BERNARDO DA MATA MACHADO, Irmão de José Carlos Novaes da Mata Machado
Discurso
Legislatura 20ª legislatura, 1ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 31/10/2023
Página 4, Coluna 1
Indexação
Proposições citadas RQN 2649 de 2023
28ª REUNIÃO ESPECIAL DA 1ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 20ª LEGISLATURA, EM 26/10/2023
Palavras do Sr. Bernardo da Mata Machado
Boa noite a todos; boa noite a todas. Eu fui advertido pelo cerimonial de que ao homenageado ou ao seu representante cabe principalmente agradecer; e é o que eu farei, mas não sem antes saudar todos os membros da Mesa. Após os agradecimentos – eu já aviso que serão muitos –, eu vou proferir breves palavras sobre o significado deste evento. Ao final, eu, que hoje faço aqui o papel de homenageado, vou homenagear outra pessoa, uma pessoa muito especial, que representou papel decisivo na história do Zé Carlos.
Saúdo o deputado Cristiano Silveira, que preside esta sessão; o deputado e amigo Patrus Ananias; o Nilmário Miranda, assessor do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania; o procurador de justiça Jacson Rafael Campomizzi; e o delegado-geral Reinaldo Felício Lima. Muito obrigado.
Farei os longos agradecimentos. Agradeço, primeiramente, à deputada Leninha, autora do requerimento que solicitou esta sessão especial; aos deputados e às deputadas que o apoiaram; e ao presidente desta Casa, deputado Tadeu Martins Leite, que acatou o requerimento e o submeteu à aprovação do Plenário. Agradeço aos meus primos Cristiano e Pablo da Mata Machado, que chamaram a atenção para a proximidade dos 50 anos do assassinato do Zé e, dessa forma, insuflaram ânimo ao meu espírito para assumir a coordenação desta semana de eventos, a Semana Zé, tarefa dolorosa pelas tristes lembranças que evocam do passado, mas também gloriosa pela justa expectativa que traz de que a vida, a luta e o martírio de José Carlos dificilmente serão esquecidas.
Agradeço ao amigo, assessor especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, Nilmário Miranda, ao qual apelei, em primeira mão, para que me ajudasse a organizar as homenagens ao Zé, sendo prontamente atendido. Foi Nilmário quem propôs buscar esta Assembleia Legislativa de Minas Gerais para a realização desta sessão.
Agradeço aos membros da Comissão Semana Zé, que se formou para organizar os diversos eventos. Além de Cristiano, Pablo e Nilmário, participaram Cláudia Houara, Marcelo Cattoni, as primas Isabel Mata Machado Campolina, Ana Maria Mata Machado e o cineasta Rafael Conde. Isabel foi a responsável pela criação das peças de divulgação, os cards, como se diz hoje. Marcelo Cattoni organizou o Seminário Justiça de Transição e Estado Democrático de Direito, que será realizado amanhã na Faculdade de Direito, a partir das 8h30min. Cláudia Houara quebrou vários galhos de produção, e continua quebrando, não é, Cláudia? Ana Maria viabilizou uma série de contatos. E eu destaco a visita que fizemos à Rua José Carlos Mata Machado, no Bairro das Indústrias, onde fomos recebidos pelo jornalista e historiador Chico Nascimento, autor de uma história daquele bairro, a quem também agradeço. Rafael Conde coordenou as ações necessárias à exibição do seu filme, Zé, que será apresentado no próximo sábado, às 10h30min. Na oportunidade, registro o meu agradecimento à secretária municipal de Cultura, Eliane Parreiras, pela cessão graciosa do Cine Santa Teresa, sala que exibirá o filme. Agradeço ao artista George Helt pela cessão do audiovisual Rua da Ironia, exibido aqui, e ao fotógrafo Bernardo Magalhães, que me lembrou da existência dessa obra de arte. Agradeço ao Sindicato de Jornalistas Profissionais de Minas Gerais, na pessoa da presidente Lina Rocha, que cedeu a Casa do Jornalista para a realização do bate-papo com a velha guarda da resistência, realizado ontem com muito sucesso. Agradeço à jornalista Renata Mata Machado, outra prima que esteve diuturnamente chamando a atenção da imprensa para a importância da Semana Zé. Em nome de mais uma prima, Verônica Mata Machado, agradeço a participação do coletivo suprapartidário de esquerda Linhas do Horizonte, que se expressa através do bordado e hoje ilustra esta tribuna com essa belíssima e sugestiva peça.
