamava de “gestão diferencial da criminalidade”. Ele falava das ilegalidades, da criminalidade. “Ilegalitè”, em francês, nesse caso, significa criminalidade, a gestão diferencial da criminalidade, que consiste na repressão dos subalternos e na imunidade dos poderosos. É assim que funciona o sistema de justiça criminal. Alguém pode negar que seja assim? Basta olhar as prisões e ver as populações que lá estão. Falar sobre alternativas à privação da liberdade é motivo de grande satisfação, porque significa apresentar uma ideia que pode reduzir o sofrimento de muita gente, que pode reduzir esse flagelo social que a pena privativa de liberdade produz, a qual não objetiva melhorar o ser humano nem piorá-lo, mas garantir um sistema de relações sociais fundado na desigualdade. Alternativas, senhores, temos e muitas. São muitas as alternativas apresentadas e defendidas pelo discurso oficial e pelo discurso crítico. Estão à mão as alternativas legais e as alternativas, diria, criminológicas, porque vêm da criminologia. Começaremos falando rapidamente sobre as alternativas legais existentes no sistema de justiça criminal brasileiro, que poderiam ser implementadas. Sua implementação significaria efetivamente uma redução imensa do sofrimento que o Estado produz sobre a população marginalizada, sofrida, subalterna, sobre esse povo pobre e sem poder. Por exemplo, como dito aqui, temos as penas restritivas de direito, as penas de multa e os substitutivos penais, que funcionam como alternativas legais e que representam formas legisladas de alternativas de promoção da justiça sem punição, sem pena, as quais chamamos de penas restritivas de direito. Não nos interessa o nome, são restrições de direito que preservam a liberdade, que impedem a prisão. O legislador, em 1984, pensou nessas penas restritivas de direito precisamente para evitar a prisão. As penas restritivas de direito têm natureza autônoma, isto é, cumprem integralmente os objetivos atribuídos à pena privativa de liberdade, que elas substituem. Todavia, ao mesmo tempo em que o legislador cria essa alternativa, ele coloca uma série de obstáculos que, na prática, funcionam como impedimentos à sua aplicação, os quais os Juízes, lamentavelmente, com exceção de alguns comprometidos com a democracia, se sentem na obrigação de usar e ampliar, inviabilizando a própria pena restritiva de direito. Por exemplo, entre as condições relativas aos crimes, estabelecem que as penas de direito aplicam-se aos crimes dolosos, sem uso de violência, punidos com até quatro anos de reclusão - essa disposição está meio perdida, pois essa norma ficou muito confusa no Código Penal, de tal forma que alguns até a desconhecem -, ou a crimes violentos, desde que a pena seja inferior a um ano. Por que quatro anos? Por que nos crimes sem violência? Por que menos de um ano nos crimes violentos? Por que não dois anos para os crimes violentos, ou quatro? Por que não ampliar a pena para os crimes não violentos de quatro para seis ou oito anos? Se o objetivo é exatamente evitar a ação criminogênica do cárcere, reduzir os danos causados pelo cárcere, por que não potencializar o uso dessas medidas, que estão na lei? Por que não? Isso o legislador pode fazer; o Juiz, não. O Juiz não pode produzir o direito. Mas, com relação aos crimes decorrentes de imprudência, aos crimes culposos, devem ser consideradas algumas questões que, aí sim, dependem do Juiz. Por exemplo, outras condições das penas restritivas são relacionadas ao autor, que não pode ser reincidente em crime doloso, sendo que hoje ninguém mais considera isso. A reincidência, na verdade, é a afirmação do fracasso do Estado na promoção da ressocialização, que está entre os seus objetivos. A reincidência real, que implica a passagem do sujeito pelo sistema, é a indicação evidente do fracasso do Estado. Quer dizer, a responsabilidade é do Estado. Ninguém mais acredita nesse conceito de reincidência. Estamos trabalhando com o