Notícias

Comunidades cobram revogação de norma sobre consulta a povos tradicionais

A própria resolução sobre escuta prévia a atingidos por empreendimentos foi feita sem ouvir comunidades, que denunciam desrespeito em seus territórios.

19/05/2023 - 20:41
Imagem

Quilombolas, geraizeiros e indígenas de várias partes de Minas Gerais reivindicaram nesta sexta-feira (19/5/23) a revogação da resolução estadual que regulamentou a consulta prévia e livre aos povos tradicionais afetados por empreendimentos econômicos, a exemplo da mineração.

Em audiência na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), parlamentares presentes e todos os convidados, à exceção do governo do Estado, apontaram que, paradoxalmente, a própria resolução que trata da consulta foi feita sem consulta aos povos tradicionais.

"É uma resolução que diz respeito à consulta, mas feita sem consulta. Ou seja, ela fere o princípio que ela mesma quer regulamentar", resumiu o professor do Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG, Aderval Costa Filho.

Botão

A consulta livre e informada tratada na audiência é prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Esse instrumento legal tem o objetivo de assegurar os direitos dos povos indígenas e tribais, e foi ratificado pelo Brasil em 2002.

A norma regulamentando essa consulta em âmbito estadual é a Resolução Conjunta nº 01/22, das Secretarias de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese) e de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), que teria sido feita sem a participação popular.

Na reunião, foram vários os relatos de comunidades atingidas por empreendimentos que não estariam respeitando seu modo de vida e seus territórios.

Citação

João Carlos Pio de Souza, da Comissão das Comunidades Tradicionais Atingidas pelo Rodoanel e do Quilombo dos Arturos, em Contagem (Região Metroplitana de Belo Horizonte), registrou que o quilombo há quatro anos luta pelo respeito ao seu território e quer garantia de que haverá consulta prévia e livre à comunidade em empreendimentos como o do Rodoanel da Região Metropolitana de Belo Horizonte.

"É preciso garantir o modo de vida, a sobrevivência e a cultura das comunidades tradicionais, hoje são três terreiros inventariados como patrimônio do município que serão atingidos pelo Rodoanel", disse ele.

Áudio

Exploração e desrespeito

Rosilene Bispo de Jesus veio de Paracatu (Noroeste de Minas). Presidente da Conferência Municipal de Promoção da Igualdade Étnico Racial (Conpir), ela disse que as casas nas comunidades quilombolas de sua região estão rachadas pelo impacto da mineração exercida pela Kinrooss, tida como a maior empresa a céu aberto do mundo e que estaria contaminando o meio ambiente e expondo os moradores a problemas de saúde.

Merong, Cacique Kamakã Mongoió, contou a história de seus ancestrais em vários momentos, até chegar ao rompimento da barragem da mineradora Vale em Brumadinho (RMBH) em 2019. Além das mortes causadas, o desastre contaminou o Rio Paraopeba, onde os indígenas pescavam.

"Meu povo teve que se espalhar porque não tinha mais seu cotidiano normal por causada mineradora. O povo ficou contaminado pela lama e pela ganância", criticou o cacique.

Imagem

Membro do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Lucas Pereira é de Aracuaí (Vale do Jequitinhonha) e também criticou o tratamento dado à sua região.

Citação

O representante do MAB ainda observou que se agora há quem se refira à sua região como sendo o vale da riqueza é pelo início de empreendimento para a exploração de lítio em Araçuaí, metal usado por exemplo na produção de bateria.

"Um material que os técnicos falam que é revolucionário para a energia limpa, mas é essa energia limpa que está afogando os povos de poeira, onde há uma Apa que está sendo estourada", ironizou ele, denunciando que degradações já estariam ocorrendo por conta do empreendimento, inclusive em área de proteção ambiental (APA).

Empreendedor seria beneficiado

Além de ter um vício de origem, por ter sido feita à revelia inclusive da própria Comissão Estadual de Desenvolvimento Sustentável de Comunidades e Povos Tradicionais, a resolução teve vários pontos questionados. Entre eles, o prazo de 45 dias dado para que as comunidades construam seus protocolos de consulta, com assessorias técnicas que podem ser contratadas pelo próprio empreendedor.

"Ou seja, o Estado quer se desonerar, e o empreendedor é o que vai pagar a conta, determinando sua vontade nos processos de licenciamento", condenou o professor Aderval Costa Filho.

A defensora pública Ana Cláudia Storch acrescentou que a resolução na prática traz é a desproteção do desenvolvimento sustentável. "Todos os licenciamentos em Minas têm sido conduzidos desconhecendo previamente essas comunidades tradicionais", afirmou ela.

A defensora também avaliou que Minas ainda vive um cenário de pressões e perseguições, inclusive armadas, a várias comunidades tradicionais que lutam por seu território preservado, tendo o procurador federal Helder Magno da Silva informado que o Conselho Nacional dos Direitos Humanos expediu recomendação contrária à resolução.

Vídeo

Projeto cobrando revogação tramita na ALMG

Reforçando que a resolução foi criada sem escuta e dentro de gabinetes, a deputada Andréia de Jesus (PT), presidenta da comissão, defendeu que qualquer ato do Estado que a tenha como parâmetro deve ser sustado.

A deputada Bella Gonçalves (Psol), vice-presidenta da comissão, criticou a Semad, que segundo ela quer acelerar os licenciamentos e dizer quem é ou não povo tradicional com direito ao território. 

Os deputados Leleco Pimentel, Betão e Doutor Jean Freire, todos do PT, também defenderam as comunidades, assim como as deputadas Leninha, Macaé Evaristo e Beatriz Cerqueira, também do PT.

Beatriz Cerqueira destacou que tramita na ALMG o Projeto de Resolução 173/22, de sua autoria e da deputada Andréia de Jesus, que susta os efeitos da resolução e que já está pronto para discussão e votação do Plenário.

Governo tem apelo negado

Ao final da audiência pública, o subsecretário de Direitos Humanos do Governo do Estado, Duílio Campos, afirmou que estão sendo avaliadas as argumentações expostas e não descartou a possibilidade de revogação da resolução.

No entanto, ele ressaltou que a Advocacia Geral do Estado (AGE) não encontrou ilegalidade na norma e  disse que o posicionamento do governo, neste momento, é de manter a resolução e realizar as consultas livres prévias e informadas. Ele fez um apelo nesse sentido para os representantes das comunidades tradicionais, que rejeitaram o pedido e voltaram a exigir a revogação.

Comissão de Direitos Humanos - debate sobre o direito dos povos tradicionais aos territórios e à consulta prévia
Comissão de Direitos Humanos - debate sobre o direito dos povos tradicionais aos territórios e à consulta prévia
"Estamos com dois laudos antropológicos a nosso favor, e nosso território ainda sendo saqueado por empresas de mineração e plantio de eucalipto."
Marlene de Souza
agricultora familiar, geraizeira de Grão Mogol (Norte de Minas)
"O Jequitinhonha não é o vale da miséria não, é o vale da exploração. Há mais de 30 anos estamos sem água nas comunidades, mas para a mineradora tem água."
Lucas Pereira
integrante do Movimento dos Atingidos por Barragens de Aracuaí
Deputados receberam representantes de povos e comunidades tradicionais, que cobram a aplicação da consulta prévia, livre e informada sobre projetos que impactam seus territórios TV Assembleia
Áudio

Receba as notícias da ALMG

Cadastre-se no Boletim de Notícias para receber, por e-mail, as informações sobre os temas de seu interesse.

Assine