PL PROJETO DE LEI 2524/2021
Projeto de Lei nº 2.524/2021
Dispõe sobre a gratuidade na alteração do registro civil nos casos que especifica e dá outras providências.
A Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais decreta:
Art. 1º – A averbação da alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil de transgênero (travestis, mulheres e homens transexuais, intersexo, não-binários e a gêneros), a ser realizada perante os oficiais de Registro Civil das Pessoas Naturais no âmbito do Estado de Minas Gerais, será gratuita sempre que o requerente não tiver condições para arcar com as custas e emolumentos do procedimento.
§ 1º – A hipossuficiência a que se refere o caput pode ser constatada pela Defensoria Pública do Estado ou pelos Centros de Referência em Assistência Social (CRAS), em declaração a ser apresentada pelo requerente ao Oficial de Registro Civil competente.
§ 2º – Caso não exista unidade da Defensoria Pública ou dos Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) no município de domicílio do requerente, a declaração de hipossuficiência pode ser conferida por órgão ligado ao Sistema Único de Assistência Social (Suas).
Art. 2º – As gratuidades decorrentes de decisões judiciais e as solicitações previstas no art. 1º desta lei serão compensadas, em favor do competente Registro Civil das Pessoas Naturais, em conformidade com os mecanismos compensatórios estabelecidos pela Lei Estadual nº 15.424/2004.
Art. 3º – Os cartórios e a Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais – CGJ estabelecerão os critérios para a fixação e unificação dos valores dos emolumentos e custas cartoriais para o processo de averbação da alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil.
Art. 4º – Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
Sala das Reuniões, 8 de março de 2021.
Cristiano Silveira, vice-líder do Bloco Democracia e Luta (PT).
Justificação: O projeto de lei ora proposto é fruto de uma construção coletiva, em coautoria com os(as) seguintes colaboradores(as): a advogada Suelen Roberta Oliveira Silva Cassab; os(as) Defensores(as) Públicos Bernardo Gomes de Freitas, Paulo Cesar Azevedo de Almeida, Rachel Tolomelli Campos, Vladimir de Souza Rodrigues e Wilson Hallack Rocha; dos coletivos Resistência Trans e Mães pela Liberdade; importante ressaltar, ainda, a colaboração de Pedro Lucas de Castro Leal, Christiane de Castro Leal, Jonas Stenner Quatorzevoltas, Moíza Fernandes Almeida, Amy Braga Fontenelle Brennea e Bruna Leonardo Mesquita da Silva.
Inicialmente, é preciso destacar os fundamentos jurídicos e legais deste projeto, sendo respaldado na Constituição Federal, decisões do Supremo Tribunal Federal e outras legislações pertinentes. Trata-se de proposta de alteração nos emolumentos cartoriais, que possuem natureza jurídica de taxa e constituem tributos estaduais, como já amplamente reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal nos precedentes: ADI 1.709/MT, rel. min. Maurício Corrêa, Pleno, DJ 31.3.2000; ADI-MC 1.772/MG, rel. min. Carlos Velloso, Pleno, DJ 8.9.2000; ADI 1.624/MG, rel. min. Carlos Velloso, Pleno, DJe 13.6.2003, e ADI-MC 1.926, rel. min. Sepúlveda Pertence. Ainda, conforme decisão do Min. Carlos Velloso:
“CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. CUSTAS E EMOLUMENTOS. LEI ESTADUAL QUE CONCEDE ISENÇÃO: CONSTITUCIONALIDADE. Lei 12.461, de 7.4.97, do Estado de Minas Gerais. I – Custas e emolumentos são espécies tributárias, classificando-se como taxas. Precedentes do STF. II – À União, ao Estado-membro e ao Distrito Federal é conferida competência para legislar concorrentemente sobre custas dos serviços forenses, restringindo-se a competência da União, no âmbito dessa legislação concorrente, ao estabelecimento de normas gerais, certo que, inexistindo tais normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades (CF., art. 24, IV, §§ 1º e 3º). III – Constitucionalidade da Lei 12.461/97, do Estado de Minas Gerais, que isenta entidades beneficentes de assistência social do pagamento de emolumentos. IV – Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente”. (ADI 1.624/MG, rel. min. Carlos Velloso, Pleno, DJe 13.6.2003).
