PL PROJETO DE LEI 3668/2022
Projeto de Lei nº 3.668/2022
Dispõe sobre a garantia dos direitos humanos e a adoção de medidas preventivas em situações de conflitos fundiários coletivos, urbanos e rurais.
A Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais decreta:
Art. 1º – Esta lei tem por destinatários os agentes e as instituições do Estado, inclusive do sistema de justiça, cujas finalidades institucionais demandem sua intervenção, nos casos de conflitos coletivos pelo uso, posse ou propriedade de imóvel, urbano ou rural, envolvendo grupos que demandam proteção especial do Estado, tais como trabalhadores e trabalhadoras rurais sem-terra e sem teto, povos indígenas, comunidades quilombolas, povos e comunidades tradicionais, pessoas em situação de rua e atingidos e deslocados por empreendimentos, obras de infraestrutura ou congêneres.
§ 1º – Os despejos e deslocamentos forçados de grupos que demandam proteção especial do Estado implicam violações de direitos humanos e devem ser evitados, buscando-se sempre soluções alternativas.
§ 2º – Os despejos e deslocamentos forçados de grupos que demandam proteção especial do Estado só podem eventualmente ocorrer mediante decisão judicial, nos termos desta lei, e jamais por decisão meramente administrativa.
§ 3º – Os direitos humanos das coletividades devem preponderar em relação ao direito individual de propriedade.
§ 4º – Quando se tratar de imóvel público, a efetivação da função social deverá ser respeitada, assegurando-se a regularização fundiária dos ocupantes.
Art. 2º – É responsabilidade do Estado garantir e promover os direitos humanos à cidade, à terra, à moradia e ao território, devendo prevenir e remediar violações de direitos humanos.
Parágrafo único – O poder público não deve empregar medidas coercitivas que impliquem violação à dignidade humana, em especial o corte de luz, água ou qualquer outro serviço essencial, que resulte na inacessibilidade, na inabitabilidade ou na insalubridade da área ocupada.
Art. 3º – A atuação do Estado deve ser orientada à solução pacífica e definitiva dos conflitos, primando pela garantia de permanência dos grupos em situação de vulnerabilidade nas áreas em que vivem, que ocupam e que reivindicam, em condições de segurança e vida digna.
Art. 4º – A efetivação da função social da terra, da cidade e da propriedade alcança tanto a propriedade privada quanto a pública, urbana e rural, impondo-se ao Estado formular e executar políticas que visem ao acesso, à permanência, à justa distribuição e utilização dos imóveis para a moradia e para atividades rurais e que respeitem e facilitem o reconhecimento dos territórios para reprodução dos modos de vida dos povos indígenas, das comunidades quilombolas e dos povos e comunidades tradicionais.
Art. 5º – A presença e a permanência das populações e sujeitos coletivos na perspectiva de luta por direitos não podem ser objeto de nenhum tipo de repressão ou perseguição administrativa, civil ou criminal.
Capítulo I
medidas de prevenção
Art. 6º – No tratamento e prevenção de conflitos fundiários coletivos, deve-se:
I – reconhecer a desigualdade das partes envolvidas nos litígios;
II – destinar prioritariamente terras públicas devolutas à finalidade da reforma agrária, titulação de territórios tradicionais e regularização fundiária de interesse social, urbana e rural;
III – aplicar o princípio constitucional da razoável duração aos processos de demarcação de terras indígenas, de titulação de quilombos, de desapropriação para fins de reforma agrária, de reconhecimento de direitos de povos e comunidades tradicionais e de regularização fundiária de interesse social;
IV – garantir o respeito aos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, assegurando assistência jurídica integral gratuita aos grupos em situação de vulnerabilidade;
V – realizar e publicar levantamento estatístico de demandas judiciais relacionadas a conflitos coletivos, catalogando as experiências de autocomposição conduzidas pelo Judiciário;
VI – disponibilizar gratuitamente os registros públicos imobiliários às partes envolvidas, aos órgãos e às instituições públicas com atuação relacionada à questão fundiária;
VII – elaborar cadastro unificado, com acesso universal, das propriedades públicas federais, estaduais e municipais, da administração direta e indireta, com indicação expressa da finalidade, do uso atual efetivo e da indicação dos imóveis rurais e urbanos não afetados;
VIII – primar pela agilidade do acesso à terra, à moradia, e à regularização fundiária:
a) em terras públicas, por intermédio de processos administrativos céleres e adequados, destinados ao atendimento de grupos que demandem proteção especial do Estado;
b) em propriedades particulares, devendo o Estado tomar as medidas para transferência de domínio, locação social ou outras medidas pertinentes.
