PLC PROJETO DE LEI COMPLEMENTAR 46/2024
Projeto de Lei Complementar nº 46/2024
Altera a Lei Complementar nº 116, de 11 de janeiro de 2011, que dispõe sobre a prevenção e a punição do assédio moral na administração pública estadual.
A Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais decreta:
Art. 1º – Ficam acrescentados os seguintes incisos ao § 1º e o seguinte § 4º do art. 3º da Lei Complementar nº 116, de 11 de janeiro de 2011:
“Art. 3º – (…)
§ 1º – (…)
XV – submeter o agente público à sobrecarga de trabalho descumprindo sua carga horária sem compensação ou remuneração correspondente;
XVI – exigir do agente público metas, tarefas ou atividades desproporcionais, impossíveis de serem cumpridas ou desprezadas pelos outros;
XVII – constranger ou coagir o agente público a não apresentar licença médica;
XVIII – coagir o agente público afastado por questões de saúde;
XIX – prejudicar, impedir ou dificultar a obtenção de toda e qualquer informação necessária para o correto desenvolvimento das funções do agente público;
XX – impedir segurança jurídica e funcional do agente público na execução de suas funções e acesso aos seus direitos;
XXI – manipular informações, deixando de repassá-las com a devida antecedência necessária para que o agente público realize as suas funções;
XXII – retirar cargos e funções do agente público sem motivo justo;
XXIII – afastar ou transferir o agente publico do seu local de trabalho sem motivação;
XXIV – ignorar a presença do agente público, utilizando-se de terceiros para a ele fazer qualquer referência ou pedido;
XXV – tratar o agente público por apelidos ou expressões pejorativas;
XXVI – sonegar ou dificultar o acesso do agente público às informações, atos e documentos que sejam necessárias ao desempenho de suas funções ou relacionados à sua vida funcional;
XXVII – restringir ou suprimir liberdades ou ações permitidas aos demais de mesmo nível hierárquico funcional;
XXVIII – submeter o agente público a assédio de segunda ordem ou omitir-se para que ocorra a retaliação em razão de denúncia por irregularidade ou ilegalidade cometida no âmbito da administração pública;
XXIX – dificultar condições de trabalho ou criar situações humilhantes e/ou desagradáveis ao agente público;
XXX – impedir o livre exercício do direito de sindicalização de agentes públicos, por meio de sanções e perseguições impostas àqueles que estão em exercício do mandato sindical;
§ 1º – (…)
§ 2º – (…)
§ 3º – (…)
§ 4º – Considera-se assédio moral de segunda ordem todo tipo de ação que consiste em represálias ou ameaças que ocorrem após a denúncia pelo agente público de uma primeira ocorrência de assédio.”.
Art. 2º – Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
Sala das Reuniões, 25 de março de 2024.
Beatriz Cerqueira, presidenta da Comissão de Educação, Ciência e Tecnologia (PT).
Justificação: O assédio moral é um fenômeno psicossocial que se caracteriza pela violência psicológica, de modo que possui as mais variadas motivações, autorias e vítimas, manifestando-se em condutas abusivas diversas. Originalmente, parte de uma relação que envolve abuso de poder, posturas hostis, degradantes e agressivas de um determinado indivíduo em relação a outro.
A partir do acompanhamento desta Parlamentar, de diversos casos em que servidoras públicas denunciam a prática reiterada de assédio moral no âmbito da administração pública, foram coletadas as contribuições para a presente proposição. Atualmente, as múltiplas dimensões e facetas do assédio vêm sendo desveladas para a sociedade, de modo que é essencial definir e evidenciar, na legislação vigente, os aspectos mais destrutivos e formas de manifestação dessa conduta tão danosa.
Desse modo, propõe-se neste feito coibir o assédio moral que ocorre a partir da submissão de extensas jornadas de trabalho aos servidores e servidoras sem a devida compensação ou remuneração. Propõe-se também coibir o assédio aos servidores e servidoras que necessitam afastar-se de suas funções por razões médicas. Propõe-se ainda, coibir a prática de dificultar o acesso às informações e aos documentos, essenciais ao exercício das funções e para o acesso a direitos pelos servidores. Por fim, propõe-se coibir a ocorrência de assédio de segunda ordem. Tais condutas, estão fortemente presentes nos relatos de especialmente servidoras que se sentiram assediadas no ambiente de trabalho. Assim, explicitá-las de forma específica na legislação vigente, contribui para a identificação, prevenção e combate ao assédio moral.
A auditora fiscal do Ministério do Trabalho, Luciana Veloso Baruki, esclarece que: “assédio de segunda ordem, em particular, refere-se a represálias ou ameaças que ocorrem após a denúncia de uma primeira ocorrência de assédio. Uma consequência possível nesse contexto é a intensificação das práticas de assédio já existentes. Outra possibilidade de configuração seria pela introdução de novas formas de abuso, revelando o quão longe podem ir as ações negativas para desencorajar ou punir a busca por justiça”.
