PL PROJETO DE LEI 1857/2023
Projeto de Lei nº 1.857/2023
Reconhece como de relevante interesse cultural do Estado a cultura tradicional dos carroceiros.
A Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais decreta:
Art. 1º – Fica reconhecido como de relevante interesse cultural do Estado a Cultura Tradicional dos Carroceiros.
Art. 2º – A Cultura de que trata esta lei poderá, a critério dos órgãos responsáveis pela política de patrimônio cultural do Estado, ser objeto de proteção específica, por meio de inventários, registro ou de outros procedimentos administrativos pertinentes, conforme a legislação aplicável.
Art. 3º – Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
Sala das Reuniões, 5 de dezembro de 2023.
Macaé Evaristo, líder da Bancada Feminina, vice-presidenta da Comissão de Ética e Decoro Parlamentar e Vice-Presidenta da Comissão de Educação, Ciência e Tecnologia (PT) – Andréia de Jesus, presidenta da Comissão de Direitos Humanos (PT) – Bella Gonçalves, vice-presidenta da Comissão de Direitos Humanos (Psol) – Leleco Pimentel, vice-líder do Bloco Democracia e Luta e vice-presidente da Comissão de Assuntos Municipais e Regionalização (PT) – Leninha, 1ª-vice-presidente (PT).
Justificação: O uso de equipamentos e transporte de tração animal é feito pelo ser humano desde o período pré-histórico, sendo que esta tecnologia foi fundamental para o processo da neoelitização, ou seja, fase caracterizada palas inovações nos trabalhos agrícolas, controle das bases de subsistência, intensificação das práticas da horticultura e do pastoreio, estocagem de alimentos, aumento populacional, expansão territorial, surgimento dos primeiros povoados, maior circulação e contato entre diversos povos no chamado "velho mundo", sendo que a domesticação de bois e cavalos teria ocorrido cerca de 5.600 anos atrás. Segundo o arqueólogo marxista Gordon Childe, renomado especialista em Neolítico, foi a roda o pilar das realizações da carpintaria na pré-história, tendo sido posteriormente aplicada na construção da carroça ou de carros de quatro rodas, puxada por cavalos ou por bois, cujos principais registros primitivos figuram em esculturas sumérias, além de modelos encontrados em antigos túmulos. Já em 1000 a.C., na Europa Ocidental, a civilização Celta utilizou um metal para cobrir as rodas das carroças e carruagens para que se tornassem mais duráveis e resistentes ampliando o seu uso e a durabilidade das peças (PATTERSON & ORSER, 2004). Interessante constatar que antes do fim do quarto milênio a.C., a atrelagem do boi, do cavalo e do burro dotaram as sociedades do Próximo Oriente com a força motriz e o equipamento para o transporte terrestre por uma longa duração, possibilitando o fluxo de cargas em terrenos diversos, que não foram substituídos até o século XIX d.C. Certamente, havia uma grande variedade de carroças, das mais rústicas às mais estilizadas, que foram produzidas ao longo da história (MOZOYEN & ROUDART, 1993). De um modo geral, pode-se propor que o boi era o animal mais comumente usado nos transportes rurais, levando as colheitas para depósitos e celeiros nas antigas glebas nos denominados “carros de boi” ou “carretas”, mais lentos, maciços e seguros, carreando fardos pesados, lenhas, sementes e adubos para as leiras; já os transportes de mercadorias e produtos entre as áreas rurais, vilas e cidades eram feitos por carroças mais ligeiras e ágeis, com cavalos e mulas. Cavalos eram usados ainda em carros ou carruagens de guerra, bem como para locomover viajantes e suas bagagens, e em jornadas que envolviam grandes distâncias usavam-se as lendárias caravanas. Na China antiga, as mais remotas tradições indicam altos valores da agricultura e dos animais envolvidos na lida, sendo que os ofícios dos homens implicados nesse tipo de faina eram considerados os mais honrosos e de grande reverência (SOUZA, 2003).