quê? Com direito penal de autor? Se o réu é reincidente em crime doloso, o Juiz pode desprezar essa questão, e há Juízes que a desprezam, que não trabalham com o conceito de reincidência. Mas há coisas piores. É preciso ainda que existam elementos que indiquem a suficiência dessa medida substitutiva da pena restritiva da liberdade. Aí é que entra a questão ideológica, subjetiva do Juiz. É preciso que a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade, os motivos e as circunstâncias indiquem a suficiência da substituição. Mas, infelizmente, a imensa maioria dos Juízes, ou pelo menos parcela considerável deles, assim como dos tribunais, são vagos. Quando se trata da culpabilidade, em vez de demonstrá-la - e é preciso demonstrá-la, pois se vai privar o acusado de um benefício -, dizem apenas de uma culpabilidade intensa. Ora, o que é culpabilidade intensa? Quando se trata dos antecedentes, dizem apenas de maus antecedentes. Quais são esses maus antecedentes? Hoje os Juízes avançados, o Ministério Público avançado e os professores avançados entendem que antecedentes só podem ser condenações criminais transitadas em julgado, que não constituem reincidência, o que é possível, porque a reincidência significa a prática de um novo crime depois do trânsito em julgado de uma sentença condenatória por crime anterior. Se um novo crime foi cometido antes do trânsito em julgado da sentença, esse trânsito em julgado não constitui reincidência para efeitos técnicos. Só se pode considerar como antecedente a condenação anterior, com trânsito em julgado, que não constitui reincidência. Vamos deixar a conduta social, os motivos e as circunstâncias de lado e vamos tratar da personalidade. Como os julgadores gostam de falar da personalidade do acusado! Mas, senhores, ninguém sabe o que é personalidade, nem os psicólogos, nem os psiquiatras; ninguém consegue definir a personalidade. Esse talvez seja o conceito mais controvertido em psicologia, mas nós achamos que sabemos o que é personalidade. Nós fazemos um curso de Direito e não estudamos psicologia na faculdade, mas sabemos o que é personalidade. Daí, quando olhamos para o réu, dizemos que ele tem a personalidade voltada para o crime. Mas que disparate! E, por causa dessa personalidade voltada para o crime - quem diz isso não sabe o que está dizendo, porque não sabe sequer o que é personalidade, e, aliás, isso deveria sair da lei -, o réu perde um direito. Perde um direito porque tem a personalidade voltada para o crime! Ora, façam-me o favor. E vai por aí. Sei que tenho tempo e preciso trabalhar com esse tempo. É claro que existem causas de revogação obrigatórias, facultativas, mas quais são essas restrições de direito que podem cumprir esse papel importante? Temos cinco espécies. Existe a prestação pecuniária, a perda de bens e valores, a prestação de serviços à comunidade, a intervenção temporária dos direitos e a limitação de fim de semana. A prestação pecuniária é prevista na lei como pagamento, à vítima ou a seus descendentes, de valor em dinheiro de, pelo menos, um salário mínimo e de, como máximo, 360 salários mínimos. Isso é institucionalização de justiça restaurativa da lei penal que está aí. É só aplicar. Por razão que veremos daqui a pouco, a vítima não está interessada em punição; está interessada em reparação. Isso poderia funcionar como outra forma de produzir justiça. A perda de bens e valores faz parte do Fundo Previdenciário Nacional, que seria determinado pelo valor maior, sem prejuízo da vítima ou proveito do autor. Mas deixar esse Fundo Previdenciário ir para o Estado? Por que não destiná-lo à vítima? Por que o legislador não altera isso? O Estado não precisa dessa arrecadação. Ou será que precisa? É tamanha a crise fiscal que precisa desse pagamento por parte do acusado? A prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas parece até piada, porque essa prestação de serviços deve ser feita a entidades de