EUGÊNIO VILAÇA MENDES, Consultor em Saúde Pública.
Discurso
Legislatura 17ª legislatura, 2ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 20/04/2012
Página 34, Coluna 1
Evento Ciclo de debates: "Mais Recursos para a Saúde - Assine mais Saúde".
Assunto SAÚDE PÚBLICA. ADMINISTRAÇÃO FEDERAL.
Observação No decorrer de seu pronunciamento, procede-se à exibição de "slides".
4ª REUNIÃO ESPECIAL DA 2ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 17ª LEGISLATURA, EM 13/4/2012
Palavras do Sr. Eugênio Vilaça Mendes
Boa tarde a todas e a todos. Na pessoa do prezado amigo Deputado Mosconi, cumprimento a Mesa e agradeço o convite. Tentarei dialogar com vocês, a partir de perguntas relacionadas às questões principais feitas no que tange ao financiamento da saúde no Brasil, e tentarei responder cada uma delas. Como se organiza o sistema de saúde no mundo? A decisão sobre dinheiro na saúde não é uma decisão sem preço; é uma decisão sobre que sistema a sociedade brasileira quer. No mundo há dois grandes sistemas. Um sistema segmentado, em que há um segmento para os pobres e um segmento para quem pode pagar, cujo exemplo são os Estados Unidos, onde há um sistema para pobres, o Medicaid, e um sistema para idosos, o Medicare, que são públicos, além de um sistema privado, que são os planos de saúde. Há outro modelo, o universal público, que predomina nos países desenvolvidos onde o Estado oferta uma carteira ampla de serviços e o setor privado atua complementarmente.
A primeira questão: pensa-se muito no Brasil que o sistema tem de ser esse que está no mundo inteiro. Não é assim. Predominam, em todo o mundo, os sistemas públicos universais. O SUS foi pensado para ser um sistema público universal, mas esse sonho vem transformando-se no pesadelo da segmentação.
Que sistema de saúde a sociedade brasileira quer? Pensamos um sistema público universal, mas, na prática social, segmentamos gradativamente dois sistemas privados: o sistema privado de desembolso direto, sistema privado das operadoras de planos de saúde, que já atinge 47 milhões de pessoas, 22% da população; e o SUS, que não é um sistema único, mas um sistema único público de saúde. Que sistema queremos no Brasil? “Desfinanciar” o público, consolidar segmentação ou construir socialmente um sistema público universal? E para isso precisamos de mais dinheiro. Será vital o movimento dessa nova classe média, esses 40 milhões de brasileiros que entram no mercado de consumo.
Na experiência internacional, qual modelo de sistema é melhor? Comparemos o modelo segmentado dos Estados Unidos, que está à direita de vocês - essa é uma pesquisa realizada anualmente por uma instituição independente americana. Ela nos mostra que o modelo americano, em todas as variáveis, perde em qualidade, acesso, eficiência e equidade. Ele só ganha no volume de gastos. Ele gasta US$7.290,00, muito mais que os países que têm sistemas públicos universais, que gastam menos da metade disso em geral. É esse sistema que queremos? Aonde nos levará esse sistema segmentado? Ele é efetivo, eficiente e equitativo?
Esses são dois livros recentemente publicados nos Estados Unidos. Um é de 2008 e se chama “O Excesso de Tratamento - por Que Muita Medicina Está Nos Fazendo Mais Doentes e Mais Pobres?”. O outro se chama “O Excesso de Diagnóstico”. Esses dois livros mostram os problemas da segmentação. Nos Estados Unidos, eles gastam com intervenções médicas desnecessárias, são 30% a 50% do gasto total em saúde, o que significa US$500.000.000.000,00 a US$700.000.000.000,00 anuais. E esses procedimentos injustificados geram 30 mil mortes ao ano, além do que 50 milhões de americanos estão sem seguro saúde. É esse o sistema que queremos?
Muito se diz que o sistema segmentado, ao instituir um sistema privado para as classes médias, não significará mais recursos para o SUS. Esse é um argumento lógico. Se a classe média sai, sobra mais dinheiro para os pobres. Esse raciocínio é lógico e é justificado no suposto magnânimo de que instituir um sistema específico para quem pode comprar serviços - os ricos e a classe média - faria com que sobrassem mais recursos públicos para financiar o sistema de quem não pode pagar. No entanto, as evidências internacionais mostram que esse suposto é inteiramente falso; o que ocorre é exatamente o inverso quando se segmenta. Ao instituir um sistema singular para os pobres, em função das dificuldades de organização dos interesses desses grupos sociais, da sua baixa capacidade de vocalização política nas grandes arenas decisórias, esse sistema é sempre subfinanciado. Isso está na base do pensamento de Beveridge, que criou a social democracia inglesa. Em 1942, ele disse: “Políticas públicas exclusivas para pobres são políticas pobres”.