Assim, o assédio de segunda ordem ocorre de forma impeditiva e punitiva. No primeiro caso, ele desestimula a denúncia ou a oposição a abusos, por meio de tratamentos desfavoráveis que passam por condutas de isolamento, agressões, ameaças, difamação e até ostracismo social, dentre outras. Em circunstâncias laborais, nas quais o ato de se defender resulta em marginalização, os envolvidos são especialmente afetados. O abuso em segundo grau possui um caráter de vingança, sendo possível identificar ainda um aspecto punitivo no sentido de "educar" a vítima e os observadores sobre as consequências de desafiar o status quo, reforçando uma cultura de silenciamento e repressão.
O assédio de segunda ordem pode se apresentar como assédio reativo, situação na qual uma reação defensiva ostensiva da vítima acontece, por exemplo, por meio de gritos ou agressão física. Nessas circunstâncias, o abusador manipula os fatos para que sejam interpretados como “prova” de sua própria inocência. Essa inversão perversa, em que o abusador induz a vítima a reações extremas para depois acusá-la de ser a agressora, é uma tática comum de manipulação e exemplifica o abuso psicológico inerente ao assédio reativo enquanto uma forma de abuso de segundo grau.
Uma outra forma extremamente frequente que o assédio de segunda ordem assume é o assédio processual. Caracterizado pelo abuso estratégico do sistema de processos judiciais, administrativos e de outros meios legais, tem por objetivo enfraquecer, desestabilizar e desgastar a outra parte. Kafka, em O processo, descreve magistralmente tal dinâmica, com seu protagonista enredado em um emaranhado jurídico interminável e desprovido de sentido, simbolizando o desespero e a falta de poder frequentemente experimentada pelas vítimas nesses casos. Conforme relatado por servidores e servidoras que denunciam estarem sendo assediados moralmente por parte de agentes públicos estaduais, o assédio processual tem ocorrido com frequência, por meio de instauração de um número elevado de sindicâncias, processos administrativos disciplinares e até mesmo ações penais, fundados apenas no ensejo de perseguição e retaliação. Tal prática é comumente associada à omissão de informações e documentos, imprescindíveis à defesa das eventuais vítimas.
Portanto, o assédio de segunda ordem de natureza processual configura-se como um processo de revitimização por excelência quando, por exemplo, pessoas que denunciam o assédio moral sofrido, são injustamente acusadas de faltas disciplinares ou crimes.
Além disso, o assédio de segunda ordem pode atingir indiretamente aqueles que apoiam as vítimas, um fenômeno que desafia a solidariedade e poderia ser descrito como assédio por substituição. Defensores de direitos humanos no contexto de situações sistêmicas de assédio moral, sobrecarregados pelas consequências de seu engajamento, frequentemente são pressionados até que as redes de suporte se desmoronam. E, assim, os aliados são silenciados pelo medo de represálias.
Atualmente, a legislação não protege adequadamente testemunhas ou pessoas que dão suporte às vítimas. De modo que o risco do assédio de segunda ordem reside na sua capacidade de infiltrar-se nas estruturas legais e sociais, operando de maneira oculta e dificultando o seu enfrentamento. Um sistema de justiça que permite a manipulação de remédios constitucionais por entidades que se recusam a ser fiscalizadas por temas como assédio e discriminação indica que ainda há um longo caminho a percorrer quando se fala em proteger aqueles e aquelas que denunciam o assédio.
O enfrentamento e debate sobre o assédio de segunda ordem estão em curso com propostas legislativas sendo discutidas em vários países. A legislação catalã sobre “violência de segunda ordem”, estabelece um precedente importante na proteção da vítima e de seus aliados no que concerne ao assédio sexual. É inegavelmente um avanço jurídico significativo, sinalizando o caminho para outras regiões do mundo, em especial, para o estado de Minas Gerais.
Apesar da ampliação do debate em torno do tema, ainda são enormes os desafios em face da prevenção e do enfrentamento de violações de direitos das pessoas que denunciam ou pretendem denunciar. Para superar a persistente cultura de silenciamento, ainda se faz necessário um esforço sistêmico que seja capaz de garantir suporte incondicional às vítimas.
A elaboração da presente proposta contou a colaboração de servidores e servidoras que denunciam terem sofrido assédios no âmbito da administração pública estadual, bem como da Dra. Luciana Veloso Baruki, auditora pioneira em fiscalizações de assédio no Ministério do Trabalho, advogada, doutora em direito, médica especialista em saúde mental e psiquiatra.
Assim, pela importância da matéria aludida, conto com o apoio dos nobres pares para a aprovação desta proposição.
– Publicado, vai o projeto à Comissão de Justiça e de Administração Pública para parecer, nos termos do art. 192, c/c o art. 102, do Regimento Interno.