Alto índice de feminicídio e a Covid-19 elevam o número de órfãos em Minas
Participantes de audiência pública sugerem políticas para garantir apoio mais ágil e efetivo aos órfãos.
05/09/2024 - 18:24Diante da morte da mãe ou do pai, seja causada pela pandemia de Covid-19 ou pelo feminicídio, muitas vezes o Estado anota a estatística mas esquece as crianças e adolescentes órfãos. Essa constatação foi a preocupação comum dos participantes da audiência pública realizada nesta quinta-feira (5/9/24) na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) pela Comissão do Trabalho, da Previdência e da Assistência Social.
A reunião teve a finalidade de debater as ações de proteção, no Estado, das crianças e adolescentes órfãos e de suas famílias. Foi uma iniciativa da deputada Ana Paula Siqueira (Rede), autora do Projeto de Lei (PL) 3.632/22, que institui a Política Estadual de Proteção e Atenção Integral aos Órfãos e Órfãs do Feminicídio.
Ao abrir a reunião, a deputada afirmou que, em maio de 2023, havia 3.643 meninos e meninas em abrigos por toda Minas Gerais, por diversos motivos, desde abuso até abandono e falecimento de pais. “É urgente buscar articulação dos serviços públicos, visando à promoção, proteção e defesa dos direitos das crianças e adolescentes órfãos”, cobrou a deputada.
Segundo Ana Paula Siqueira, Minas Gerais é o segundo estado com maior número de feminicídios, uma tragédia que priva os órfãos não apenas do convívio com a mãe, uma vez que muitas vezes o pai é também o agressor. “Já vi aqui uma filha dizer que não conseguia mais se referir ao genitor como pai”, lembrou a deputada.
Outra grande causa de orfandade em Minas Gerais foi a pandemia de Covid-19. Um exemplo concreto do impacto gerado por essa tragédia foi relatado pela professora do Departamento de Serviço Social da PUC Minas, Fernanda Flaviana Martins. O caso foi identificado em pesquisa sobre o impacto da pandemia em três comunidades de Belo Horizonte: Vila Maria, Fazendinha (no Aglomerado da Serra) e Taquaril.
Identificada pelo nome fictício de Ana, a menina perdeu a mãe aos 11 anos de idade durante a pandemia. “A criança entrou em depressão, seu problema de obesidade se agravou e ainda precisou fazer uma cirurgia urgente. Ela sofreu muito bullying na escola e dificuldades de locomoção. A irmã não tinha guarda judicial e enfrentou muitas dificuldades para conseguir consultas, matrícula na escola, acompanhamento médico e psicológico”, relatou Fernanda Martins.
De acordo com o secretário executivo da Coalizão Nacional Orfandade e Direitos, Milton Alves Santos, dados oficiais dos cartórios mostrariam em Minas Gerais mais de 6,1 mil órfãos, sendo 70% deles com menos de seis anos de idade e 10% deles órfãos da Covid-19.
Os participantes da audiência pública se referiram ao caso de “Ana” como um exemplo de falha do Estado, que contabilizou a morte da mãe, mas falhou em tomar providências em favor da filha. A mesma falha que acontece com relação às vítimas identificadas por órgãos de saúde também é cometida por órgãos de Justiça e de segurança pública.
Vítimas indiretas de feminicídio devem receber mais atenção
Milton Santos reforçou a necessidade de se priorizar a assistência aos órfãos. “A gente faz a gestão da morte e não da vida. Não há nenhum protocolo de como o Estado irá lidar com essas crianças”, alertou. Ele também advertiu que o Estado deve pensar nestas crianças antes de estimular uma política de encarceramento massivo.
Na opinião da promotora de Justiça Ana Tereza Sales Giacomini, coordenadora do Centro Estadual de Apoio às Vítimas - Casa Lilian do Ministério Público Estadual, o acesso às vítimas indiretas é a primeira dificuldade enfrentada em seu trabalho. “O Sistema de Justiça e o Sistema de Segurança Pública deveriam, já nesse primeiro momento, pensar nestas vítimas indiretas”, defendeu ela, acrescentando que essas informações deveriam ser repassadas aos órgãos de assistência social.
Hoje, em sua avaliação, essas vítimas indiretas ficam esquecidas. “Elas vão ficar esquecidas até que venham bater no sistema, seja cometendo um ato infracional ou novamente como vítima”, lamentou.
A Casa Lilian foi criada pelo Ministério Público em 2023 e foi batizada em homenagem à servidora Lilian Hermógenes da Silva, assassinada em 23 de agosto de 2016 a mando do ex-marido. O órgão é dedicado ao atendimento integral de pessoas que foram vítimas de crimes, seus familiares, comunidades ou coletivos. O foco está em crimes sexuais, homicídio, feminicídio, racismo e outros crimes de ódio ou discriminação.
A defensora pública Eden Mattar, coordenadora da Dedica-Cível/BH - Defensoria Especializada dos Direitos das Crianças e Adolescentes, lembrou que muitas vezes o Cadastro Único para Programas Sociais (CADúnico) simplesmente é cancelado com a morte do titular. “Que assistência é essa interrompida quando a criança mais necessita?”, questionou, propondo que os cartórios de registro passem a comunicar aos órgãos de assistência social as informações necessárias para a efetivação do trabalho de proteção aos órfãos.
A assessora-chefe de Relações Institucionais da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese), Bárbara Queiroz Franco, elogiou a iniciativa da deputada Ana Paula Siqueira de propor um projeto de lei para regulamentar a assistência aos órfãos vítimas de feminicídio. “Acreditamos que essas crianças merecem prioridade e estamos disponíveis para criar ferramentas para isso”, declarou. Ela acrescentou que, em alguns casos, isso já é feito por meio do Programa de Proteção à Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM-MG).