PL PROJETO DE LEI 2840/2024
Projeto de Lei nº 2.840/2024
Institui a Política Estadual de Cuidados.
A Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais decreta:
Capítulo I
DA POLÍTICA estadual DE CUIDADOS
Art. 1º – Fica instituída a Política Estadual de Cuidados, destinada a garantir o direito ao cuidado, por meio da promoção da corresponsabilização social e de gênero pela provisão de cuidados, consideradas as desigualdades interseccionais.
§ 1º – Todas as pessoas têm direito ao cuidado.
§ 2º – O direito ao cuidado de que trata o caput compreende o direito a ser cuidado, a cuidar e ao autocuidado.
Art. 2º – A Política Estadual de Cuidados é dever do Estado, no âmbito de suas competências e atribuições, em corresponsabilidade com as famílias, o setor privado e a sociedade civil.
Parágrafo único – Os Municípios poderão instituir as suas próprias políticas, em conformidade com o disposto nesta lei.
Art. 3º – A Política Estadual de Cuidados será implementada, de forma transversal e intersetorial, por meio do Plano Estadual de Cuidados.
Capítulo II
DOS OBJETIVOS
Art. 4º – São objetivos da Política Estadual de Cuidados:
I – garantir o direito ao cuidado, de forma gradual e progressiva, sob a perspectiva integral e integrada de políticas públicas que reconheçam a interdependência da relação entre quem cuida e quem é cuidado;
II – promover políticas públicas que garantam o acesso ao cuidado com qualidade para quem cuida e para quem é cuidado;
III – promover a implementação de ações pelo setor público que possibilitem a compatibilização entre o trabalho remunerado, as necessidades de cuidado e as responsabilidades familiares relacionadas ao cuidado;
IV – incentivar a implementação de ações do setor privado e da sociedade civil, de forma a possibilitar a compatibilização entre o trabalho remunerado, as necessidades de cuidado e as responsabilidades familiares de cuidado;
V – promover o trabalho decente para as trabalhadoras e os trabalhadores remunerados do cuidado, de maneira a enfrentar a precarização e a exploração do trabalho;
VI – promover o reconhecimento, a redução e a redistribuição do trabalho não remunerado do cuidado, realizado primordialmente pelas mulheres;
VII – promover o enfrentamento das desigualdades estruturais e interseccionais no acesso ao direito ao cuidado, de modo a reconhecer a diversidade de quem cuida e de quem é cuidado; e
VIII – promover a mudança cultural relacionada à divisão sexual, racial e social do trabalho de cuidado.
Capítulo III
DAS DEFINIÇÕES
Art. 5º – Para fins do disposto nesta lei, considera-se:
I – cuidado: trabalho cotidiano de produção de bens e serviços necessários à sustentação e à reprodução diária da vida humana, da força de trabalho, da sociedade e da economia, e à garantia do bem-estar de todas as pessoas;
II – organização social do cuidado: forma como o Estado, as famílias, o setor privado e a sociedade civil se inter-relacionam para prover cuidado, e a forma que os domicílios e os seus membros dele se beneficiam;
III – corresponsabilidade social pelos cuidados: compartilhamento de responsabilidades pelos atores sociais que possuem o dever ou a capacidade de prover cuidado, incluídos o Estado, as famílias, o setor privado e a sociedade civil;
IV – corresponsabilidade de gênero pelos cuidados: compartilhamento de responsabilidades pelo cuidado, de forma equitativa, entre mulheres e homens;
V – desigualdades interseccionais: intersecção de diversas dimensões de exclusão e subordinação com base em critérios de classe, gênero, raça, etnia, orientação sexual, idade, território e deficiência que operam na estruturação e na reprodução das desigualdades sociais e da experiência de vida das pessoas e dos grupos sociais;
VI – universalismo progressivo e sensível às diferenças: efetivação da garantia do direito ao cuidado, de forma gradual e progressiva, consideradas as desigualdades estruturais; e
VII – trabalhadoras e trabalhadores não remunerados do cuidado: pessoas que exerçam o trabalho de cuidado nos domicílios, sem vínculo empregatício e sem obtenção de remuneração.
