CÁRMEN LÚCIA, Ministra do Supremo Tribunal Federal - STF -, presidente do Tribunal Superior Eleitoral - TSE
Discurso
Legislatura 20ª legislatura, 2ª sessão legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 04/12/2024
Página 5, Coluna 1
Indexação
Proposições citadas RQN 7817 de 2024
Normas citadas RAL nº 5625, de 2024
43ª REUNIÃO ESPECIAL DA 2ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 20ª LEGISLATURA, EM 2/12/2024
Palavras da Sra. Cármen Lúcia
A Sra. Cármen Lúcia - Boa noite a todas as pessoas presentes. Cumprimento o mais novo mineiro que acaba de nascer, que é o nosso querido João Portinari. Queria que todas as pessoas se sentissem cumprimentadas; faço isso na pessoa do eminente presidente da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, querido geraizeiro deputado Tadeu Leite. Quero que todos se sintam, individual e pessoalmente, cumprimentados por mim nesta oportunidade, que é muito cara, de termos uma figura com a representação de João Candido Portinari sendo destacada como um cidadão das Minas Gerais. Afirmando "ser do mundo, ser Minas Gerais", Milton Nascimento canta a Minas eterna, Minas das liberdades, Minas das artes, Minas das humanidades. Minas tem sua história, e, em nosso sonho, ainda é sempre possível o sem tamanho da liberdade afável, que projeta a civilização e a magnanimidade. Esta Minas que, pelo gesto distinto desta Assembleia Legislativa, recebe e titulariza a melhor obra de Candido Portinari: seu filho João Candido Portinari.
Portinari pai, pela sua arte, traduz o mundo. Portinari Filho, pela sua obra, contribui para o fazer no mundo, aquele mesmo mundo pintado por seu pai e que encanta sem parar aquele mundo que também tem muito de cruel, mas pintado com a beleza que o Candido foi capaz de resgatar onde não se supunha haver possibilidade, permitindo, assim, que se iluminasse a vida mesmo no mais escuro do breu humano. É este o mundo ao qual atenta João Candido Portinari, agora cidadão mineiro, por sua honorabilidade e para o nosso gosto. É considerando esse mundo que João Portinari persiste na edificação de uma realidade de liberdade e solidariedade.
Ao falar de Candido Portinari, como hoje já foi mostrado aqui, Carlos Drummond poetava que, entre o cafezal e o sonho, o garoto pinta uma estrela dourada na parede da capela, e nada mais resiste à não pintura; a mão cresce e pinta o que não é para ser pintado, mas sofrido. João Portinari aponta a mesma estrela dourada pintada na capela e mostra ao mundo, pede que nela se creia, não apenas aquela que o pai pintou na parede da capela, mas a outra que cada ser humano traz em si, que pode guiar o humanismo civilizado e fraterno; aquela que há de estar em cada ser humano e em seu destino, voltado para sempre buscar ser feliz. Ainda é Drummond, sobre o seu amigo Candido Portinari, que também, no que já foi repetido hoje, entre o amor e o ofício, eis que a mão decide: todos os meninos, ainda os mais desgraçados sejam vertiginosamente felizes. O Menino de Brodowski segue vivendo na alma e na obra do filho, feito brasileiro exemplar, cidadão do mundo, a fazer do projeto Portinari um desenho de irmandade para a nossa incerta civilização.
Com a mesma dignidade dos pais, Candido e Maria, João Portinari vai além de sua ascendência e propõe, pela divulgação da arte, a construção democrática de uma sociedade na qual cabem todas as pessoas. Toda exclusão é uma forma de degredo do humanismo, e João Portinari não se acomoda nem se desgarra dos degredados; não se desatenta dos que impõe o degredo em suas formas vis e cruéis, nem dos que o sofrem, vitimados pelas atrocidades. O mundo pede paz a quem se ocupe em oferecer guerra. Em todas as suas formas, João Portinari persiste na senda de humanismo e compromisso com o que foi formado, aquela que mostra o horror para convidar ao belo.
