No Vale do Rio Doce, chuva se mantém na média, mas cai quase toda de uma vez
Esse é um dos fenômenos climáticos extremos apontados para a região no encontro de Governador Valadares, durante seminário técnico promovido pela Assembleia.
10/06/2024 - 18:50Tornado em Dom Cavati, nuvens apocalípticas em Tumiritinga e São José da Safira, calor recorde e enchentes cada vez maiores em Governador Valadares e, para piorar a situação, ameaça de desertificação na zona rural.
Esse é o cenário cada vez mais frequente no Vale do Rio Doce, conforme relatado ao longo desta segunda-feira (10/6/24) no quarto encontro regional do Seminário Técnico “Crise Climática em Minas Gerais: Desafios na Convivência com a Seca e a Chuva Extrema”, realizado no auditório da Universidade Presidente Antônio Carlos (Unipac), em Valadares.
O projeto, promovido pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), tem o objetivo de construir soluções estruturantes e de longo prazo para a convivência com os fenômenos climáticos extremos. Os próximos encontros regionais serão nesta sexta-feira (14), em Montes Claros (Norte), segunda (17), em Uberlândia (Triângulo), e no próximo dia 21/6, em Unaí (Noroeste).
Em Valadares, pela manhã, o comando dos trabalhos ficou a cargo do presidente da ALMG, deputado Tadeu Martins Leite (MDB). Ele reforçou a importância da interiorização das discussões sobre mudança climática, já que cada região tem fenômenos e demandas específicas.
Também participaram da abertura do encontro regional os deputados Tito Torres (PSD), presidente da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da ALMG, Coronel Sandro (PL), Zé Laviola (Novo) e Enes Cândido (Republicanos), além de outras autoridades da região, especialistas e participantes da sociedade civil.
“É calor recorde no Norte de Minas, geadas históricas no Sul, chuvas cada vez mais fortes, com intervalos curtos e concentradas numa única época do ano na Zona da Mata e no Vale do Rio Doce”, relatou o presidente da ALMG.
“Em Governador Valadares, em novembro, foi registrada a temperatura de 40,3 graus, superando o recorde de 2015. E em dezembro foi decretada situação de emergência pela pior estiagem dos últimos 33 anos. A respeito da desertificação, das 20 cidades que mais esquentaram no último ano no País, 19 estão em Minas Gerais”, destacou ainda Tadeu Martins Leite.
O cenário preocupante foi exemplificado com um vídeo institucional exibido ainda no início dos debates. “Alguns vão pensar que são cenas gravadas fora do Brasil, ou então no Rio Grande do Sul, mas tudo aconteceu aqui em Minas Gerais”, lembrou o presidente da ALMG.
Estação chuvosa mais curta e interrompida por veranicos
A preocupação do presidente da ALMG foi reforçada na sequência pelo professor Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais (IFMG), Fúlvio Cupolilo, que detalhou um painel climatológico do Vale do Rio Doce.
Em sua apresentação, ele atestou que o verdadeiro problema é o aumento da duração da estação seca (de abril a setembro) enquanto a quantidade de chuva ainda se mantém na média na estação chuvosa (outubro a março).
Ou seja, a chuva está cada vez mais concentrada em um período menor, com chuvas mais fortes e maior capacidade de destruição. Ele também aponta o aparecimento mais frequente dos veranicos, ou seja, períodos secos dentro da estação chuvosa, sobretudo no Vale do Rio Doce, quase sempre na passagem entre fevereiro e março.
Em seus estudos, Fúlvio Cupolilo esclarece que a duração das estações chuvosas e secas são medidas sempre na forma de decêndios, períodos de dez dias, três por mês e 36 por ano. “No mês de janeiro essa variação pode ser mascarada. Afinal, dez dias sem chuva são uma tragédia para a agricultura”, explica.