Capítulo IV
DOS PRINCÍPIOS
Art. 6º – São princípios da Política Estadual de Cuidados:
I – respeito à dignidade e aos direitos humanos de quem recebe cuidado e de quem cuida;
II – universalismo progressivo e sensível às diferenças;
III – equidade e não discriminação;
IV – promoção da autonomia, da independência e da autodeterminação das pessoas;
V – corresponsabilidade social e de gênero;
VI – antirracismo;
VII – anticapacitismo;
VIII – anti-idadismo;
IX – interdependência entre as pessoas e entre quem cuida e quem é cuidado;
X – direito à convivência familiar e comunitária; e
XI – valorização e respeito à vida, à cidadania, às habilidades e aos interesses das pessoas.
Capítulo V
DAS DIRETRIZES
Art. 7º – São diretrizes da Política Estadual de Cuidados:
I – a integralidade do cuidado;
II – a transversalidade, a intersetorialidade, a interseccionalidade e a interculturalidade das políticas públicas de cuidados;
III – a garantia da participação e do controle social das políticas públicas de cuidados na formulação, na implementação e no acompanhamento de suas ações, programas e projetos;
IV – a atuação permanente, integrada e articulada das políticas públicas de saúde, assistência social, direitos humanos, educação, trabalho e renda, esporte, lazer, cultura, mobilidade, previdência social e demais políticas públicas que possibilitem o acesso ao cuidado ao longo da vida;
V – a simultaneidade na oferta dos serviços para quem cuida e para quem é cuidado, reconhecida a relação de interdependência entre ambos;
VI – a acessibilidade em todas as dimensões, em conformidade com o disposto na Lei Federal nº 13.146, de 6 de julho de 2015;
VII – a territorialização e a descentralização dos serviços públicos ofertados, considerados os interesses de quem cuida e de quem é cuidado;
VIII – a articulação interfederativa;
IX – a formação continuada e permanente nos temas de cuidados para:
a) servidoras e servidores federais, estaduais, distritais e municipais que atuem na gestão e na implementação de políticas públicas;
b) prestadores de serviços que atuem na rede de serviços públicos ou privados; e
c) trabalhadoras e trabalhadores do cuidado remunerados e não remunerados, incluídos os familiares e comunitários; e
X – o reconhecimento e a valorização do trabalho de quem cuida e do cuidado como direito, com a promoção da corresponsabilização social e de gênero, respeitada a diversidade cultural dos povos.
Parágrafo único – Para fins do disposto no inciso I do caput, a integralidade do cuidado compreende o atendimento das demandas e das necessidades de cuidado das pessoas em todas as dimensões, como receptoras e provedoras do cuidado, considerados os contextos social, econômico, familiar, territorial e cultural em que estão inseridas.
Capítulo VI
DO PÚBLICO PRIORITÁRIO
Art. 8º – A Política Estadual de Cuidados terá como público prioritário:
I – crianças e adolescentes, com atenção especial à primeira infância;
II – pessoas idosas que necessitem de assistência, apoio ou auxílio para executar as atividades básicas e instrumentais da vida diária;
III – pessoas com deficiência que necessitem de assistência, apoio ou auxílio para executar as atividades básicas e instrumentais da vida diária;
IV – trabalhadoras e trabalhadores remunerados do cuidado; e
V – trabalhadoras e trabalhadores não remunerados do cuidado.
§ 1º – As desigualdades interseccionais serão consideradas para definir o público prioritário da Política Estadual de Cuidados.