Agradeço à maestrina Beatriz Myrrha e a todos os componentes do Coral dos Desafinados, que com certeza não são tão desafinados assim e que se apresentarão logo mais, no encerramento desta sessão; às minhas irmãs Maria do Carmo, Marília, Mônica e, principalmente, Edite, que me apoiaram na realização da semana; aos filhos do Zé Carlos, Dorival Mata Machado e Eduardo Neves da Silva, que se entusiasmaram com a realização desta semana e fizeram o possível para o sucesso do evento.
Agradeço também as presenças de Madalena Prata Soares, viúva de Zé Carlos; de Maria do Socorro, a Grauninha, companheira do casal naqueles dias difíceis, quando a repressão aumentava o cerco aos militantes de ação popular; do casal Samarone Lima e Áurea, ele autor do livro Zé – José Carlos Novaes da Mata Machado, uma reportagem.
Nesta oportunidade, também agradeço à Maria Mazarello Rodrigues, proprietária da Mazza Edições, que disponibilizou os últimos exemplares do livro, hoje expostos na cafeteria e colocados à venda pelo livreiro Antônio Borges, da livraria Esquerda Literária. Ao final desta sessão, o Samarone estará à disposição para autografar o livro.
Agradeço ainda à minha esposa Maria Moura, aqui presente; à minha filha, presente também, Clarice Moura, e ao marido Fernando, que me trataram com muito carinho nesses dias intensos. Por fim, agradeço a todos e a todas que atenderam ao nosso chamado para estar aqui, hoje, nesta sessão especial.
Eu passo agora a falar, de forma breve, sobre o significado deste evento. Nos últimos anos, eu tenho, reiteradamente, ouvido a palavra “sonho”, assim, no singular, mas também no plural, “sonhos”. Ao escutá-las sempre reagi com ironia e, às vezes, com sarcasmo. Sonhos? Sonhos, eu os tenho dormindo; desperto, o que eu tenho são objetivos. No entanto, ao refletir sobre o que falaria nesta noite, concluí que a palavra “sonho” é cabível para se referir àqueles objetivos que são muito difíceis de alcançar. Assim, hoje, quero expressar alguns desses sonhos: sonho com a abertura de todos os arquivos, ainda secretos, sobre a repressão aos homens e às mulheres que militaram no combate à ditadura militar, a fim de dar às famílias e ao público em geral o conhecimento das circunstâncias da prisão, morte e destino dos corpos de muitos deles e delas; sonho que ciosos servidores públicos, os guardiões desses arquivos, não se furtarão às suas obrigações para com a memória e a história do Brasil; sonho, inspirado nos tratados, pactos, convenções, declarações e recomendações internacionais sobre direitos humanos, que o Supremo Tribunal Federal reveja a sua decisão sobre a constitucionalidade da Lei da Anistia e abra caminho para o julgamento e a punição daqueles que perpetraram crimes contra a humanidade, particularmente a tortura e o homicídio; sonho que as Forças Armadas do Brasil, inspiradas numa antiga tradição que entende serem os exércitos a expressão do povo em armas, abandonem a famigerada tese do inimigo interno e nunca mais voltem as suas armas para massacrar gente do seu próprio povo; sonho que essas mesmas Forças Armadas, imbuídas de respeito ao povo brasileiro, peçam desculpas a todo o País e, em particular, às famílias das vítimas pelos crimes que cometeram durante a chamada guerra suja.
Sonho, por fim, que aqueles que lutaram e morreram em razão desses crimes sejam reconhecidos pelo Congresso Nacional como heróis do povo brasileiro e que, em consequência, os seus nomes sejam escritos no Panteão da Pátria, ao lado de outros nomes, tais como: Anita Garibaldi, Chico Mendes, Clara Filipa Camarão, Frei Caneca, João Pedro Teixeira, Luís Gama, Tiradentes, Zumbi dos Palmares e Zuzu Angel.
