Notícias

Estatuto precisa melhorar acesso de grupos populares às leis de incentivo 

Audiência em Montes Claros recolhe propostas para criação do Estatuto da Igualdade Racial de Minas Gerais. Participantes cobram mais visibilidade e recursos para cultura afro.

30/10/2023 - 23:45 - Atualizado em 31/10/2023 - 11:32
Imagem

Medidas que viabilizem o acesso dos grupos de cultura popular e dos povos tradicionais, especialmente os quilombolas, às leis de incentivo à cultura. Essa foi a principal demanda apresentada na audiência pública da Comissão de Cultura da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), realizada na noite dessa segunda-feira (30/10/23), em Montes Claros (Norte).

Solicitada por quatro parlamentares negras da Assembleia, a reunião teve como objetivo debater a cultura negra no Estado, na perspectiva de criação do Estatuto da Igualdade Racial de Minas Gerais. As deputadas Leninha, 1ª vice-presidenta da ALMG, Macaé Evaristo e Andréia de Jesus (PT), todas do PT, além de Ana Paula Siqueira (Rede) são autoras do Projeto de Lei (PL) 817/23, que institui esse estatuto. 

Botão

Cultura negra ainda é vista com preconceito

Na avaliação de Ângela Borges, coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Unimontes, o Estatuto poderá auxiliar os grupos culturais do município. Ela relatou que há um embate entre estes e a atual secretária municipal de cultura, que teria uma concepção elitista e colonial de cultura, tratada apenas como erudição. “Isso precisa mudar. Na cabeça do pessoal da secretaria, nós, que somos povo de terreiro, para participar de edital, temos que contratar especialista”, reclamou.

Como resultado dessa discriminação, os grupos de terreiros de candomblé teriam conseguido apenas R$ 50 mil de um total de R$ 3 milhões destinados pela Lei Paulo Gustavo a Montes Claros, o que seria muito pouco para a pesquisadora.

Citação

Na mesma linha, Ernesto Zanza Jr., presidente da Associação dos Catopês, Marujos e Caboclinhos de Montes Claros, disse que é preciso desconstruir o racismo estrutural que marca a sociedade brasileira. E defendeu como um dos meios para essa desconstrução levar às escolas o conhecimento da cultura dos grupos afro

Também Luciana Oliveira, do Grupo de Capoeira Odara, do município, detectou racismo na maneira como os grupos populares de cultura são tratados. “Os fazedores de cultura, não só de terreiro, mas os da capoeira e outros, são pessoas simples, que não conseguem fazer um projeto para participar de uma lei como a Paulo Gustavo”, declarou.

Em Montes Claros, relatou, a situação foi agravada pelo fato de a Secretaria de Cultura não disponibilizar uma pessoa capacitada para apoiar os grupos. Ainda na avaliação dela, é preciso educar a sociedade quanto às manifestações da cultura negra. 

Vídeo

Quilombos sofrem todo tipo de ameaças

Por sua vez, Maria das Dores Pereira, quilombola da comunidade pesqueira de Croatá, de Januária (Norte), lamentou que seu quilombo e outros estejam perdendo sua tradição cultural mais forte: “Meus avós tinham o batuque na ponta dos pés; e os jovens de lá agora não sabem o que é essa dança, que deveria ser ensinada nas escolas”, disse.

Ela também denunciou as ameaças que seu povo vem sofrendo nos territórios, por parte de fazendeiros e desmatadores de áreas na região. Segundo ela, isso acontece porque os quilombolas locais não conseguiram a demarcação de seus territórios

Deputadas valorizam construção coletiva do novo estatuto

Imagem

Presidindo a reunião, a deputada Macaé Evaristo lembrou que serão realizadas várias audiências para se construir coletivamente um Estatuto da Igualdade para Minas Gerais. Na sua opinião, é fundamental inserir as ações afirmativas nas políticas públicas do Estado. “Temos concursos na educação, que não contamos com as cotas; esse é um dos exemplos de mudanças que precisamos fazer nas leis de Minas, que tem maioria autodeclarada negra”, apontou.