§ 2º – A ampliação do público prioritário poderá ser realizada de forma progressiva, consideradas as necessidades de apoio e de auxílio, as demandas das trabalhadoras e dos trabalhadores remunerados e não remunerados do cuidado e as novas demandas relativas ao cuidado.
Capítulo VII
DO PLANO estadual DE CUIDADOS
Art. 9º – O Poder Executivo elaborará o Plano Estadual de Cuidados, na forma prevista em regulamento, no qual serão estabelecidos ações, metas, indicadores, instrumentos, período de vigência e de revisão, órgãos e entidades responsáveis.
§ 1º – O Plano Estadual de Cuidados buscará a consecução de seus objetivos por meio de ações intersetoriais nas áreas de assistência social, saúde, educação, trabalho e renda, cultura, esportes, mobilidade, previdência social, direitos humanos, políticas para as mulheres, políticas para a igualdade racial, políticas para os povos indígenas e para as comunidades tradicionais, desenvolvimento agrário e agricultura familiar, dentre outras.
§ 2º – O Plano Estadual de Cuidados disporá, no mínimo, sobre:
I – garantia de direitos e promoção de políticas públicas para a pessoa que necessita de cuidados e para a trabalhadora e o trabalhador não remunerado do cuidado, incluídos a criação, a ampliação, a qualificação e a integração de serviços de cuidado, os benefícios, a regulamentação e a fiscalização de serviços públicos e privados;
II – estruturação de iniciativas de formação e de qualificação para a trabalhadora e o trabalhador não remunerado do cuidado;
III – fomento à adoção, pelos setores público e privado, de medidas que promovam a compatibilização entre o trabalho remunerado e as necessidades pessoais e familiares de cuidados;
IV – promoção do trabalho decente para as trabalhadoras e os trabalhadores remunerados do cuidado, incluída a garantia de direitos trabalhistas e de proteção social, o enfrentamento da precarização do trabalho e a estruturação de programas de formação e de qualificação profissional para essas trabalhadoras e esses trabalhadores;
V – estruturação de medidas para redução da sobrecarga de trabalho não remunerado que recai sobre as famílias, em especial sobre as mulheres, com a promoção da corresponsabilidade social e de gênero;
VI – políticas públicas para a transformação cultural, relativas à divisão sexual, racial e social do cuidado, para o reconhecimento e a valorização de quem cuida e do cuidado como trabalho e direito, com a promoção da corresponsabilização social e de gênero;
VII – estruturação de iniciativas de formação destinadas a servidores públicos, prestadores de serviços de cuidados e sociedade; e
VIII – aprimoramento contínuo de dados provenientes de estatísticas e de registros administrativos sobre o tema para subsidiar a gestão da Política Estadual de Cuidados e para reconhecer e mensurar o valor econômico e social do trabalho de cuidado não remunerado.
§ 3º – O Plano Estadual de Cuidados será implementado por meio da atuação intersetorial e da articulação interfederativa, e da integração entre a rede pública e privada de serviços, programas, projetos, ações, benefícios e equipamentos destinados à garantia do direito ao cuidado.
Capítulo VIII
DA ESTRUTURA DE GOVERNANÇA
Art. 10 – O Poder Executivo disporá sobre a estrutura de governança do Plano Estadual de Cuidados, suas competências, seu funcionamento e sua composição, por meio de regulamento, observada a intersetorialidade, a articulação interfederativa, a participação e o controle social.
Parágrafo único – O Plano Estadual de Cuidados deverá ser implementado de forma descentralizada e articulada entre a União e os Municípios.
Capítulo IX
DO FINANCIAMENTO
Art. 11 – A Política Estadual de Cuidados será custeada por:
I – dotações orçamentárias do Orçamento Geral do Estado consignadas aos órgãos e às entidades da administração pública estadual participantes do Plano Estadual de Cuidados, observada a disponibilidade financeira e orçamentária;
II – fontes de recursos destinadas por órgãos e entidades da administração pública estadual ou municipal, observada a disponibilidade financeira e orçamentária;
III – recursos provenientes de doações, de qualquer natureza, feitas por pessoas físicas ou jurídicas, do País ou do exterior; e
IV – outras fontes de recursos nacionais ou internacionais, compatíveis com o disposto na legislação.