Quais são os aspectos positivos do SUS? O SUS é a política pública de maior inclusão social no Brasil. Com a promulgação da Constituição, 60 milhões de brasileiros passaram de indigentes para cidadãos portadores de direitos de acesso à saúde. Antes as pessoas eram atendidas como indigentes nos hospitais. Houve um brutal incremento do acesso, e esses números falam por si mesmos: 2,3 bilhões de procedimentos ambulatoriais por ano; 11 milhões de internações em mais de 5.500 hospitais; 9 milhões de procedimentos de quimioterapia e radioterapia; 220 mil cirurgias cardíacas em um ano. Temos programas do SUS que são exemplos internacionais. Sem dúvida, o nosso Programa Nacional de Imunizações é o melhor dos programas em todo o mundo, superior ao de qualquer país desenvolvido. O nosso programa de controle de HIV-AIDS é um padrão para os países em desenvolvimento. O nosso Sistema Nacional de Transplantes é o maior dos programas de transplantes públicos do mundo. Só perdemos para os Estados Unidos, onde os transplantes são feitos no sistema privado. Hoje o nosso Programa Saúde da Família é um exemplo de “case” internacional bem-sucedido. São 32 mil equipes que atingem 110 milhões de brasileiros. Isso é um exército de 248 mil Agentes Comunitários de Saúde - voltarei a isso depois. São 21.000 equipes de saúde bucal.
Portanto, esse sistema, com esses recursos e esses processos, determina melhoria no nível da saúde da população. Em 1980, a mortalidade infantil era de 47 óbitos por 1.000 nascidos vivos. Já em 2010, caiu para 19 óbitos. No entanto, esse sistema tem aspectos negativos, cuja base é o subfinaciamento. Existem ineficiências: ineficiência interna - problema de gestão; ineficiência de escala - como mostra ali a ineficiência das escalas hospitalares. Nossos hospitais têm baixa escala, por isso operam com muita ineficiência sistêmica; ineficiência alocativa - como mostra o gráfico de baixo. Gastamos pouco em atenção primária à saúde e muito mais em atenção em média e alta complexidade. Vejam que essas curvas vão se afastando crescentemente. Temos o modelo de atenção que é fragmentado e voltado para as condições de atenção aguda e crônica. Não tem oba-oba. A verdade é que o sistema tem problemas graves.
Mas como é o gasto em saúde no Brasil em relação aos outros países? Antônio Jorge já mostrou bastante isso. O Brasil não gasta pouco em saúde. O gasto total no Brasil está na média dos países ricos: 9%. O problema no Brasil é que gastamos muito pouco do gasto público: apenas 4,1% do PIB. Isso é muito baixo, se compararmos com todos os outros países. Todos os países que fizeram sistemas públicos universais gastam mais de 7% do PIB do gasto público.
Temos a composição do gasto. O Brasil gasta apenas 45% em gasto público. Cinquenta e quatro por cento é gasto privado.
Qual é o problema disso? Está aqui nesta lâmina, que nos mostra que todos os países do mundo que instituíram sistemas públicos universais utilizam mais de 70% em gastos públicos em relação ao gasto total em saúde. Gastamos apenas 45%, menos que os Estados Unidos. Mas o problema real está nesta lâmina, que explica por que gastamos pouco.
O gasto em saúde do orçamento público, vou usar uma expressão forte, é indecentemente baixo. Aqui perdemos para a Bolívia e para o Paraguai, já não estou falando da Argentina nem de Costa Rica. O Brasil gasta apenas 6,1% do orçamento total na saúde. Todos os outros países gastam acima de 15%, incluindo os que não estão aqui, Bolívia e Paraguai. Vejam que os Estados Unidos, que são a pátria do liberalismo, gastam 18% do seu orçamento total com saúde. Nós gastamos apenas 6%. Isso se reflete no baixo custo “per capita”. O Brasil gasta apenas US$335,00. Estou usando os últimos dados oficiais da Organização Mundial de Saúde - OMS.