assistência, hospitais, escolas, orfanatos e programas comunitários ou estatais na relação de 1 hora por dia de condenação. Se o sujeito tem, digamos, seis meses de condenação, prestará 180 horas de serviço. Isso é ótimo. Mas o que ocorre com as penas de restrição de direito conhecidas como prestação de serviço à comunidade? Os Juízes não têm entidades a quem designar o sujeito para prestar o serviço, e as entidades que existem não o querem porque ele é um condenado. Quantas vezes ouvi o Juiz ofertar essa possibilidade e ninguém aceitar. Por que não há campanhas com o objetivo de abrir a consciência dessas entidades, que são entidades públicas? Essa prestação de serviços à comunidade surgiu como grande proposta no âmbito das penas restritivas de direito, como a principal pena restritiva. As outras duas são a interdição temporária do direito, no caso de privação, vedação, proibição de exercício de cargo, função pública, mandato eletivo, profissão, atividade, ofício, perda da habilitação ou licença do poder público, como também perda da habilitação para direção de veículos automotores; e a limitação de fim de semana, que também é outra piada, porque deve ser cumprida em casa de albergados, e não existem casas de albergados. Talvez eu conte nos dedos de uma mão as casas de albergados no Brasil. Cria-se uma pena restritiva de direito que deve ser cumprida em casas de albergados à razão de 5 horas diárias, aos sábados e domingos, e não há casas de albergados. Parece-me que existem uma ou duas em Santa Catarina, em São José; em Minas, honestamente, não sei se existe. Então, é o caso de estar no território dos demais Estados, duas ou três. E a pena de multa? Por que não a pena de multa? Na Alemanha, por exemplo, a pena de multa é a pena mais frequentemente aplicada pela Justiça criminal, em 85% das condenações, sobrando apenas 15% para os demais delitos. Aqui, no Brasil, existe um problema seriíssimo, porque a pena de multa funciona como uma possibilidade abstrata, visto que, na prática, ela não se aplica por ser uma pena sempre prevista como cumulativa com a pena privativa de liberdade. Ou seja, privação de liberdade mais multa. Isso sim é ruim. A pena de multa ocorre naquelas pequenas e poucas hipóteses em que é prevista como alternativa, como é o caso do delito de bagatela, do crime de bagatela. Na verdade, nesses casos, a pena de multa não deveria ser aplicada, e sim descriminalizada, mas vamos conversar sobre isso daqui a pouco. Sobre os substitutivos penais, a pena de multa é prevista em uma quantidade entre 10 e 360 dias-multa, dependendo da natureza do injusto e da probabilidade de novo agente. No que toca ao seu valor, dependendo da capacidade econômica e financeira do acusado, a pena de multa é aplicada entre o mínimo de um trinta avos do salário mínimo e o máximo de cinco vezes o salário mínimo, por dia- multa. Isso podia ser melhor aproveitado, mas não é. A última alternativa legal é representada pelos substitutivos penais, que são a suspensão condicional da pena e o livramento condicional. Também na área da chamada criminalidade de menor potencial ofensivo, aquelas da Lei nº 9.099, existem a suspensão condicional do processo, que não deixa de ser um substitutivo penal, e a transação penal. Vamos falar um pouco sobre as duas primeiras, mas, antes, é preciso explicar como elas se engendram, isto é, falar sobre as explicações tradicionais que dizem que as medidas substitutivas surgiram, primeiro, por razões humanitárias, pelo fato de sentirmos piedade dos condenados. Daí surgiu a ideia de criar formas para impedir a prisão ou para apressar a saída da prisão, no caso do livramento condicional. Há ainda a alegação científica de que a pena de prisão só produz danos para justificar a limitação desses danos. Na verdade, hoje acredita-se muito mais nas explicações trazidas pela criminologia crítica que fala, primeiramente, na superlotação carcerária. Não se trata de nenhuma atitude de piedade, mas de