Capítulo X
DISPOSIÇÕES FINAIS
Art. 12 – Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
Sala das Reuniões, 9 de setembro de 2024.
Leninha (PT), 1ª-vice-presidente.
Justificação: Pela polissemia do termo entende-se “cuidado” como o trabalho cotidiano de produção de bens e serviços necessários à reprodução e a sustentação da vida, das sociedades e da economia, bem como à garantia do bem-estar das pessoas. Inclui as tarefas cotidianas como a preparação de alimentos, manutenção da limpeza, organização e gestão dos domicílios e o apoio a atividades diárias de pessoas com diferentes graus de autonomia ou dependência. Nesse sentido, cuidado é um bem público essencial para o funcionamento da sociedade, da economia e para garantia dos direitos e da igualdade.
Adicionalmente, o cuidado é entendido como um direito universal e uma necessidade de todas as pessoas – essas necessidades são maiores em certos momentos do ciclo da vida e certas condições nas quais as pessoas têm menos autonomia e mais dependência. Nesse escopo está incluído o direito a receber cuidado, a cuidar e ao autocuidado.
A forma como esse cuidado é ofertado nas sociedades é bastante variável. Em cada sociedade e em diferentes etapas históricas, estabelece-se uma organização social dos cuidados específica, que produz, organiza e distribui os cuidados, e que tem componentes sociais, econômicos, culturais e políticos. A conformação dessa organização social dos cuidados congrega e responsabiliza um amplo conjunto de atores sociais e instituições pela sua provisão, dentre os quais as famílias – atualmente as principais responsáveis por ofertar cuidado –, as comunidades, o Estado, o mercado e as empresas.
No Brasil, historicamente e na atualidade, a organização social dos cuidados é desigual, injusta e insustentável do ponto de vista ético, econômico e social. É desigual e injusta porque, apesar de todas as pessoas necessitarem de cuidados ao longo do seu curso de vida, nem todas recebem os cuidados de acordo com suas necessidades e nem todas cuidam; principalmente, nem todas cuidam na mesma intensidade e na mesma proporção. São as famílias, e especialmente as mulheres, as que se responsabilizam desproporcionalmente pela provisão de cuidados no país. Segundo os dados da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios Contínua – Pnad-c – do IBGE, em 2022, as mulheres dedicavam, na média, 21,3 horas semanais ao trabalho doméstico e de cuidados não remunerado enquanto os homens dedicavam 11,7 horas.
As mulheres mais pobres despendem mais tempo na realização do trabalho doméstico e de cuidados não remunerado do que as mulheres com renda mais elevada e a intensidade desse trabalho é maior entre as mulheres negras e aquelas que vivem em territórios que contam com menos serviços e equipamentos de cuidado, tanto na área rural quanto na periferia das grandes cidades. É necessário também um olhar especial para as pessoas jovens, principalmente as mulheres jovens que estão fora da escola e do mercado de trabalho devido às suas responsabilidades familiares e de cuidado. A título de exemplo, no ano de 2019, período pré-pandêmico, as brasileiras que recebiam rendimentos de até 1/4 de salário-mínimo por mês, dispendiam, em média, 24,6 horas semanais em atividades de trabalho doméstico e de cuidados não remunerado, o que corresponde a mais de 10 horas semanais do que as mulheres com renda superior a 8 salários-mínimos, que despendiam, em média, 14,2 horas semanais nestes trabalhos.