Se eu tivesse de definir a alma civil de João Candido Portinari, eu diria nela habitar a ideia de salvação humana pela arte. João Portinari projeta, na arte divulgada, a luz que as tintas do seu pai puseram nas telas e, assim, segue iluminando os ideais de justiça e liberdade para o benefício de todas as pessoas. A denúncia da atrocidade da guerra e o humano ideal de paz unem-se também na labuta incansável de João Portinari. É mesmo que a arte é a única forma de remissão dos pecados, das desumanidades que as pessoas teimam em cometer. O que a arma letal destrói a arte aponta e reconstrói e mostra que a paz pode ser a ideia sonhada numa realidade possível.
Matemático por formação, João Portinari vem sendo arquiteto de obra social magna, aquela que traz à lembrança das sociedades não apenas o que lhe ocorre de pior, mas o que ela é capaz de fazer de melhor. Ah, “as margaridinhas do bem-querer no baú dos vencidos” a que se referia Drummond, poetando sobre a obra de Portinari. Não se há de esquecer que somos todos um pouco vencidos no severo fado de humanidade que todos carregamos, mas é preciso que haja pessoas como aquele que pinta o sofrimento e a redenção, a ensinarmos sobre o humano viver para superar o desumano desviver. E aquele que apresenta e ensina a arte, a pintura, mostra a “margaridinha nos baús dos vencidos”, para que, do valor civilizatório, não se esqueça algum desavisado, fantasiado de vencedor de ocasião, crente na perenidade imprópria da vida humana.
O retrato emocionante e engajado do povo e da alma brasileira, brotado das mãos vigorosas e dos ideais profundos e expostos na obra de Candido Portinari, alastra-se ainda agora como um cafezal fecundo de grãos de humanidade, florescidos pela ação única de João Portinari. E assim se alcança a continuidade da vida, que se faz modelo de arte e glória, não apenas de quem a salva, mas ainda para os que são salvos pela beleza artística que se expõe.
E, para além do papel social que João Portinari cumpre, há que se realçar a generosidade e a gentileza que qualificam nosso homenageado e que nos encantam pela tranquila delicadeza com que nos ensina sempre. Em tempos de torpezas incompreensíveis, violências verbais e físicas, sem causa ou motivo, de agressões ferozes, brutalidades antissociais, a distinta polidez, generosa e elegante, de João Portinari é modelo tão raro quanto necessário. A democracia é amável, a justiça há que ser polida e ética, a liberdade é afável.
Nesses revoltos tempos de hostilidades e desvarios, o que se põe em risco é a convivência democrática na sociedade, na qual as pessoas precisam reaprender a confiar na tranquilidade de viver com o outro, conviver com lhaneza, fineza de trato que concilia os diferentes, respeitando-se todas as pessoas, todas as tendências, todas as ideias, afinal, somos mesmos todos iguais em dignidade e direitos. Por isso, para além da obra de arte que a sociedade aprecia pelo incansável trabalho de João Portinari, não se há de esquecer do exemplar ser humano com que a humanidade conta para que se projete a maior de todas as obras: o fazer de alguém que se ponha a mostrar ser possível conviver com respeito, transformando vícios em virtudes, desvios em travessias, pesadelos em sonhos. João Portinari nos ensina, pela arte que divulga, exatamente isso.
João Portinari nos oferece a mão com as melhores cores de humanidade, compartilhando a arte exposta com sua compostura finamente democrática, a largueza anímica de sua lida para que, com seu exemplo, lembremo-nos de que não podemos ficar no acostamento da vida sem ânimo de seguir em frente, porque sempre há a irmandade livre e comprometida com que podemos reinventar este mundo.
Tê-lo como cidadão mineiro, João, pelo gesto nobre desta Assembleia Legislativa que honra Minas Gerais, é uma graça e uma esperança para os que sabem de seu empenho e que seguem o seu exemplo, afinal a vida é sempre uma obra inacabada, mas sempre contínua. E Minas é sempre a ideia de liberdade continuada, o que faz sempre valer a pena ser do mundo, ser Minas Gerais. Bem-vindo agora como mineiro. Muito obrigada.