comprovação de que o sistema está explodindo e de que precisamos aliviá-lo. Superlotação carcerária é uma questão prática. Está certo. Se vai beneficiar pessoas, por que não adotar isso? Para justificar a existência das medidas substitutivas, existe ainda o problema da crise fiscal. O Estado não tem dinheiro para gastar com o sistema penal, então vamos descarcerizar. Fato é que nada disso existe. O que existe é uma ampliação do controle. Os substitutivos penais representam essas formas de alívio no sistema, e eles surgem em decorrência da crise fiscal, mas, de fato, o que se fez foi ampliar o controle, estendendo-o para o mercado, para a sociedade e para a família, sendo a prisão a garantia disso tudo. Se o condenado não cumprir as condições da suspensão condicional da pena, ele irá cumprir a pena de prisão. Da mesma forma, se ele não cumprir as condições do livramento condicional, ele irá cumprir a pena de prisão, integralmente. Isso só veio reforçar e revigorar a própria prisão. Temos de conviver com isso, mas reconhecendo que, de fato, revigora e reforça a prisão. Não podemos negar que a suspensão condicional da pena significa a evitação do contato do sujeito com a prisão; e o livramento condicional, a redução do tempo de passagem pelo sistema formal do controle, o que só pode ser digno de aplauso. Essas são as alternativas legais, que estão à disposição, que podem ser utilizadas, mas a reflexão, essa inquietação que leva os especialistas, a sociedade e as autoridades a procurarem alternativas encontra precisamente na criminologia algumas propostas que precisam ser conhecidas. A primeira coisa que a criminologia diz e que é preciso ouvir, aliás, dirigida pelo mote ou por essa definição do Gustav Radbruch, é que o que precisamos não é de um direito penal melhor. É bobagem tentar desenvolver e aperfeiçoar tecnicamente o direito penal, porque precisamos, sim, de qualquer outra coisa melhor que o direito penal. Em alguns países, essa forma de ver a questão manifestou-se em políticas públicas, que podem ser definidas até, se quiserem, como reformas sociais, não como reformas do direito penal, mas como políticas públicas de intervenção socioestatal ou da sociedade no Estado naquilo que a tecnologia apresenta como a gênese ou a origem da criminalidade. Quer dizer, reformas sociais que serão capazes de promover o desfavorecido, especialmente a juventude, por meio de uma política de emprego, de salário justo, de moradia, de saúde, de educação que seja capaz de integrar essa população sofrida da periferia, que não está em condições de se integrar na sociedade tecnológica, informatizada, do mundo atual. Sem uma política de educação massificada, não é possível alterar as taxas de criminalidade. Não é com polícia, com mais polícia; não é com justiça penal, com mais justiça penal, nem com justiça penal mais rápida; não é com mais prisões que enfrentaremos a criminalidade, mas é com essas políticas públicas que poderemos acertar a gênese da criminalidade, porque reduzirá as desigualdades sociais, suprirá as carências da população marginalizada e excluída do mercado de trabalho e do processo de consumo, porque não podem consumir pelas próprias condições de cidadania. Isso é o que marca, por exemplo, os países mais avançados, que já fizeram isso e deu resultado. Se olharmos o que fazem os países nórdicos, como a Escandinávia, a Dinamarca, a Suécia, a Noruega... Claro que é um outro mundo. Não se pode comparar o Primeiro Mundo, do sistema capitalista globalizado, com a periferia. Mas há mudança de ênfase em relação à questão criminal. Por meio de políticas públicas massificadas, e não setoriais, é possível reduzir isso, envolvendo todos os Poderes e todos os âmbitos federativos, os Municípios, os Estados. Minas está de parabéns. Não tenho conhecimento de outra iniciativa dessa natureza em Estado algum do País. Minas largou na frente na discussão desse assunto, por meio do Poder Legislativo, com a