A pobreza de tempo é, nesse sentido, uma realidade que se impõe no cotidiano de vida das mulheres: segundo a Pnad-c, em 2021, 30% das mulheres em idade ativa não estavam procurando emprego devido às suas responsabilidades com filhos, outros parentes ou com os afazeres domésticos. Entre os homens, esta proporção era de 2%. O mesmo gráfico evidencia que essa realidade atinge mais duramente as mulheres negras: 32% delas não podiam ingressar no mercado de trabalho devido às responsabilidades com os cuidados, enquanto para as brancas essa porcentagem era de 26,7%.
No caso das pessoas beneficiárias do cuidado, a organização injusta compromete o acesso e a qualidade do cuidado para quem dele necessita, violando direitos humanos de quem é cuidado, além de produzir barreiras e impedimentos para o exercício de uma vida digna e autônoma, especialmente para crianças e adolescentes, pessoas idosas e pessoas com deficiência que requerem apoio, assistência e auxílio de terceiros para as atividades básicas e instrumentais da vida diária.
Outro grupo demandante de cuidados são as pessoas com deficiência que precisam de apoio para realização de atividades diárias. Essa condição se entrecruza com o envelhecimento, conforme já registrado em diferentes estudos e pesquisas demográficas e sociais que demonstram a relação entre o aumento dos níveis de incapacidade e o avançar da idade, principalmente após os 80 anos. Alguns resultados recentes de pesquisa específica sobre deficiência, conduzida pelo IBGE no âmbito da Pnad Contínua, permite perceber que há um crescimento continuado das taxas de incidência de deficiência nos diferentes grupos etários. Estes dados indicam, por um lado, que há de fato um aumento da demanda de cuidado com a idade, relacionado à necessidade de apoio para as atividades da vida diária e, por outro, que este movimento será potencializado com o processo de envelhecimento populacional e a quantidade crescente de pessoas que atingirá ao longo dos anos as faixas etárias em que aumenta a prevalência de deficiências.
Vale dizer que este processo de envelhecimento tem se dado de forma bastante intensa no Brasil com projeções indicando que a população de 60 anos ou mais deverá duplicar nos próximos 20 anos (passando de 15% para cerca de 30%), enquanto a população de 80 anos ou mais deverá triplicar no mesmo período (indo de 2,3% para 7% da população). As demandas de cuidado para este grupo, portanto, serão ainda mais intensas nos próximos anos. Pesquisas recentes mostram que cerca de 10% dos idosos demandam cuidados de outros para as atividades básicas da vida diária, enquanto 20% possuem limitações para as atividades instrumentais da vida diária (gestão dos recursos financeiros, fazer compras, etc.). Outro ponto importante é a feminização deste envelhecimento, levando a um grupo de mulheres idosas que passa a demandar cuidados enquanto ainda são responsáveis por prover cuidados para suas famílias e comunidades.
Ainda pela ótica da demanda por cuidados, além da população idosa e das pessoas com deficiência, também se encontram as crianças e adolescentes, particularmente as crianças de O a 6 anos que possuem elevada demanda por cuidados. Ainda que este grupo esteja se reduzindo proporcionalmente em relação à população total diante do processo de envelhecimento anteriormente mencionado, as crianças e adolescentes seguem representando parcela importante da população brasileira: dados do Censo de 2022 mostram que, naquele ano, elas ainda correspondiam a mais de 20% do total da população do país. O Gráfico 4 demonstra que o trabalho de cuidados de filhos na primeira infância é o principal motivo para 2/3 das mulheres em idade ativa não procurarem emprego.