Conforme define o inciso I do art. 24 da Constituição Federal, é competência concorrente da União e dos Estados legislar sobre matéria tributária. Além disso, a iniciativa de legislar sobre tributos não é privativa do Poder Executivo, sendo de competência e iniciativa comum entre os poderes legislativo e executivo. A Assembleia Legislativa de Minas Gerais já reconhece essas competências, conforme atesta o Parecer da Comissão de Constituição e Justiça relativo ao PL nº 1.271/2015, de iniciativa de um deputado, que deu origem à Lei nº 23.204/2018 e que dispõe sobre os emolumentos cartoriais.
Cabe ressaltar ainda que a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo já está debatendo o tema no âmbito do PL nº 742/2019, com parecer favorável pela CCJ daquela Casa Legislativa, o que demonstra amplamente a constitucionalidade, legalidade e juridicidade do Projeto de Lei apresentado. Não obstante, importante frisar que a Lei Federal nº 6.015/1973, em seu art. 30, inciso I, estabelece que “os reconhecidamente pobres estão isentos de pagamento de emolumentos pelas demais certidões extraídas pelo cartório de registro civil”, sendo essa pobreza comprovada por declaração do próprio interessado. Contudo, infelizmente nem sempre essa disposição é cumprida na prática, sendo necessário estabelecer legislações mais explícitas e direcionadas para as situações sensíveis.
O Provimento nº 73, de 28 de junho de 2018, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, dispõe sobre os procedimentos para retificação do registro civil de transgêneros, que podem ser realizados diretamente no cartório, sem necessidade de ordem judicial, laudos médicos ou qualquer outro entrave. O STF também já decidiu, no Recurso Extraordinário (RE) 670422, com repercussão geral e na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275, nos quais o Supremo reconheceu que “o transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa”.
Demonstrada a pertinência jurídica do projeto, passa-se a explicitar as razões que motivaram essa proposição. É importante destacar que os beneficiários dessa proposição estão entre os grupos mais vulneráveis social e economicamente. Como prevê a Constituição Federal, devem ser princípios orientadores de qualquer legislação promover a igualdade e proteção dos cidadãos, com especial atenção aos que mais necessitam do amparo estatal. Por isso, buscando contribuir para a melhoria concreta nas condições de vida dessa parcela da sociedade, o presente projeto objetiva promover uma pequena mudança burocrática nos emolumentos cartoriais.
Apesar de se tratar de mera modificação na burocracia, representa um importante avanço no acesso aos direitos do público afetado, garantindo cidadania e facilitando a resolução de problemas sociais importantes, como o acesso ao emprego, educação e saúde. Aponta-se, dessa forma, que tal mudança gera impacto positivo em toda a sociedade, por aumentar as chances de obtenção de empregos e diminuir a informalidade. A concessão de gratuidade para os cidadãos hipossuficientes é de extrema importância na garantia de um direito já assegurado aos transgêneros, compreendendo que a atual ausência de regulamentação do procedimento de retificação do registro civil é verdadeiro óbice à efetivação da cidadania dessa parcela da sociedade.
Além disso, a mudança não representa ônus para nenhuma das partes, uma vez que a legislação já prevê formas de compensar os cartórios pelos atos gratuitos praticados por eles. O projeto também prevê a necessidade de que os cartórios, em parceria com a Corregedoria-Geral, estabeleçam os valores dos emolumentos para a totalidade do processo de retificação do prenome e gênero, uma vez que atualmente não é possível saber com clareza o real valor, variando muito de cartório para cartório. Passa-se, agora, a demonstrar a necessidade da aprovação deste projeto.