A deputada Andréia de Jesus destacou que o objetivo principal do estatuto é sistematizar tudo aquilo que já é realizado e reconhecido como política pública no Estado, além de buscar integrar essas políticas. Ela avaliou ainda que essa norma deve nascer com propostas de disputar conceitos, acrescentando que essa legislação poderá subsidiar as prefeituras na criação de suas leis.

Citação

Por sua vez, a deputada Leninha (PT) declarou que, no debate sobre o estatuto, o processo será descentralizado, de maneira a ouvir o máximo de grupos sociais envolvidos com o tema. Egressa da Unimontes, a parlamentar disse que nessa instituição construiu seu conhecimento. “Faço parte dos 54% dessa população brasileira negra. Periférica, saí de baixo numa região onde predominavam homens brancos,  endinheirados”, relembrou. Ela anunciou que a ideia é entregar o Estatuto pronto até maio de 2024.

Baixo orçamento

A vereadora de Montes Claros Iara Pimentel também defendeu o fortalecimento de uma educação antirracista nas escolas, para combater diariamente o racismo estrutural. Também propôs a inclusão de propostas que garantam o financiamento da cultura. “Apenas 0,37% do orçamento do município foi para a cultura. Isso não é nada. Precisamos melhorar, ou não tiraremos da invisibilidade os nossos ritos, nossa cultura do povo”, refletiu.

Já Maria Railma Alves, coordenadora do Observatório de Desigualdades Etnico-raciais da Unimontes, acredita que a própria discussão sobre o Estatuto da Igualdade Racial já é uma contribuição para a educação antirracista. Também professora da universidade, ela propôs a alteração dos editais para a cultura, de modo a facilitar a entrada das pessoas com menor letramento.  

Já na fase de debates, a advogada popular Maria Oliveira divulgou a realização na Unimontes do Colóquio Internacional de Povos Tradicionais de Terreiro. Também mãe de santo, ela acrescentou que, pela primeira vez, o povo de terreiro veio para a universidade não só para uma apresentação cultural, mas para falar sobre sua cultura e suas demandas. “A grande maioria desses terreiros não tem alvará de funcionamento; essa limitação estrutural impõe outras, como a de não poder concorrer a uma lei de incentivo à cultura, pois a maioria não tem CNPJ”, informou.

Durante a reunião, aconteceram várias apresentações culturais de grupos afro do município. A Família Maezo apresentou números com atabaque, chocalho e voz, com saudações a orixás do candomblé, como Exu, Ogum, Oxalá, Iemanjá. Xangô e Iansã. Ao final, o grupo Saruê, da própria Unimontes, fez uma apresentação de música africana livre com danças típicas afro.

Em nível federal, o Estatuto da Igualdade Racial existe desde 2010, instituído pela Lei 12.288. Entre outros pontos, a norma determinou que a lei orçamentária deve explicitar os recursos para o financiamento de políticas públicas para a promoção da igualdade racial. Também estabeleceu o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial, para articular e apoiar os municípios que implementem ações afirmativas e realizem políticas visando a igualdade entre negros e não negros.

Comissão de Cultura - debate sobre a Cultura Negra no Estado dentro da perspectiva de um estatuto da igualdade racial
"Os terreiros fazem trabalhos culturais belíssimos e a secretaria insiste em nos deixar ocultos.”
Ângela Borges
Coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Unimontes
Grupos cobram apoio à cultura negra TV Assembleia
“Precisamos dizer o que é cultura para nós. Destrinchar o que é cultura popular, o que é capoeira e assim por diante.”
Andréia de Jesus (PT)
Dep. Andréia de Jesus (PT)
Comissão de Cultura - debate sobre a Cultura Negra no Estado dentro da perspectiva de um estatuto da igualdade racial

Receba as notícias da ALMG

Cadastre-se no Boletim de Notícias para receber, por e-mail, as informações sobre os temas de seu interesse.

Assine