Povos tradicionais criticam decreto que limitaria liberdade e autonomia
Durante audiência pública na Assembleia, líderes debateram norma do Executivo estadual que altera regras de Consulta Livre, Prévia e Informada.
13/11/2024 - 21:42Líderes indígenas, quilombolas e geraizeiros querem garantir o direito de serem consultados sobre modificações em seus territórios. A autonomia estaria ameaçada pelo Decreto Estadual nº 48.893, de 2024, conforme os participantes da audiência pública que ocorreu nesta quarta-feira (13/11/24) no auditório da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG).
“Estamos vivendo um verdadeiro avanço colonial no Estado”, apontou a presidenta da Comissão de Direitos Humanos, a deputada Andréia de Jesus (PT). Para a parlamentar, a proposta do governador Romeu Zema (Novo) agride as pessoas e o meio ambiente.
A parlamentar Bella Gonçalves (PSOL) enumerou os "vícios do decreto": ter sido elaborado sem consulta aos povos tradicionais, estabelecer que empreendedores definam os métodos de consulta e restringir quem deve e não deve ser consultado. “Na prática, querem rasgar um tratado internacional”, resumiu.
A professora universitária Liana Amin Lima da Silva coordena o Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta e Consentimento Prévio, Livre e Informado (OPCPLI). Segundo ela, que pesquisa a realização desse processo, as práticas brasileiras são recomendadas internacionalmente. Porém, o texto em debate é uma tentativa de desregulamentar a consulta prévia e remete a tentativas de tutela empreendidas na década de 1950.
“Temos a autodeterminação de permanecer nesses locais. É inadmissível que não tenhamos o direito de decidir como queremos nos manter em nossos territórios”, enfatizou a líder espiritual do território quilombola do Abacatal (Pará), Vanuza Cardoso.
Conforme Edmundo Antônio Netto Júnior, procurador da República, quando um mero decreto busca limitar o alcance da convenção internacional, “há uma contradição lógica”.
Aderval Costa Filho: “É um decreto de morte”
O professor de Direito Carlos Frederico de Souza Filho recordou a mobilização para que os povos fossem reconhecidos legalmente na Constituição Federal de 1988. “As comunidades, para existirem, precisam de um lugar e elas têm o direito de serem consultadas sobre os impactos de alguma obra em seus territórios”, observou.
Nas palavras de Carlos, “esse decreto é maldoso porque tenta inverter uma lógica de existência. Esse decreto é doloso contra a vida dos povos”.
O professor de Antropologia e Arqueologia Aderval Costa Filho explicou o impacto das restrições. Por exemplo, das aproximadamente 1,5 mil comunidades quilombolas presentes no território mineiro, apenas nove teriam sido consultadas.
Violência contra ancestrais, absurdo e retrocesso foram outras palavras utilizadas para descrever o decreto nas manifestações das lideranças.
"Quando não mata pela bala, mata psicologicamente”, salientou a presidenta da Federação das Comunidades Quilombolas de Minas Gerais, Edna Gorutuba. Ela mencionou também pressões feitas pelo Estado e pelos fazendeiros. Outro tipo de violência denunciado foi o atentado contra Antônio Cosme na Comunidade Quilombola do Baú, em Araçuaí (Vale do Jequitinhonha).
A fundadora do Quilombo Manzo Ngunzo Kaiango, Makota Cássia Kidoialê, denunciou a mineração na Serra do Curral (Belo Horizonte).
O líder do Movimento dos Geraizeiros, Adair de Almeida, relatou casos de agressões cometidas por grileiros e jagunços. Segundo ele, há criminosos a serviço dos latifundiários e das mineradoras. “Estão destruindo a cultura medicinal, nossa fonte de alimentação, nosso direito à memória, todo o nosso modo de vida. Ainda colocam nossos parentes contra nós, mentindo que vão gerar empregos”, apontou.
Participando de forma remota, a defensora pública Ana Cláudia da Storch lembrou que Minas Gerais é formada por muitos povos tradicionais, que têm um papel importante para a proteção ambiental. Para ela, o decreto pode gerar danos que deverão ser cobrados judicialmente.
“O Estado, que deveria proteger seu povo, protege grupos econômicos. Nem as mudanças climáticas servem de alerta de que precisamos mudar a rota”, lamentou a deputada Beatriz Cerqueira (PT).
Conforme o antropólogo Diego Antonio Saavedra, trata-se de um problema de toda a América Latina.
“Tem uma herança ancestral que nós protegemos. Não queremos derramamento de sangue e por isso estamos nessa audiência para buscar estratégias”, afirmou a deputada Andréia de Jesus. Assessora da deputada federal mineira Célia Xakriabá (PSOL), Werymehe Alves Braz reforçou o apoio parlamentar à luta.
A chefe de gabinete da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social, Joana Lopes, argumentou que o decreto foi elaborado a partir de elementos técnicos, mas que o Governo está à disposição para dialogar com líderes de movimentos sociais. Porém, pediu que as perguntas fossem encaminhadas por escrito.
A Comissão aprovou requerimento para convocar a secretária Alê Portella e o secretário adjunto, Ricardo Assis Dutra, para debater o decreto.
Conforme o deputado Leleco Pimentel (PT), é necessário unir esforços para resistir aos interesses do capital. “Precisamos dar as mãos a outros irmãos e irmãs de luta”, afirmou.
“Não podemos desanimar. A esperança e a coragem dos nossos ancestrais sempre nos moveram” pontuou a 1ª-vice-presidente da Assembleia, deputada Leninha (PT).