Dessa forma, em Valadares, por exemplo, a estação seca totalizou 27 decêndios, contra apenas nove da estação chuvosa. Em Aimorés (Rio Doce), essa relação é ainda mais preocupante, de 32 para quatro decêndios.
Isso levando em conta outro conceito da área, o da variabilidade climática, que considera períodos de 30 anos, que o especialista prefere em substituição ao de mudança climática, dois dogmas atuais conflitantes da climatologia sobre a real dimensão da intervenção humana no clima do planeta.
“Dentro da variabilidade climática está tudo ainda dentro do normal. A duração da estação seca e chuvosa aumenta e diminui a cada 30 anos”, afirma o especialista, ao discordar das conclusões de modelos matemáticos e suas previsões catastróficas.
Sendo assim, ele garante uma perspectiva climática mais positiva para os próximos 30 anos, ao menos para o Vale do Rio Doce, com relação a um aumento menor da média de temperatura (0,9 graus em vez de 2 graus) e de mais precipitações (mais 100 milímetros em vez de queda de 250 milímetros).
Diante do desafio proposto pelo seminário da ALMG, Fúlvio Cupolilo propõe medidas mais concretas como o uso e ocupação do solo mais racional na forma da elaboração e cumprimento de planos diretores municipais. “Dinheiro é importante, mas tem que ter também planejamento. Toda cidade tem que ter seu plano diretor, que vai orientar os governantes para onde a cidade deve crescer”, resume.
Em Governador Valadares, o plano diretor remonta a 2006, mas o processo de revisão, que por lei deve acontecer a cada dez anos, está com oito anos de atraso, conforme relatado na reunião.
“É o caso do asfaltamento das ruas sem refazer a rede pluvial, que é antiga. O asfalto em si já não é o mais adequado para Valadares, que contribui para o aumento da temperatura", exemplificou. Ele citou ainda como exemplo a situação enfrentada pelos moradores da Ilha dos Araújos, bairro de classe média-alta da cidade.
“É um bairro muito agradável, mas fica em uma área de risco. Podem construir diques, barragens, que, toda vez que chover muito, ali vai alagar. Somente no dia que a enchente cobrir a copa das árvores por uma semana é que as pessoas vão entender que a ilha não é um lugar de morar”, ironiza.
À tarde, intercaladas com intervenções do público presente, a reunião do encontro regional do seminário técnico da ALMG contou com o detalhamento de duas boas práticas na convivência com os desafios impostos pelo ambiente no Vale do Rio Doce. E, na sequência, aconteceu a plenária “Diagnóstico regional sobre os impactos da crise climática”.
Boas práticas na convivência com os desafios do ambiente
A primeira boa prática apresentada foi a da Rede Leste de Banco de Alimentos (Relba). Segundo seu presidente, João Paulo de Paiva Ramos, a iniciativa conta atualmente com 53 municípios, que em breve ganharão a adesão de Abre Campo (Mata). Essa integração começou em 2014, com três bancos, seguindo uma ideia surgida ainda na década de 1960, nos Estados Unidos, que chegou ao Brasil somente em 2003.
Em linhas gerais, a Relba possibilita que o alimento excedente no banco de alimentos de um município da rede possa ser levado para outro e, assim, ser doado a instituições, de maneira que todos os municípios que fazem parte da Relba sejam atendidos, não havendo desperdício.
“Esses alimentos seriam jogados no lixo e iriam contribuir para emissão de CO2”, aponta João Paulo. Dessa forma, a Relba coleta 250 toneladas de alimentos por semana, sendo que desse total 40% seria desperdiçado.
E, num cenário de eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes, esses alimentos podem ser um apoio importante em situações de calamidade pública, como a enchente registrada em Açucena (Rio Doce), em janeiro último.
A Relba faz parte da Rede Brasileira dos Bancos de Alimentos, dentro das Politicas Públicas de Segurança Alimentar e Nutricional do Ministério do Desenvolvimento Social do Governo Federal. O sucesso da iniciativa já faz com que a rede concentre atualmente, no Estado, 40% dos recursos públicos estaduais e federais para o setor nesse segmento.