Vejo discussões com números de todo tamanho. Esses são os últimos dados da OMS. Quando vou fazer comparações internacionais, só posso usar os dados da OMS. Esses dados são todos de 2009. A Argentina gasta US$485,00. Todos esses países desenvolvidos gastam mais de US$3.000,00. Mesmo os Estados Unidos gastam US$3.600,00. Onde está o problema do baixo gasto público na saúde no Brasil? Está no governo federal. Esta lâmina, Antônio Jorge, mostra que vem caindo gradativamente a participação da União. Enquanto cresce fortemente a receita federal, cai gradativamente sua participação na saúde, crescem os gastos estaduais e municipais. Portanto, a emenda está correta, é o que tem de ser feito, ou seja, aumentar o gasto público federal.
A lei complementar resolveu o problema do baixo gasto público em saúde no Brasil? Não, foi uma enorme frustração, foi um jogo de cena do Congresso. Não entraram no que era essencial, ou seja, vincular um percentual da receita federal. Mexeu no Estado, e isso dá R$2.000.000.000,00. Isso não é nada, mas teve um mérito. Qual foi? Além de definir claramente o que são serviços de saúde, deixou claro que, a partir de agora, o problema está na União, não nos Estados e Municípios, que atingiram seu patamar de gastos. Gasto público baixo gera iniquidade. O que esta lâmina nos mostra é que nos países da América Latina, à medida que se aumenta o gasto público, diminui-se o gasto direto do bolso das pessoas, o que é expressivamente iníquo.
Então, se houver gasto público baixo, haverá iniquidade social, como no Brasil. Aqui os baixos custos públicos geram iniquidade social? É claro! Isso está demonstrado aqui. Os brasileiros mais pobres destinam 6,7% dos seus gastos familiares com saúde, enquanto os mais ricos gastam apenas 3%. Isso é de uma total iniquidade.
Os gastos tributários no Brasil são geradores de iniquidade? Claro. O nosso SUS é subfinanciado, mas os ricos vêm a ele, quando precisam, para certas coisas mais caras e, além disso, os sistemas privados são sustentados por gastos tributários. Todos que temos um plano de saúde temos desconto em Imposto de Renda. Só no Imposto de Renda da Pessoa Física são R$5.800.000.000,00 por ano; de Pessoa Jurídica, R$1.700.000.000,00; em medicamentos, R$3.400.000.000,00; entidades filantrópicas, R$1.500.000.000,00. Essa é outra iniquidade, pois só de renúncias fiscais são R$12.000.000.000,00, o que é um valor significativo.
O problema do SUS é de financiamento ou de gestão? Esse é o argumento de quem não quer aumentar o gasto público em saúde. O SUS apresenta problemas de financiamento e de gestão. Não estou dizendo que não há problemas de gestão. São muitos esses problemas, mas afirmar que o problema dele é exclusivamente de má gestão é uma enorme falácia. A superação desses problemas não é viável numa estratégia de cobertor curto. É preciso incrementar o gasto público em saúde e direcionar esse excesso. Para resolver os problemas estruturais da ineficiência interna de escala e alocativa exige-se, também, como condição de melhorar a gestão, o incremento dos recursos.
Quanto dinheiro seria necessário para que o SUS se consolidasse como sistema público universal? Fiz uma estimativa com base num gasto total de 9% do PIB, que é o atual, e um gasto público de 70% do gasto total em saúde, que é a média dos países que têm sistema público universal. Então, para consolidar o SUS precisamos de R$60.000.000.000,00 adicionais. Mas a emenda prevê R$32.500.000.000,00, que são 10% da receita corrente bruta federal. Isso está de bom tamanho. Se recebermos R$60.000.000.000,00 de uma vezada, gastamos mal. Então, começamos com esse valor e vamos gerar uma dinâmica virtuosa no SUS, que, por si só, será capaz de incrementar os gastos consequentemente, porque as reformas na saúde só são incrementais.
Aumentar recursos públicos garante mais saúde, ou seja, aumentar o dinheiro do SUS resolve o problema? Não. Não há uma associação direta entre mais recursos para a saúde e melhores níveis de saúde, como o exemplo dos Estados Unidos mostra. Eles gastam uma montanha de dinheiro e têm piores níveis de saúde que outros países. Mais recursos significam mais serviços de saúde, mas mais serviços de saúde não significam mais saúde. Nesse caso, a questão da qualidade do gasto é fundamental. É preciso aplicar mais em serviços, primeiramente, que sejam sustentados por evidência. Um em cada dois serviços ofertados nos Estados Unidos não tem base em evidência científica. É pura ilusão de demanda para oferta, para indústria de equipamentos biomédicos, grandes prestadores ganharem dinheiro. Também é necessário um maior custo-efetividade, mudando o modelo de atenção.
