Morte de liderança campesina escancara complexidade da reforma agrária
Assassinato de Bob, líder histórico da causa no Triângulo Mineiro, motiva debate da Comissão de Direitos Humanos da ALMG em Uberlândia.
28/04/2025 - 22:27De um lado, depoimentos emocionados por mais um companheiro morto em meio à luta pela reforma agrária. Do outro, as constatações de que o processo de regularização fundiária no Brasil ainda caminha dois passos para trás a cada passo dado para frente e de que só haverá paz no campo quando isso mudar.
Essa foi a tônica da audiência pública realizada pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) nesta segunda-feira (28/4/25), em Uberlândia (Triângulo Mineiro), atendendo a requerimento da presidenta do colegiado, deputada Bella Gonçalves (Psol).
O debate acontece após uma liderança histórica do sem-terra no Triângulo Mineiro, Robinson dos Santos Guedes, o “Bob”, de 62 anos, ter sido assassinado com um tiro na cabeça no último dia 7 de março.
A vice-presidenta da Comissão de Direitos Humanos, Andreia de Jesus (PT), reforçou a importância da presença do Parlamento mineiro em Uberlândia como um posicionamento ao lado da família e amigos de Bob na luta pela reforma agrária. Ela defendeu ainda que serviços públicos básicos como saúde, educação, energia e água cheguem aos acampamentos bem antes do título da terra.
“O sistema quer que a gente se mate na disputa por um pedaço de chão, mas precisamos de paz nos territórios”, avaliou a parlamentar.
A audiência foi salpicada por homenagens ao líder morto, gritos de mobilização e músicas alusivos ao movimento social. A viúva de Bob, Claudelúcia Maria Alves Elias, mais conhecida como Tia Lúcia, e outros familiares e amigos, participaram da reunião. Eles o descreveram como um líder incansável, de opiniões fortes, estrategista na luta pela reforma agrária e, sobretudo, um formador de outras lideranças na região.
O crime acontece no Assentamento Dom José Mauro, em uma região próxima a Miraporanga, distrito de Uberlândia. Mas, ao contrário da maioria das mortes nessas circunstâncias, Bob não foi morto por capangas de latifundiários, nem em alguma operação repressiva das forças de segurança numa reintegração de posse.
O suspeito é um homem que teria arrendado um terreno de terceiros no acampamento e via Bob como um “invasor de terras”, conforme relatos, o que mostra a complexidade do problema.
Como não foi preso em flagrante, ele continuaria circulando livremente pelo local, causando apreensão, conforme relata Tia Lúcia, que contou que o marido morreu assim que chegou no local com material de construção para começar a erguer um novo espaço de mobilização dos acampados. A viúva, por sua vez, era a coordenadora da cozinha comunitária em outro acampamento da região, o Morada Nova.
Problema complexo, solução demorada
A complexidade da questão fundiária na região é uma das justificativas da principal representante do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) na reunião. Na lista de problemas estão entraves jurídicos e burocráticos, falta de infraestrutura do órgão e, o principal, recursos para, sobretudo, indenizar terras desapropriadas.
“Não estamos parados, seguimos buscando caminhos. Nosso orçamento, por exemplo, só está chegando agora. Até agora temos utilizado apenas verbas emergenciais”, afirmou a superintendente regional do Incra em Minas Gerais, Neila Maria Batista Afonso. Ela conhecia Bob e se emocionou bastante ao lembrar da atuação dele.
No caso específico do Assentamento Dom José Mauro, cenário da execução, ela destacou que será feito em breve o georreferenciamento da área com a ajuda de emendas parlamentares. Esse procedimento é essencial para futuramente dar a titulação às pessoas que vivem ali.
Mas, de acordo com ela, um acordo com o Ministério Público (MP) prevê que devem ficar no terreno apenas famílias excedentes de outros assentamentos e, por isso, um pequeno número delas devem ser deslocadas em breve para outro local.
“Nós vamos resolver. Esperem mais alguns dias e não tentem resolver por conta própria. Não quero colocar mais ninguém em risco”, recomendou.