participação do Poder Executivo e, é claro, do Poder Judiciário. Estamos preocupados com a questão ao fazer discussão dessa natureza. É possível, pela promoção das condições reais de vida do povo, acertar as determinações estruturais, as raízes sociais da criminalidade e reduzir essas taxas a um nível perfeitamente administrável, porque essa questão de acabar com a criminalidade é muito utópica. A violência está ligada à própria agressividade humana. A psicanálise está aí para nos mostrar que a agressividade, o instinto agressivo é algo extremamente poderoso. Qualquer pessoa está sujeita a cometer fato violento definido por lei como crime. Isso é óbvio. Essa criminalidade poderia ser evitada, mas não é. Quero passar das reformas, das políticas públicas para esse modelo antropológico da justiça restaurativa, que se propõe hoje com muita ênfase. Na verdade, ela não é outra coisa senão o retorno às formas pré-estatais de solução de conflitos, que não significam a guerra de todos contra todos. Ao contrário, há muitos procedimentos de mediação, de compensação e de indenização, hoje definidos como justiça restaurativa, a qual só se realizou historicamente para solucionar problemas. Isso se mostra como perspectiva real, não dentro do direito penal, do sistema formal de controle, mas de processos informais, de aproximação entre o autor e a vítima. Essa é a grande questão. Na imensa maioria dos casos, as vítimas estão muito mais interessadas em reparação que em punição, especialmente nos crimes patrimoniais, que são o grosso da criminalidade. Até mesmo depois da punição, há encargo desagradável, a pessoa tem de comparecer, prestar declarações. Alegam: “Há reparação, mas essa é uma ação pública, temos de punir. O Ministério Público já propôs a denúncia, agora temos de ir até a sentença”. Vamos acabar com isso. Temos limites legais que poderiam ser superados se houvesse pequena mudança. O Ministério Público já tem poder imenso na transação penal, que extingue a punibilidade. É a reparação do dano, essa chamada Justiça Restaurativa, que também extingue a punibilidade. É a reparação do dano, essa chamada Justiça Restaurativa, que também extingue a punibilidade. Por que não implementar isso? Quero falar sobre a última proposta da criminologia, que tem, como perspectiva final, a abolição do sistema penal. Mas isso tem de ser feito em uma perspectiva final, porque não é possível - e isso é compreendido muito claramente pelo criminólogos críticos e radicais - abolir o sistema penal sem que seja superada essa sociedade fundada em uma desigualdade, ou, digamos, com esse matiz desigual, sobre a qual se assenta a sociedade moderna. Para se abolir o sistema penal, tem-se de abolir também esse sistema desigual, fundado na exploração do homem pelo homem, pois ele não subsiste sem a prisão. Embora o discurso político não diga isso, trata-se de um fato que não se pode negar. A moderna sociedade capitalista, a expressão mais característica e extrema da desigualdade, não pode sobreviver sem a pena de prisão. Embora Louck Hulsman, Nils Christie e todos esses luminares da criminologia crítica estejam convencidos disso, há um outro segmento que diz que não é possível abolir a prisão sem superar o sistema desigual da sociedade capitalista, que depende da prisão e da criminalização, ou seja, depende de criminalizar e de punir para sobreviver. Isso é uma meta, mas, até lá, poderemos fazer muita coisa. Há a proposta de um direito penal mínimo, de redução do direito penal, no que diz respeito àqueles crimes que lesionam bens jurídicos individuais e a superação do direito penal simbólico, que existe somente para efeitos retóricos e até para funcionar como alívio de consciência, ou seja, para que os Juízes se livrem daquela má consciência ao condenar os sem-poder, pois são somente esses que eles condenam. Dizem: “Agora, a Justiça é igual para todos, pois podemos punir também os poderosos e os autores de crimes contra o