Portanto, é fundamental que, na eventualidade de haver mais recursos para a saúde, advindos dessa emenda, ao menos 30% sejam gastos obrigatoriamente na atenção primária à saúde, sem o que a boca do Leão pega tudo e não acrescenta um ano de vida à população brasileira.
Já que se trata de uma proposta de vinculação, por que vincular recursos para a saúde? A maioria dos economistas é contra a vinculação de recursos dos orçamentos públicos porque isso engessa o poder alocativo do Executivo e do Legislativo em função de as prioridades mudarem ao longo do tempo. É um raciocínio correto. Por outro lado, já se verificou que, em sociedades em que os interesses estão sub-representados no Poder Legislativo, como é o caso brasileiro, a vinculação é um potente instrumento de defesa dos estratos mais pobres da população. Sem a vinculação, não tem saída; a elite não deixará.
Como conseguir mais recursos para o SUS? As pesquisas de opinião mostram que, em geral, a prioridade dos brasileiros é a saúde. Ou não? Lembrando que estamos na casa dos políticos, qual será a grande questão para as próximas eleições municipais? Imagino que seja a saúde. Quando se ouve o conjunto da população, a prioridade é a saúde.
Os 150 milhões de brasileiros que dependem exclusivamente do SUS, 3/4 da população, estão sub-representados no Congresso Nacional. Portanto, uma emenda à Constituição só será aprovada se resultar de um movimento que organize e vocalize essa grande maioria. Já nos foi mostrado que, pela via do sistema convencional de produção legislativa, vinda de projetos do Executivo ou dos congressistas, a coisa não vai; por essa via, não vai. A única via é a emenda de iniciativa popular, ou seja, é preciso organizar e dar voz aos 150 milhões que não estão representados no Congresso Nacional. Isso é um projeto de iniciativa popular. Para mim, é essencial que nessa mobilização social se utilize o exército de agentes comunitários de saúde, do SUS. São 248 mil pessoas que todo mês chegam, com legitimidade, conhecendo o endereço e nome de todos, ao lar de 100 milhões de brasileiros. Cada agente se relaciona com 350 pessoas. São 200 eleitores. Se cada agente mobilizar 10, serão 2.500.000 de assinaturas; se mobilizar 20, serão 5.000.000. Esse é o grande reeditor em um processo de mobilização social.
Com isso, concluo minha fala. O SUS foi concebido como um sistema público universal. Na prática social, pela falta de base econômica, de financiamento, vem se transformando gradativamente em um segmento destinado à população mais pobre.
No Brasil, o gasto total em saúde é adequado; o gasto público em saúde é indecentemente baixo, incompatível com um sistema público universal e com uma situação de 6ª economia do mundo. Não podemos continuar pensando que somos a África subsaariana; somos a 6ª economia do mundo. O baixo gasto público em saúde é fonte de iniquidades perversas e crescentes. Para se consolidar um sistema público universal, é fundamental aumentar os gastos públicos em saúde até que atinjam um valor próximo a 70% dos gastos totais em saúde. O aumento dos gastos públicos deve se dar prioritariamente nos gastos federais, porque aí reside o problema: a crescente concentração da receita e a diminuição da despesa com o SUS.
A Lei Complementar nº 141, de 2012, não resolveu o problema do subfinanciamento do SUS. É falaciosa a tese de que os problemas do SUS são de gestão e não de financiamento. É preciso mais dinheiro para o SUS, mas é necessário que esses recursos adicionais promovam uma mudança radical no modelo de atenção à saúde. A questão do financiamento público da saúde não é uma questão técnica, é o reflexo dos valores sociais hegemônicos numa sociedade. Que sistema a sociedade brasileira quer? É improvável que os recursos adicionais que o SUS necessita para ser um sistema público universal sejam aprovados no Congresso Nacional pelas vias convencionais de produção legislativa. A única alternativa é um projeto de iniciativa popular, construído num grande processo de mobilização social, com base no trabalho dos agentes comunitários de saúde, casa a casa. Por isso cumprimento a Assembleia por aderir a esse necessário movimento, que é a única forma de conseguir dinheiro para a área da saúde. Muito obrigado.
- No decorrer de seu pronunciamento, procede-se à exibição de “slides”.