Já a diretora da Câmara de Conciliação Agrária do Incra, Carolina Morishita Mota Ferreira, relatou que a morte de Bob abalou toda sua equipe e o caso se tornou uma prioridade em nível nacional do órgão. Ela lamentou que tenha sido dedicado muito esforço em reconstruir infraestrutura e ações que teriam sido destruídas na gestão federal anterior.
“Ainda tentamos recuperar o que retrocedeu e, ao mesmo tempo, tentar avançar com a reforma agrária. Temos ciência de que esse processo desgasta as instituições, ainda mais num cenário de dificuldades orçamentárias. Nossa prioridade no momento é apurar quem está devendo ao poder público para aí negociar as terras. Também temos planos de pacificação e as áreas mais violentas são prioridade”, relatou a gestora.
Desequilíbrio de forças na luta pela terra
Além das lamentações pela impunidade pelo assassinato de Bob, lideranças sem-terra da região relataram o desequilíbrio de forças na luta pela terra no Triângulo Mineiro. Amigo da vítima há décadas, Lourival Soares da Silva, do Movimento Terra, Trabalho e Liberdade (MTL) lamentou que, no Brasil atual, não exista uma lei que, de fato, favoreça a reforma agrária.
A coordenadora do Acampamento Beira Rio (Fronteira) e do Acampamento Rio Grande (Frutal), Rosa Marta de Souza, lembrou que, por conta de sua atuação, já teve a casa invadida por criminosos que teriam tentado intimidá-la com uma arma encostada em sua cabeça.
Sobre o assassino de Bob já tê-lo chamado de “invasor de terras”, Rosa denuncia: “Isso não veio dele, mas de alguém do agro que odeia as ocupações e os movimentos sociais. E cada liderança que cai enfraquece o movimento. É isso mesmo que eles querem”.
“Um companheiro teve que tombar pra gente se unir, mas infelizmente muitos ainda vão tombar também. Quem poderia imaginar que um arrendatário poderia assassinar o Bob? Ele não era um bandido, chegou nessa luta muito antes dos movimentos sociais organizados com suas siglas. Foi uma perda muito grande. Ele era um estrategista, sabia quando avançar ou recuar”, descreveu.
A coordenadora do Acampamento Arco Íris, em Gurinhatã, Eliana de Lima Teófilo, diz que seu território vive cercado de jagunços desde 2009 e já perdeu a esperança de uma atuação efetiva do poder público, seja na forma de proteção, seja com a regularização da terra.
O resultado disso são tiros no meio da noite, incêndios criminosos, destruição de casas e plantações, envenenamento da água e animais, entre outras perturbações. “Chamamos a polícia que só aparece muito tempo depois que já aconteceu, quando a gente até se esqueceu. Faz o boletim de ocorrência e vai embora. Vivemos apavorados”, lamentou.
Função social da propriedade
O coordenador do Centro de Apoio Operacional de Conflitos Agrários do MP, o procurador Afonso Henrique de Miranda Teixeira, disse que, apesar de confiar em um desfecho justo para o crime, cobrou mais rapidez na atuação da Polícia Civil, do próprio MP e do Poder Judiciário para fazer da morte de Bob um marco pelo fim da impunidade na luta por terras no Estado.
O procurador elogiou a atuação de Bob na região, com quem se encontrou muitas vezes nos últimos anos. Também defendeu que as instituições baseiem sua atuação de forma “mais inteligente e eficaz” no cumprimento da função social da terra, como estabelece a Constituição Federal.
“A fazenda que deve ser desapropriada é somente aquela que não cumpre sua função social, que não produz. O Poder Judiciário também não pode ficar dando reintegração de posse nesses casos. Quem for para lá e também não seguir isso, também deve sair”, analisou o procurador.
O delegado Carlos Antônio Fernandes, titular da Delegacia de Crimes contra a Pessoa em Uberlândia, prometeu finalizar o inquérito nos próximos dias. Segundo ele, não foi possível caracterizar o flagrante que poderia levar a prisão do suspeito, mas com o envio do seu relatório à Justiça poderá ser decretada a prisão preventiva.