meio ambiente, o sistema financeiro e a ordem tributária”. Isso é ilusão. Isso até fez parte das propostas da criminologia crítica no passado. É ilusão pensar, como disse o Baratta, que o direito penal pode, em algum país, em algum tempo, punir os poderosos. Ele nunca puniu e nunca punirá. Não vamos fazer justiça penal por meio da burocracia do processo penal. Podemos fazer justiça social por meio de movimentos, mudanças e lutas políticas. Isso construirá um novo direito e uma nova ordem social. O direito é sempre política legislada. Não há outra coisa senão política em forma de lei. A política não existe sem o direito. E o direito é sempre a expressão de uma correlação de forças políticas, seja ele o que for. Até lá e enquanto isso, por que não começamos a descriminalizar? Por que não adotamos uma política de descriminalização? Podemos começar pelos crimes sem vítimas, como o aborto e o autoaborto. Quase não se pune por aborto, e, por autoaborto, pune-se menos ainda. E a predação social produzida pelo aborto cometido por aborteiros incompetentes ou pela própria gestante, pois o SUS não atende? Esse não é um problema das grávidas ricas, pois elas praticam o aborto onde querem, no país que escolherem, com o médico que decidirem, já que são protegidas. E as mais pobres, que morrem por infecção decorrente do aborto malfeito, em função dessa criminalização? Por que não adotaram uma política de permissões legais do aborto? Na Alemanha, por exemplo, a mãe é dona do seu corpo até o terceiro mês de gravidez. Ela pode chegar ao hospital e dizer: “Olha, eu quero fazer um aborto”. A única pergunta que fazem é: “A senhora já passou por aquele aconselhamento exigido?” Ao que ela responderá: “Sim, está aqui, já passei.” Ela passa por uma instância de aconselhamento com psicólogo e assistente social para se certificar de que é isso que ela quer. Então convence-se, certifica-se, e é feito o aborto. E isso é possível até o terceiro mês de gravidez. Temos a política mais atrasada do mundo em matéria de aborto. Até por indicação eugênica, no caso de anencefalia, de um filho que não chega a ser um filho porque, infelizmente, é uma espécie que não tem cérebro, é um molusco, temos problemas. Por que apenas abortos por razões eugênicas, por razões de saúde, para proteger a saúde da mãe - não é somente para salvar a vida da mãe, que é o único aborto terapêutico que temos, além do sentimental, aquele dos casos de estupro? A política mais repressiva em matéria de aborto é a nossa. Por que não estabelecer uma política de permissivos legais? Precisam ser apresentadas propostas e, para isso, são feitos esses seminários. E a droga? O aborto e a droga, os crimes sem vítimas, são punidos porque são proibidos. Por aqui vê-se que o crime não é uma qualidade do ato no sentido de um crime natural. O crime é sempre um ato qualificado pelo legislador como tal. Apenas existe crime se existir uma lei que classifica como crime determinada conduta, assim como o criminoso. Não existe o criminoso nato, não existe o crime natural. Existe aquela pessoa que é julgada criminosa, que é condenada pelo sistema de justiça criminal. O crime é aquilo que o Poder Legislativo diz que é crime, e o criminoso é aquele sujeito que o Poder Judiciário diz que é criminoso. Passa pelo sistema formal, controle, aí se desenvolve um discurso de imputação de culpa. Esse discurso reduz-se ao direito penal e, segundo essa lógica, preside os conceitos que informam a teoria do crime, a teoria da pena. Aplica-se uma pena ao sujeito com todas as distorções, metarregras, estereótipos, preconceitos e idiossincrasias pessoais, quer dizer, não tem nada de racional, é puramente emocional, e então o sujeito é considerado criminoso. Sempre que o Estado se propõe a criminalizar a moral, ele se dá mal. Hoje, em matéria de droga, a proposta é descriminalizar não apenas o consumo, mas também o tráfico, a produção e a comercialização. O problema é que a criminologia e