Capítulo II
do conflito coletivo judicializado
Art. 7º – Quando se tratar de conflito fundiário coletivo, em observância dos princípios da cooperação, da boa-fé, da busca da autocomposição e do atendimento aos fins sociais, bem como do resguardo da dignidade da pessoa, da proporcionalidade, da razoabilidade, da legalidade, da publicidade e da eficiência, previstos na Constituição Federal de 1988 e no Código de Processo Civil, o juiz deverá, antes da apreciação de liminar, adotar as seguintes medidas:
I – citar pessoalmente todos os afetados, não se admitindo citação ficta, nem mesmo sob justificativa de insegurança ou de não localização das pessoas afetadas;
II – intimar a Defensoria Pública para o adequado exercício de sua intervenção obrigatória, independentemente da constituição de advogado pelas partes, para exercício de sua missão constitucional de promoção e defesa dos direitos humanos, na relação jurídico-processual;
III – zelar pela obrigatória intervenção do Ministério Público nos litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana, sempre que não for parte, o qual deverá atuar para garantir o respeito aos direitos humanos dos grupos que demandam especial proteção do Estado afetados pelo conflito;
IV – designar audiência para que a parte autora justifique previamente o alegado, como medida de boa prática processual e realização do princípio da cooperação e da autocomposição, ainda que os fatos objeto do litígio datem de período inferior a ano e dia;
V – verificar se a parte autora da ação possessória demonstrou a função social da posse do imóvel, se comprovou o exercício da posse efetiva sobre o bem e, cumulativamente, em caso de posse decorrente de propriedade, se apresentou título válido;
VI – considerar a dominialidade do imóvel, tanto em ações possessórias quanto em petitórias, como mecanismo necessário à garantia da correta utilização do patrimônio público fundiário e ao combate à grilagem e à especulação imobiliária, devendo para tanto exigir a certidão de inteiro teor da cadeia dominial do imóvel desde a origem, aferindo o seu regular destacamento do patrimônio público e a regularidade jurídica e tributária dos imóveis;
VII – avaliar o impacto social, econômico e ambiental das decisões judiciais, tendo em conta a proteção de grupos em situação de vulnerabilidade, inclusive considerando o número de pessoas, grupos e famílias, com suas especificidades;
VIII – realizar inspeção judicial, tendo como premissa que tal medida em conflitos coletivos fundiários é procedimento indispensável à eficiente prestação jurisdicional, nos termos do art. 126, parágrafo único, da Constituição Federal, com a devida intimação prévia e pessoal das pessoas afetadas;
IX – designar audiência de mediação, de acordo com o art. 565 do Código de Processo Civil, expedindo intimações para comparecimento do Ministério Público, da Defensoria Pública e dos órgãos responsáveis pela política agrária e pela política urbana da União, do Estado ou do Distrito Federal e do município, onde se situe a área objeto do litígio, devendo esses aportar propostas e informações relevantes para a solução do conflito, observado o que dispõem os arts. 378 e 380 do Código de Processo Civil.
Parágrafo único – Concedida a liminar, se esta não for executada no prazo de um ano a contar da data de distribuição, caberá ao juiz designar audiência de mediação, nos termos do art. 565, § 1º, do Código de Processo Civil e adotar as medidas acima previstas.