A rede tem inclusive uma parceria com a Comissão de Participação Popular da ALMG que, por meio de emendas, já destinou recursos para a compra de 20 veículos, contra apenas quatro destinados pelo governo federal.
A outra boa prática apresentada, o Projeto Água Viva, foi detalhada pelo gerente regional da Emater, Ademar Moreira Pires. O projeto tem como prioridade promover ações de conscientização ambiental de agricultores para a necessidade de conservação de água, com a construção de bacias de captação de águas pluviais, amenizando os efeitos do escoamento superficial, especialmente a erosão.
Nesse contexto, ele relatou que o órgão está presente hoje em 88 dos 96 municípios da região, cuidando de cinco cadeias produtivas, mas com foco prioritário na agricultura familiar.
Sobre a importância do projeto, ao avaliar a correlação da biocapacidade (capacidade de regeneração do meio ambiente) e a pegada ecológica (impacto do ser humano), ele destacou que o Vale do Rio Doce é a região com maior velocidade de degradação ambiental do Brasil.
“Isso sim nos assusta. Se até o vigor das pastagens na região está sendo impactado, imagina nas outras culturas, como a horticultura. A baixa cobertura do solo leva à baixa capacidade de inflitrar água no solo e isso seca as nascentes. O produtor rural paga o preço disso, independentemente do tamanho”, analisa Ademar Pires.
Plenária faz diagnóstico sobre impactos da crise climática
Já a plenária contou com três professores do IFMG, Daniela Martins Cunha (licenciada em geografia, mestre em extensão rural e doutora em geografia), Débora Neide Magalhães Praxedes (bióloga, especialista em análise ambiental e mestre e doutora em saneamento ambiental) e Tonimar Domiciano Arrigui Senra (bacharel e licenciado em química, mestre em agroquímica e doutor em ciências).
Completou a mesa o professor Haruf Salmen Espíndola, historiador e professor da Universidade Vale do Rio Doce (Univale).
Responsável por um projeto de previsão climática, Daniela Cunha destacou que é impossível falar de crise climática sem falar no uso inteligente da água, retirada do ambiente para múltiplos consumos e devolvida quase sempre poluída. “Repensar como e de onde retirar água e como a devolvemos é talvez o maior problema hoje da humanidade. Os projetos de saneamento só privilegiam os grandes municípios”, aponta.
Ela lembrou ainda do rompimento da barragem da Vale em Mariana (Central), em 2015, citada de forma crítica diversas vezes ao longo dos debates. “Depois de Mariana e do assoreamento do Rio Doce, não precisa chover tanto mais para ter inundação em Governador Valadares”, lamentou.
Já Débora Praxedes explicou seu projeto de monitoramento da qualidade de água em Valadares, citando diversas lagoas urbanas cujas águas estão completamente verdes em virtude do crescimento de microorganismos em excesso. São águas que, com base nos parâmetros de pureza, são classe 4, a pior de uma escala que vai da classe especial à 4.
“Só servem para harmonia paisagística e navegação. Nenhum ser humano pode ter qualquer tipo de contato com essa água. A gente vê pessoas pescando e consumindo os peixes pescados ali”, disse.
Já Tonimar Senra fez uma apresentação institucional da atuação do IFMG no Estado, que conta atualmente com 156 mil estudantes matriculados.
E, por fim, Haruf Spíndola apontou que a dinâmica exclusiva de extração dos recursos naturais foi a base do processo de formação do território, o que levou o Vale do Rio Doce a uma situação atual de colapso da sustentabilidade ambiental. Segundo o mesmo professor, um estudo da Vale de 1969 apontaria índices de cobertura florestal original que variam de apenas 2,5% a 15%, começando pelo Vale do Aço e passando do Médio ao Alto Rio Doce.