As primeiras notícias de criação e comercialização de gado bovino, do cavalo e dos burros e mulas teria ocorrido na América do Sul em terras de colonização espanhola, na margem direita do estuário do Prata (TRINDADE, 1992). Os primeiros colonizadores lusitanos trouxeram bois e cavalos em sucessivas levas nos primeiros decênios do século XVI para o Brasil, incluindo carros, carroças e sua milenar tecnologia construtiva, os utilizando no transporte de materiais e de produtos da terra, inicialmente, o pau-brasil, madeiras, cana-de-açúcar, rebanhos, mercadorias e pessoas, sendo o principal meio de deslocamento, além de barcos e canoas, utilizadas nos rios e lagos a penetrarem em suas terras (SOUZA, 2003). Os primeiros transportes de carga e de víveres, por exemplo, foram feitos por indígenas e africanos escravizados, tendo sido substituídos parcialmente por carros de tração animal. Possivelmente, as mais antigas levas de bois, cavalos e burros e mulas teriam sido encaminhadas para São Vicente, em São Paulo; a segunda, para Pernambuco e a terceira, para a Bahia, espalhando depois para outras localidades. Caminhos foram sendo abertos e feitos com a mão de obra de escravos indígenas e africanos, cujos pisos teriam sido cravados por rochas, proporcionando um calçamento pétreo, que visava facilitar o trânsito e a passagem das tropas e de seus carros e carroças.
O fluxo para as terras interioranas, conhecida posteriormente como Minas Gerais, se arraigou em demasia com a descoberta das primeiras minas de ouro e de diamante, atiçando o translado de mercadores, tropeiros, arrieiros, carroceiros, cangalheiros, comboieiros e vaqueiros, todos povos tradicionais. Estes foram adentrando as minas, almejando o transporte e a comercialização de produtos entre as fazendas, portos, armazéns, vendas e mercados dos primeiros núcleos urbanos da capitania mineira; mesmo assim, não foram raros os relatos de escassez de alimentos e períodos de fome (ANTONIL, 1923).
Muitos artífices paulistas, tais como ferreiros, alfaiates, sapateiros, padeiros, marceneiros, oleiros, cantoneiros e seleiros, preferiram mudar-se para as minas, para ficarem mais próximos dos clientes mineradores e da crescente população dos núcleos urbanos, como Vila Rica (Ouro Preto), Vila do Carmo (Mariana), Sabará, Diamantina, entre outros. As vilas paulistas investindo na promissora terra mineira, objetivando, sobretudo, extrair ou espoliar as suas riquezas minerais, enviavam boiadas e carregamentos de toucinho, aguardente, açúcar, panos, calçados, drogas, remédios, trigo, algodão, enxadas, almocafres e artigos importados como sal, armas, vinagre, vinho, aguardentes etc. Vilas e cidades contaram com o apoio permanente de carroças e carroceiros que transportavam material de consumo e de construção, entre eles, tijolos, telhas, pedras para a edificação de casarões, igrejas, arruamentos, muros e pontes nas mesmas.
Sobretudo a partir dos séculos XVIII e XIX, um dos grandes feitos das carroças e dos carroceiros em área urbana era ainda o transporte de água potável (aguadeiros) e a coleta de lixo e de resíduos nas cidades. Alguns centros europeus começaram a promover, a partir de 1740, a limpeza urbana e o asseio de maneira contumaz com este tipo de veículo por meio de reformas e tratamento dos principais logradouros das cidades, além da publicação de uma série de leis de saúde pública e exterminação dos ‘esterquilínios’ – monte de sujeiras orgânicas e lixo em geral. Muitas destas posturas influenciaram a posteriori as condutas no Brasil, baseando-se ainda nas Ordenações Filipinas[13]. Bom lembrar, que mesmo com estas inovações em muito incentivadas no âmbito do Iluminismo e da Revolução Industrial e dos avanços científicos na anatomia, medicina e na química, a prática e a logística do tratamento da canalização e da limpeza urbana ainda se apresentavam muito precárias e com poucos resultados práticos no Brasil (EIGENHER, 2009).
As atividades de carroceiros eram tão grandes no século XIX que algumas cidades estabeleciam algumas regras de trânsito e de conduta, como por exemplo, em São Bento, no estado de Santa Catarina, quando foi formada a Sociedade dos Carroceiros de São Bento do Sul. Abaixo, citam-se algumas das normas estabelecidas em 1889:
“(…) Artigo 7 – Aquele que propositadamente assustar animais de carros, montaria ou tropa sofrerá multa de 20$000, sendo, além da multa, obrigado a pagar o dano causado às pessoas ou coisas. (…) Artigo 24 – Nas noites em que não houver luar, todos os carros de carga que transitarem nas estradas e ruas serão obrigados a terem uma lanterna de vidro branco em lugar bem visível. (…)” (ZIPPERER JÚNIOR, 1948: 37).