Capítulo III
soluções garantidoras de direitos humanos
Art. 8º – As negociações desenvolvidas perante instâncias do poder público que atuem ou venham a atuar no tratamento de conflitos coletivos fundiários urbanos e rurais, seja na esfera extrajudicial, seja no bojo de processo judicial, seja em paralelo ao processo judicial, devem se orientar pela busca de soluções garantidoras de direitos humanos, haja vista a assimetria entre as partes envolvidas, devendo-se observar os ditames a seguir:
I – os ocupantes, seus apoiadores e sua assessoria técnica serão escutados e terão assegurada sua participação na criação das instâncias e procedimentos a serem adotados para soluções garantidoras de direitos humanos;
II – participação dos órgãos responsáveis pela política fundiária, bem como dos órgãos do sistema de justiça, favorecendo a adoção de soluções consensuais;
III – tratando-se de demanda promovida por particular, devem os agentes e instituições do Estado, inclusive do sistema de justiça, a quem esta lei se direciona, ingressar na demanda, requerendo sua suspensão, para promover soluções garantidoras de direitos humanos;
IV – a natureza possessória da demanda não deverá ser óbice para tentativa de autocomposição, nem mesmo pelo órgão público que detém a dominialidade do imóvel, tendo em vista sua responsabilidade de gestão e proteção ao patrimônio público fundiário;
V – priorização do modo de vida, cultura, usos e costumes dos envolvidos, bem como suas crenças e tradições, respeitada a organização social de cada comunidade afetada, havendo, ainda, a necessidade de consulta prévia, livre, informada e de boa-fé;
VI – a prova oral eventualmente feita por grupos em audiência deve ter um especial valor probatório, sobretudo pelo reconhecimento de que o saber produzido em muitas das coletividades é transmitido entre gerações por via oral;
VII – os procedimentos devem buscar aplicação de instrumentos de acesso à terra e ao território estabelecidos nas legislações pertinentes, maximizando a implementação do direito à permanência;
VIII – os acordos adotados não poderão gerar a flexibilização de garantias e de princípios constitucionalmente previstos, que são passíveis de reconhecimento pela via judicial;
IX – no curso da negociação não serão expedidos atos judiciais em desfavor dos ocupantes, dada a irreversibilidade do ato e o esvaziamento da possibilidade de negociação;
X – os acordos firmados no âmbito da instância de negociação deverão ser respeitados e implementados pelos juízes da causa, independentemente de terem sido por eles conduzidos;
XI – no caso do poder público, o esgotamento da instância fica condicionado à manifestação bilateral dos participantes;
XII – a negociação deve ser priorizada a qualquer tempo, existindo ou não ação judicial, em qualquer fase processual;
XIII – nos acordos deve ser garantido o direito à territorialidade tradicional, que envolve não apenas a área ocupada fisicamente pela coletividade, mas sim toda a área necessária para sua reprodução econômica, social e cultural.
Art. 9º – Enquanto não houver solução garantidora de direitos humanos, deve-se permitir a permanência das populações nos locais em que tiverem se estabelecido, adotando-se providências para a regularização de sua situação jurídica no local, ainda que temporariamente, e garantindo-se a essas populações o acesso a todos os serviços essenciais.
Parágrafo único – A negativa de acesso a serviços públicos essenciais, pela falta de apresentação de comprovante de residência, viola direitos humanos.
Art. 10 – O Estado tem dever de priorizar as alternativas que permitam a permanência regular dos grupos que demandam proteção especial nas áreas por eles ocupadas, admitindo-se a realocação desde que mediante negociações coletivas com as comunidades, resguardados os seus interesses.
Parágrafo único – Em casos de riscos à saúde ou à segurança dessas comunidades, que deverão ser comprovados por perícia técnica especializada, todas as informações devem ser disponibilizadas aos afetados, para livre decisão da comunidade sobre a permanência, assegurados a assistência técnica e jurídica gratuita e o exercício do direito à defesa.
Art. 11 – Cabe ao poder público o atendimento de exigências administrativas e jurídicas relativas à aprovação de projetos de regularização e de registros públicos, em colaboração com as pessoas afetadas, ficando vedada a retirada forçada como meio de saná-las.
Art. 12 – A prévia destinação da área para outro fim público ou privado não é impeditivo para a manutenção da população no local.
Art. 13 – A retirada forçada de populações e a posterior destinação da área para outros fins públicos ou privados consolida a violação de direitos humanos ocorrida e dá ensejo à reparação de todos os afetados pela privação sofrida, bem como é fundamento para obrigação do Estado de realocação em condições adequadas.
Capítulo IV
da excepcionalidade do despejo
Art. 14 – Remoções e despejos devem ocorrer apenas em circunstâncias excepcionais, quando o deslocamento é a única medida capaz de garantir os direitos humanos.
§ 1º – Os deslocamentos não deverão resultar em pessoas ou populações sem teto, sem-terra e sem território.
§ 2º – Não deverão ser realizadas remoções que afetem as atividades escolares de crianças e adolescentes, o acesso à educação e a assistência à pessoa atingida, que faz acompanhamento médico, para evitar a suspensão do tratamento.
§ 3º – Não deverão ser realizadas remoções antes da retirada das colheitas, devendo-se assegurar tempo razoável para o levantamento das benfeitorias.