Já no que se refere à oferta de cuidado, a tendência é que esta se reduza no espaço das famílias, sob responsabilidade especialmente das mulheres. Do ponto de vista demográfico, o Brasil tem passado por um processo de diminuição da taxa de fecundidade. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE –, a taxa de fecundidade total no país diminuiu de 2,4 filhos por mulher em idade fértil em 2010 para 1,7 filhos por mulher em 2020. Esses números demonstram uma clara tendência de queda na fertilidade, o que resulta em uma diminuição no tamanho das famílias brasileiras e, consequentemente, na diminuição da possibilidade de que a provisão de cuidados se fie exclusivamente no cuidado familiar intergeracional. Essa redução é reflexo de diversas mudanças sociais e econômicas, incluindo o aumento do acesso à educação e à informação sobre métodos contraceptivos, o crescimento da participação da mulher no mercado de trabalho, a urbanização e a busca por uma melhor qualidade de vida. É também resultado de um contexto no qual a ausência de políticas de cuidado impõe uma série de consequências sobre as mulheres que são também levadas em conta para as decisões de ter ou não ter filhos. Esses movimentos intensificam aquilo que vem sendo chamado de crise dos cuidados e que indica que a atual organização dos cuidados é também insustentável.
É importante destacar que esse modelo de organização social dos cuidados gera uma série de impactos não só para as mulheres – sobrecarregadas com as responsabilidades de provisão de cuidados – mas também para as pessoas que necessitam de cuidado. No caso das mulheres, a sobrecarga de trabalho doméstico e de cuidados não remunerado gera uma importante pobreza de tempo e impõe fortes barreiras para a o exercício dos seus direitos em outros âmbitos da vida, como a conclusão das suas trajetórias educacionais e de formação profissional, a inserção no mercado de trabalho e na vida pública em igualdade de condições com os homens, comprometendo suas possibilidades de geração de renda e a sua autonomia econômica. Isso contribui significativamente para a reprodução da pobreza e das desigualdades sociais.
No caso das pessoas beneficiárias do cuidado, a organização injusta compromete o acesso e a qualidade do cuidado para quem dele necessita, violando direitos humanos de quem é cuidado, além de produzir barreiras e impedimentos para o exercício de uma vida digna e autônoma, especialmente para crianças e adolescentes, pessoas idosas e pessoas com deficiência que requerem apoio, assistência e auxílio de terceiros para as atividades básicas e instrumentais da vida diária.
É necessário, portanto, transformar profundamente a atual organização social dos cuidados a partir do reconhecimento da interdependência como uma condição humana que une as pessoas em sociedade. Nessas bases, é necessário estruturar as responsabilidades pessoais e institucionais a partir das necessidades de quem cuida e de quem é cuidado, promovendo a corresponsabilidade entre mulheres e homens no interior das famílias e entre as famílias, a comunidade, o Estado, o mercado e as empresas.
Apesar do trabalho de cuidado ser essencial para a sustentabilidade da vida humana, e, portanto, para o funcionamento da sociedade e da economia, no caso do Brasil, a sua histórica desvalorização e invisibilização coloca o como um tema que ainda precisa ser afirmado na agenda pública e política. Trata-se de um tema inovador, o que significa que existe, no campo governamental, um conjunto de (in)definições a serem enfrentadas, que vão desde o entendimento do próprio conceito, até os arranjos institucionais e a estrutura de governança necessária para a construção de uma política que esteja de acordo com as necessidades e demandas reais da sociedade.
O tema dos cuidados – entendido tal como foi supracitado –, no entanto, só muito recentemente vem sendo incorporado ao campo das políticas públicas no Brasil. Muitas políticas, programas e ações já desenvolvidas pelos governos nas três esferas federativas buscam prover cuidados para quem deles necessita. É o caso, por exemplo: dos serviços educacionais – como creches, pré-escolas e escolas de ensino básico; das instituições que atendem pessoas idosas ou com deficiência – como os centros-dias, os centros de convivência, as instituições de longa permanência, as habitações inclusivas e os serviços de acolhimento da assistência social. Há, ainda, benefícios monetários, como o salário-maternidade e o Programa Bolsa Família, em particular o benefício adicional concedido às crianças de 0 a 6 anos.