Apenas nos primeiros nove meses de 2020, de acordo com o Trans Murder Monitoring, 124 pessoas transexuais foram mortas no Brasil, garantindo ao país o triste título de país que mais mata LGBTI+ no mundo pelo décimo segundo ano consecutivo. Em 17/05/2018, dia nacional de combate a LGBTfobia, o site do Senado chamou atenção para o fato de o Brasil ser o país onde mais se mata homossexuais no mundo. O país registrou 445 casos de mortes violentas entre homicídios e suicídios de pessoas LGBTI+ em 2017. Esse levantamento foi realizado pelo do Grupo Gay da Bahia. De acordo com a ONG Transgender Europe, entre 2008 e 2016, 868 travestis e transexuais foram assassinados no Brasil. O Brasil ficou à frente de países onde a homossexualidade ainda é crime, a exemplo do Paquistão.
Júlio Pinheiro Cardia, ex-coordenador da Diretoria de Promoção dos Direitos LGBT do Ministério dos Direitos Humanos, formulou um relatório a pedido da Comissão Interamericana de Direitos Humanos no final de 2018 e o entregou à AGU (Advocacia-Geral da União). O documento, tinha como objetivo/funcionalidade somar as denúncias de assassinato registradas entre 2011 e 2018. Para tanto, Cardia fez uso de dados obtidos através do Disque 100 (canal criado para receber denúncias referentes às violações aos direitos humanos), do Transgender Europe e do GGB (Grupo Gay da Bahia), totalizando 4.422 mortos no período. Tais resultados são equivalentes a 552 mortes por ano, ou uma vítima de lgbtfobia a cada 16 horas no país. De acordo com o Relatório Morte violenta LGBT+2019 produzido pelo GGB, a maior parte das vítimas de violência, encontra-se na faixa etária que vai dos 20 aos 50 anos, a idade considerada como o auge do desenvolvimento da cidadania, das identidades pessoais, sociais e da produtividade.
Importante frisar a questão da subnotificação e ausência de dados governamentais, pois grande parte desses relatórios utilizam informações obtidas através da imprensa para a medição de indicadores. Outro agravante, se refere ao pouco interesse e comoção pública em prol da cobrança por uma apuração de fatos e dados. O que ainda sustenta uma inação do poder público, em geral quando uma mulher trans profissional do sexo é morta, seu assassinato é apurado como se fosse um homem cis gênero, não contabilizando como crime de violência contra pessoa LGBTQI+, ou como feminicídio. Tudo isso contribui para que a expectativa de vida de pessoas transgênero no Brasil seja de 35 anos, além de toda a violência, o baixo nível de escolaridade por conta do bullying e a transfobia mantêm essas pessoas afastadas do mercado de trabalho, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), em pesquisa realizada em 2017, 90% das pessoas trans se dirigem à prostituição.
A informalidade e o desemprego tornam financeiramente inacessível a retificação de nome para boa parte da população trans, sem falar na burocracia. Contudo a retificação do nome e gênero reduz os constrangimentos e agressões, garante acesso aos espaços públicos, aumenta a sensação de segurança dessas pessoas que tanto sofrem, em suma garantem cidadania e os direitos fundamentais. Além de todo o exposto, gostaríamos de destacar alguns depoimentos sobre a importância da retificação do registro civil, demonstrando mais como a gratuidade é uma forma de promoção da cidadania e garantia de direitos:
“Com o passar dos anos percebi que a retificação demoraria a acontecer, não era gratuita e passei a me sustentar sozinho (na maior parte do tempo sem emprego). A falta de meus documentos corrigidos me traz muita vergonha e constrangimentos diários, seja ao receber uma encomenda, matricular em cursos, ir ao banco... Emprego nem se fala, uma das coisas que mais me deixa sem estruturas é a etapa de entrevista. Já perdi diversas oportunidades de emprego devido a isso, já rasgaram meu currículo e jogaram fora na minha frente por meus documentos não condizerem com meu nome, já me fizeram passar por diversas situações extremamente constrangedoras em empregos colocando o nome morto nos documentos de identificação (mesmo que haja o direito de inclusão do nome social). Em exames sempre tive dificuldade (e ainda tenho) para apresentação e retirada dos resultados. Diversas vezes colocam o nome errado, mesmo que o cartão do SUS esteja alterado. Isso tudo traz muita dor, crises incontáveis de disforia e ansiedade. A retificação não acaba com a transfobia que minha comunidade sofre, mas gera um conforto imenso de saber que não receberá um ataque vindo nesse âmbito”. (Amy Braga Fontenelle Brennea)