Art. 15 – O juiz, ao requerer a intervenção de força policial para cumprimento de decisão, deve determinar, além dos requisitos já enumerados nesta lei:
I – a manifestação do órgão policial competente sobre as condições para o cumprimento do mandado e a previsão expressa dos riscos subjacentes, a qual deve ser considerada para elaboração dos planos de remoção e reassentamento;
II – a juntada ao processo dos protocolos de atuação, da cadeia de comando da operação e da identificação dos agentes, devendo estes serem apresentados aos ocupantes e publicizados.
Parágrafo único – A atividade policial será exercida em estrito acordo com o plano de remoção e com as normas internacionais de direitos humanos, sob pena de ensejar responsabilização estatal dos agentes públicos.
Art. 16 – Mesmo nos casos de excepcionalidade mencionados nesta lei, é vedada a realização de despejos em caso de mau tempo, durante a noite, nos finais de semana, em dias festivos ou em dias litúrgicos próprios da cultura e da religiosidade da comunidade afetada.
Art. 17 – O uso de violência física, psicológica e simbólica, de constrangimento ilegal e de ameaça e qualquer apropriação dos pertences pessoais durante as remoções é ilegal e passível de responsabilização cível, criminal e administrativa, devendo ser observados o direito à intimidade, à privacidade e à não discriminação e a dignidade humana.
Art. 18 – Quando for inevitável a remoção, é obrigatório:
I – garantir o reassentamento das pessoas afetadas em local que assegure que não haja impacto negativo em suas ligações sociais e econômicas e seu acesso a outros direitos humanos;
II – o local de reassentamento, em se tratando de povos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais, ficará condicionado ao consentimento obtido por meio de consulta livre, prévia, informada e de boa-fé, nos termos da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, devendo a área ser próxima ao território e guardar as mesmas características dele, de forma a permitir a reprodução dos modos de vida tradicionais, assegurados a consulta prévia também na escolha do novo território e o direito de retorno tão logo cessem as condições que forçaram a referida remoção;
III – o local de reassentamento ofertado pelo poder público deve estar em condições de ser habitado, com casas construídas, serviço de fornecimento de água, saneamento, eletricidade, escolas, vias públicas de acesso, alocação de terras e moradias, antes da remoção da comunidade, respeitando-se os elementos que compõem a moradia adequada;
IV – a saída e o transporte das pessoas e de seus pertences será de responsabilidade e gestão do poder público;
V – nos casos excepcionais, em que o deslocamento decorrer de motivos comprovados de risco grave e imediato à saúde e segurança dos ocupantes, deve-se garantir o abrigamento imediato, temporário, em condições dignas, até que se oferte solução garantidora de direitos humanos em caráter definitivo e em condições dignas e adequadas;
VI – quando o reassentamento não for imediato, a autoridade pública deverá responsabilizar-se pela guarda temporária e pela devolução dos pertences dos atingidos, até que a realocação se efetive, sendo vedada a sua destruição.
Art. 19 – Esta lei entra em vigor na data da sua publicação.
Sala das Reuniões, 26 de abril de 2022.
Doutor Jean Freire, 2º-vice-presidente (PT).
Justificação: Os conflitos fundiários decorrentes do acesso à terra são inerentes à história da ocupação do território do Brasil.
O Conselho Nacional de Direitos Humanos publicou a Resolução nº 10, em 17 de outubro de 2018, que dispõe sobre soluções garantidoras de direitos humanos e medidas preventivas em situações de conflitos fundiários coletivos, rurais e urbanos. Trata-se de uma iniciativa para prevenir e reduzir conflitos e mortes em áreas urbanas e rurais do País.
As legislações, em todas as esferas, desde a internacional até as locais, preconizam a não violação de direitos fundamentais, inclusive em situações extremas, como nos casos de reintegração de posse. As políticas públicas e os normativos legais tratam os conflitos urbanos pelo viés dos direitos humanos, campo em que prevalecem os conceitos de direito à moradia e direito à cidade.
Assim, temos um longo caminho a percorrer para o reconhecimento de fato desses direitos, na medida em que, em pleno século XXI, ainda existe a cultura de prevalência da propriedade privada e de valores individuais sobre os valores coletivos. Em outras palavras, ainda não foram absorvidos, na sociedade brasileira, os conceitos da função social da propriedade e da cidade.
Peço, portanto, o apoio dos nobres pares para a aprovação desta proposta.
– Semelhante proposição foi apresentada anteriormente pelo deputado Rogério Correia. Anexe-se ao Projeto de Lei nº 3.562/2016, nos termos do § 2º do art. 173 do Regimento Interno.