Estas políticas, contudo, não apenas são insuficientes para garantir o acesso universal ao cuidado, como não foram pensadas a partir de uma perspectiva integral e integrada, que busque garantir o direito das pessoas a serem cuidadas e, ao mesmo tempo, os direitos das pessoas que cuidam. Tampouco foram pensadas a partir da ideia de que é responsabilidade do Estado o papel principal de provisão dos cuidados e de organização dessa provisão. De forma diversa, ao Estado, historicamente, restou apenas um papel subsidiário neste campo.
Esse cenário transcende as fronteiras do Brasil e é também a realidade de muitos países. Por isso, na América Latina, alguns Estados já vêm desenhando e implementando Políticas e Sistemas Integrais de Cuidado. As políticas de cuidado são um componente fundamental e transversal do sistema de proteção social, envolvendo e articulando serviços e benefícios ofertados por diferentes áreas, como a assistência social, a saúde, a educação, as políticas de emprego e de promoção do trabalho decente, bem como outros serviços e prestações a serem criadas e implementadas. Por sua vez, a garantia do direito ao cuidado envolve um marco regulatório composto por vários instrumentos que incluem, entre outras dimensões, a legislação trabalhista e previdenciária.
Existem no Brasil e em Minas Gerais atualmente diversas normativas, prestações, equipamentos e serviços de provisão de cuidados para grupos específicos da população, mas que são ainda insuficientes para cobrir o conjunto das necessidades mais urgentes de cuidado e para avançar no rumo de uma cobertura universal e de qualidade. É necessário, portanto, que o Brasil acompanhe os países vizinhos e o Estado de Minas Gerais faça a sua parte enquanto ente federado e avance no sentido da construção de uma política integral de cuidados capaz de responder a esse conjunto de necessidades, as quais se tornaram mais visíveis e prementes no contexto da pandemia de covid-19, considerando em todas as etapas desse processo, as desigualdades de classe, de gênero, raciais, étnicas, de idade e territoriais.
O Projeto de Lei apresentado prevê, ainda, que para cumprir com seu papel na garantia do direito ao cuidado, o Poder Executivo deverá elaborar periodicamente Plano Estadual de Cuidados, que perseguirá os objetivos da Política instituída neste normativo por meio de ações intersetoriais e interfederativas. Nesse sentido, o Plano Estadual de Cuidados deverá ser implementado de forma descentralizada e articulada, com papel fundamental de todos os entes federados, que poderão aderir ao Plano Estadual. Ademais, o Estado e os Municípios poderão celebrar convênios ou instrumentos congêneres com entidades públicas e privadas, sem fins lucrativos, para o desenvolvimento e a execução de projetos que constem do Plano Estadual de Cuidados.
É preciso que o governo tenha uma estratégia planejada que garanta direitos e promova políticas para quem necessita de cuidados e para quem cuida; fomente ações tanto no setor público como no privado que promovam a compatibilização entre o trabalho remunerado e as necessidades pessoais e familiares de cuidados; e tenha objetivos, ações, metas e indicadores que possibilitem a transformação cultural necessária para termos uma sociedade brasileira mais justa e igualitária.
Além de atender a uma necessidade pública, instituir uma política de cuidados é investir em mais dinamização da economia, com potencial de gerar uma grande quantidade de empregos e, dessa forma, aumentar a renda das famílias e a arrecadação de impostos – o que contribui para a redução da pobreza e a amortização do investimento realizado.
Por um lado, as responsabilidades de cuidado não podem continuar sendo atribuídas de forma tão desproporcional às mulheres. Por outro, as pessoas que demandam cuidados precisam de um esforço intencional do poder público de atenção integral e integrada.
Diante deste cenário, proponho a instituição de uma Política Estadual de Cuidados e conto com o apoio dos(as) nobres pares para a aprovação deste nosso projeto de lei.
– Semelhante proposição foi apresentada anteriormente pela deputada Lud Falcão. Anexe-se ao Projeto de Lei nº 715/2023, nos termos do § 2º do art. 173 do Regimento Interno.