“Quando a lei de retificação de nome surgiu, logo procuramos um cartório e, finalmente, no dia em que a nova certidão ficou pronta, foi um renascimento; uma libertação. Comemorei seu novo nome como se houvesse batizado meu filho novamente. Senti um alívio em devolver a ele a liberdade de andar pela rua, de se matricular em provas e ir a médico e exames sem minha necessária presença. Porém nem assim foi fácil... Os históricos médicos ainda guardavam informação de seu gênero biológico e os resultados saiam com indicação de paciente "feminino". A situação mais constrangedora veio de um totem que mostrava o próximo cliente a ir até o guichê para apresentar seus documentos e aguardar o exame – lá, a vista de todos, constava o nome biológico... levantei-me e fui até a secretária que, por sua vez, informou que, naquela clínica, ele seria sempre chamado pelo nome anterior. Percebi ali um misto de desinformação e ódio. A secretária realmente acreditava que a carteira de identidade dele não sobrepunha os genes biológicos. Era como se naquela clínica ele fosse um conjunto de cromossomos XX e ponto. O nome retificado foi uma conquista de vida. Não há dignidade sem ele. As pessoas preconceituosas, que são muitas, sentem-se no direito de falar em alto e bom som o nome biológico e o fazem sempre que possível para humilhar ou tentar consertar o "erro" que veem no outro, no diferente, no desigual, no pária, no imperfeito. Não somos melhores uns que os outros e sim, somos todos diferentes. Precisamos nos respeitar enquanto seres humanos; precisamos parar de nos matar”. (Moíza F. Almeida)
“Assim que saiu a decisão do STF em permitir a retificação de nome e gênero na certidão de nascimento, eu falei com minha mãe. Estava e ainda estou desempregado, e ela me ajudou. Fizemos o possível e impossível para tornar isso parte da minha realidade. Até hoje não consegui alterar todos os documentos porque ainda existem lugares que colocam empecilhos (Pedem certidão de inteiro teor), na época que retifiquei foi mais fácil, fizemos empréstimos, mas não sabia que tinha que fazer tanta coisa, se não fosse o valor absurdo da certidão, eu conseguiria facilmente retificar todos os outros documentos. Hoje minha vida é mais leve, eu não preciso ficar pedindo para pessoas me chamarem no nome social, não preciso ficar me explicando em todo lugar que vou, não tem mais pessoas me analisando, comparando com a identidade, não sou mais barrado em lugares por alegarem que aquele documento não é meu, eu posso ir ao médico tranquilamente, em todo lugar sou chamado pelo meu nome, sem nenhum tipo de constrangimento”. (Jonas Stenner Quatorzevoltas)
“É como se estivéssemos renascendo, essa que foi a sensação que eu tive ao pegar minha certidão de nascimento com o nome e gênero feminino. Depois de 5 longos anos de espera na justiça eu era oficialmente Bruna Leonardo gênero feminino!”. (Bruna Leonardo Mesquita da Silva)
“ A retificação foi sempre um sonho para meu filho mas minha família não tem condições de pagar, eu estou desempregada e vivo de auxílio e com a ajuda de minha tia que já tem uma idade, Pedro é estudante completando o ensino médio agora. Quando eu e meu filho soubemos que teria uma possibilidade da retificação ficar gratuita tivemos um surto de alegria, isso não é só importante para mim como mãe dele mas muito mais para ele e para todes pessoas transsexuais, tenho certeza que com a retificação esses constrangimentos serão minimizados e talvez não tenha mais nenhum, seria um sonho realizado não só para ele mas para mim, de ver meu filho feliz e não tendo medo de sair na rua”. (Christiane de Castro Leal, mãe de Pedro Lucas de Castro Leal)
– Publicado, vai o projeto às Comissões de Justiça, de Direitos Humanos e de Fiscalização Financeira para parecer, nos termos do art. 188, c/c o art. 102, do Regimento Interno.