Como pode ser constatado, existe uma associação antiga entre a produção, a circulação e os usos múltiplos de carros e de carroças puxadas por tração animal, seja por bois, cavalos e muares, nesse tradicional ofício, seja em área rural ou urbana. Contemporaneamente, o ofício de carroceiro/charreteiro (transporte de materiais e de pessoas, respectivamente) é recorrente em diversas cidades do mundo, situando os cavalos em posição etnozoológica ainda pouco estudada, embora esse tipo de vínculo de trabalho se apresente em cidades tão diferentes entre si como Viena, na Áustria; Roma, na Itália; Praga, na República Tcheca (ALVES, 2018), Buenos Aires, na Argentina (CARMAN, 2017), e Natal (CARVALHO & DO VALLE, 2017) ou Belo Horizonte (LOPES, 2013; OLIVEIRA, 2017), no Brasil.
Apesar de sua importância histórica, a reprodução sociocultural do ofício de carroceiro acontece sob uma clara política de exclusão e de preconceito, embora se reconheçam como grupos tradicionais e, como tais, tenham direito ao reconhecimento pelo Estado. Todavia, as carroças constituem um dos meios de transporte mais baratos nas cidades, realizando desde o carreto de móveis, transporte de entulhos e outros tipos de cargas, assegurando a subsistência de milhares de trabalhadores do setor informal e de seus familiares. Por isso, faz-se fundamental que se promova a dignidade e a melhoria das condições de vida dos carroceiros e dos animais de tração de seus veículos. Urge a implantação de núcleos que forneçam assistência veterinária, envolvendo orientação aos carroceiros no tratamento diário dos animais, vacinação e tratamento preventivo e curativo de seus ferimentos e doenças.
Vale ressaltar que o modo de vida dos carroceiros e carroceiras faz parte do patrimônio biocultural das cidades. O ofício dos carroceiros implica um profundo conhecimento ecológico e etológico dos cavalos. A etnoecologia carroceira inclui, entre outros, saberes relacionados às madeiras mais adequadas para fabricação das carroças, uso de plantas medicinais, benzeções e outras formas de cuidado da saúde dos animais, bem como o manejo e a coleta de diversas espécies de gramíneas de crescimento espontâneo nas cidades que compõem parte da dieta oferecida aos cavalos. O modo de vida tradicional de carroceiros e cavalos também envolve formas específicas de sociabilidade, tais como as catiras e as cavalgadas, baseadas na reciprocidade, parentesco e afeto.
A Constituição Federal (1988) em seus artigos 215 e 216, determina que o Estado proteja as manifestações culturais populares, indígenas e afro-brasileiras, e as de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. A Convenção da Diversidade Biológica (1992) em seu art. 10, prevê: a utilização sustentável de componentes da diversidade biológica (…) c) Proteger e encorajar a utilização costumeira de recursos biológicos de acordo com práticas culturais tradicionais compatíveis com as exigências de conservação ou utilização sustentável. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (2004) determina que os governos devem proteger os povos e comunidades que possuem culturas e modos de vida diferenciados. Isso implica proteger seus territórios, suas organizações, suas culturas, suas economias, seus bens (materiais e imateriais) e o meio ambiente em que vivem. Além disso, essas ações devem ser realizadas com a participação desses povos e comunidades, de acordo com os seus desejos e interesses. A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais – PNCT – (2007) instituída pelo Decreto nº 6.040/2007, a PNPCT tem como principal objetivo promover o desenvolvimento sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, com ênfase no reconhecimento, fortalecimento e garantia dos seus direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais, com respeito e valorização à sua identidade, suas formas de organização e suas instituições.
Além dos referenciais supracitados, a Política Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais (2014) Instituída pela Lei 21147, de 14/01/2014, tem por objetivo promover o desenvolvimento integral dos povos e comunidades tradicionais, com ênfase no reconhecimento, no fortalecimento e na garantia de seus direitos territoriais, sociais, ambientais e econômicos, respeitando-se e valorizando-se sua identidade cultural, bem como suas formas de organização, relações de trabalho e instituições. Por tanto, a importância do projeto para o arcabouço jurídico mineiro.
– Publicado, vai o projeto às Comissões de Justiça e de Cultura para parecer, nos termos do art. 188, c/c o art. 102, do Regimento Interno.