as pesquisas demonstram que no dia em que se criminaliza a droga, o preço dela cresce no mercado na razão de 1 para 1.000, quer dizer, transforma essa droga em um grande negócio. E está aí a Maria Lúcia Karam, que, no seu livro “De Penas, Crimes e Fantasias”, diz isso. Não é verdade, professora? Os grandes interessados na questão da droga são exatamente os que a produzem e a comercializam, assim como também as polícias que a combatem, porque existem verbas internacionais imensas para o combate à droga. Criamos um problema, como aquela história do aprendiz de feiticeiro, que não sabemos como resolver. E a metade da população das prisões está ligada direta ou indiretamente à questão da droga. Aí vem a importância da sua descriminalização. É preciso assumir esse discurso. Os crimes de bagatela, por exemplo, a maioria dos crimes patrimoniais, especialmente os furtos de loja - quando um sujeito furta um tênis, um objeto de consumo - são de perigo abstrato. Não criam perigo, mas, costumeiramente, presume-se que criem perigo. Acabem com esse troço. Pena de detenção, crimes punidos com detenção, com multa; descriminalizem. Por que não se pode fazer isso? Não há nada que impeça. Crimes de ação penal privada, os próprios crimes contra a honra, que fiquem para a área cível, com indenização. Para que usar o direito penal para isso? Poderia falar dos crimes qualificados pelo resultado, que na verdade representam uma situação de responsabilidade penal objetiva, o chamado “versari in re illicita”, por exemplo, a lesão corporal seguida de morte, quando o sujeito quer apenas dar um soco na vítima, mas ela cai e quebra a cabeça na calçada. O sujeito responde por homicídio qualificado. Quer dizer, lesão corporal seguida de morte. Temos aqui um crime qualificado pelo resultado, com pena altíssima, muito mais grave se somarmos, por exemplo, lesão corporal e homicídio imprudente, pois foi uma imprudência. Penas mínimas. Os sistemas penais modernos estabelecem penas de até tantos anos, mas temos uma pena mínima e não podemos baixar esse mínimo. Mesmo que existam circunstâncias atenuantes, o Juiz não pode reduzir a pena. O Tribunal gaúcho está se rebelando contra isso. Aplicam uma pena abaixo do mínimo legal na hipótese de circunstâncias atenuantes ou obrigatórias. Não podemos reduzir? Há uma súmula do STJ que impede isso. É preciso que o Juiz se rebele contra isso. Essa súmula tem de cair. O legislador deve acabar com esta história de pena mínima, uma coisa fascista. Para que privar o Juiz da liberdade de fixar pena zero, um dia, dois dias ou um mês? Não, tem de ser pena mínima de um ano. Por exemplo, furto de tênis, de um a quatro anos. O Juiz pode ter pena do garoto, mas aplica pena de um ano. Por quê? E o máximo, também. Deve-se acabar com esta história de crimes hediondos. Isso é uma idiotice, um atestado de atraso do direito penal brasileiro. Crimes hediondos. O que é isso? Para explicar essa coisa, inventamos essa história. Isso não corresponde a um período de domínio das consciências jurídicas do País, etc. Descriminalização, despenalização, desinstitucionalização. Há uma coisa que quero dizer. Precisamos despovoar o sistema penal. Há muitos procedimentos, até o de ampliar as hipóteses de livramento condicional. Por que não se reduzir o tempo para concessão de livramento condicional? Por que não acabar com aqueles pressupostos? Por que precisar daquela declaração do Diretor da prisão? Para quê? A questão da remissão penal, quer dizer, o instituto que permite o sujeito reduzir a pena pelo trabalho: por que trabalhar três dias para ganhar um dia de pena? Por que essa correlação? Por que não é um dia de trabalho para um dia de pena? O sujeito tem de trabalhar três dias, onde há trabalho. Quando não há trabalho produtivo, não pode. O trabalho artesanal, o que existe, não dá direito. Por que não reconhecê-lo? O sujeito quer trabalhar, mas, como não há trabalho, fará barquinhos. Isso deve ser reconhecido. Regime