Passo agora à parte final do pronunciamento, fazendo outra homenagem. Refiro-me à Dra. Mércia Albuquerque Ferreira, advogada, que, no Recife, lutou bravamente até conseguir a exumação do corpo do Zé Carlos, para que fosse trazido para ser enterrado pela família, em Belo Horizonte, mesmo com a proibição de abrirmos o caixão lacrado. A ação de Mércia evitou que o nome de José Carlos fosse inscrito na fatídica lista de mortos e desaparecidos em razão da ditadura. Além disso, pela observação e posterior descrição do corpo do Zé, Mércia desmentiu a falsa nota publicada pelo governo ditatorial, que alegava ter sido a morte do Zé provocada por tiros dados por companheiros seus num encontro nas ruas do Recife.
Recebi de presente, por intermédio de Nilmário, um livro organizado, recentemente, pelos valorosos amigos do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular do Rio Grande do Norte, cujo título é o seguinte: Diários 1973-1974, escritos por Mércia Albuquerque Ferreira, maior advogada de presos políticos do Nordeste. Sem diminuir a importância de outros advogados de presos políticos no Brasil, inclusive os advogados Anatólio e Quincas, amigos do Zé Carlos, eu acho que, no título desse livro, mereceria ser colocado que Mércia foi a maior advogada de presos políticos do País.
A leitura do livro foi emocionante. Não se pode dizer que Mércia tenha sido uma mulher de esquerda. Ela foi, na verdade, uma advogada consciente das prerrogativas de sua profissão e uma pessoa que, além de admirar o idealismo dos jovens e das jovens revolucionárias, se condoía dos seus sofrimentos na prisão. Mércia recebia, em sua própria casa, os parentes dos presos, os consolava e dava-lhes esperança de que iriam rever com vida aqueles que amavam, chegou até mesmo a fazer doações em dinheiro às famílias mais pobres. Mércia visitava, constantemente, os presos políticos, levava-lhes comida, remédios e alento. Exigia ser atendida pelos homens da repressão e, nos tribunais, algumas vezes, obteve absolvição dos incriminados.
No dia 28/1/1974, ela anotou, em seu diário: “A audiência de Flávio Lima e Silva e dos Jatobá Agra, Dênis e Breno, terminou às 12h10min. Negaram os fatos da denúncia. Estou profundamente emocionada com o que eu ouvi desses meninos, revelações dignas de serem colocadas nos arquivos da Gestapo: fuzilamento simulado, pau-de-arara, telefone, queimaduras, sede, fome, suspensão pelos pulsos e cabelos, pontapés nos escrotos, unhas arrancadas. Tenho presenciado tantas violências que me pergunto se é válido pertencer aos da minha espécie e permanecer entre eles”. Apesar da terrível realidade que enfrentava, ela mesma chegou a ser presa 12 vezes, a própria advogada. Mércia preservava um leve senso de humor. Em visita à prisão de Itamaracá, ouviu do diretor do presídio a seguinte frase: “Mas me dói a morte de um cavalo do que a morte de um preso político.” Ao que Mércia reagiu: “Faz muito bem em defender a sua espécie. Eu defendo a minha, os humanos.”
Ao longo do diário, às vezes, ela escrevia poemas. Foram 15 entre 1973 e 1974, e ela numerava os poemas. A mim me parece que os escrevia com a intenção de buscar um pouco de alívio em meio aos seus tormentos, a tantos tormentos.
Vou poupá-los da descrição que a Dra. Mércia fez da situação do corpo do Zé, que se revelou durante a exumação em Recife. No entanto vou ler, para terminar, a poesia nº 4, que ela escreveu em 25/12/1973, dia de Natal, rememorando a exumação.
“Mata Machado, vi, no silêncio da tarde,/ Quando o sol desfalecia, os restos dele surgirem./ Não se sabia o que houve/ Braços e pernas quebradas/ Todos os dentes partidos, escalpelado também/ Não havia sinal de balas/ Havia apenas uma verdade: que morrera de pancadas/ Pau de arara, telefones, pontapés e cacetadas,/ num massacre odiento, sem defesa e sem culpa, subtraíram-lhe dos vivos.”
É só. Obrigado.