aberto: por que não se reduzirem os limites para concessão? Por que não se elevar de quatro anos para seis ou oito anos, incluindo os crimes violentos? Progressão de regimes: por que não se reduzir o mínimo de um sexto para um décimo ou um doze avos? Para que um sexto? Qual é a regra? É o palpite do legislador. “Eu acho que é melhor! Eu também acho!” É um achismo. Não existe nenhum critério científico que determine que é um sexto, um sétimo, um oitavo, um quinto, um vigésimo. Não há. Sem falar nesta questão dos direitos legais dos condenados, na instrução geral e obrigatória, no trabalho interno e externo, no serviço médico, odontológico e psicológico e na necessidade de se acabar com esta história de Regime Disciplinar Diferenciado - RDD. Tem de acabar com isso. Nem Hitler praticava isso no seu direito penal. Isso é uma coisa absolutamente fascista. Quem acha que não é basta se candidatar a ficar dois anos em situação de isolamento. E aqui eu encerro falando sobre a desinstitucionalização. Na verdade, isso representa a própria abolição do sistema penal. Mas já se está fazendo. Não sabia disso, fiquei sabendo há pouco tempo, mas o Estado de Massachusetts, por exemplo, acabou com as instituições fechadas para a juventude. Não cumprem mais esta medida socioeducativa de internação ou semi-internação que temos aqui. Acabaram com as instituições fechadas de reeducação. Por que não podemos fazer isso? Por que não podemos acabar com a internação e com a semi-internação para a juventude? E os estabelecimentos psiquiátricos? Quando achamos que o problema nas prisões é seriíssimo, quando ficamos chocados com as prisões, seria bom visitarmos um manicômio judiciário, os hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico para, aí, sim, gravarmos uma imagem da qual nunca mais conseguiremos nos libertar. Ou seja, o sofrimento da prisão não é nada perto dos manicômios. São “loucos”, mas são seres humanos que têm uma sensibilidade, às vezes, muito superior à das pessoas ditas normais. O que é uma pessoa louca? Hoje, em psicanálise, em psiquiatria, há uma discussão sobre o conceito de doença mental. Um dos maiores críticos da doença mental foi um professor de criminologia italiano chamado Franco Basaglia, que, quando assumiu uma instituição, mandou todos os esquizofrênicos para casa, chamou as famílias e disse que o problema deles não era biológico, não era de doença, mas um problema social, de falta de afeto, de falta de amor. “Levem e deem amor a eles, e então vão viver bem”. E fez isso. Mas o que eu não sabia - e o Pavarini, que esteve no Brasil, falou - é que existe na Itália uma lei, chamada Basaglia, que simplesmente extinguiu os manicômios judiciários. Na Itália, não existem manicômios judiciários. Para onde vão os doentes mentais inimputáveis que praticaram crimes? Ficam na sociedade, atendidos por médicos, por assistentes sociais no seio da família. Resolveram um grande problema, e esses inimputáveis não criam nenhum problema para a família. E eles se recuperam? Acabaram com as prisões fechadas para os doentes mentais. O tratamento não é mais fechado, é ambulatorial. Por que não fazemos isso? E as prisões? É só um passo a mais. Em relação às prisões, a proposta abolicionista se baseia na ideia da cifra negra da criminalidade. A cifra negra designa a diferença entre a criminalidade real e a registrada. Suponham que a criminalidade real no Brasil, hoje, seja um número que equivale a 100%. A criminalidade registrada, a dos processos criminais que produzem condenações, corresponde a 5% desse número. Isso para ser muito generoso, porque as pesquisas modernas apontam índice ainda menor, desde o furto até o homicídio. Portanto, 5% são a cifra negra da criminalidade, e a sociedade convive com 95% da criminalidade sem trauma algum, sem problema algum. Resolvemos esses 95% por meio de processos extrapenais e temos problema infernal com os 5% da criminalidade registrada. Muito obrigado.