Pronunciamentos

DEPUTADA BELLA GONÇALVES (PSOL)

Discurso

Manifesta revolta contra a mineradora Vale por tentar impedir na justiça o sepultamento do cacique Merong Kamakã Mongoió na aldeia onde vivia, no Município de Brumadinho.
Reunião 6ª reunião ORDINÁRIA
Legislatura 20ª legislatura, 2ª seção legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 08/03/2024
Página 38, Coluna 1
Indexação

6ª REUNIÃO ORDINÁRIA DA 2ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 20ª LEGISLATURA, EM 6/3/2024

Palavras da deputada Bella Gonçalves

A deputada Bella Gonçalves – Obrigada, deputada Leninha. Hoje é dia 6 de março. Como combinado pelas mulheres, junto com a Casa, no mês de março as reuniões da Assembleia vão ser presididas pelas mulheres. Só que, neste 6 de março, Leninha, eu venho presidir esta sessão com meus pés sujos de barro e com o meu coração absolutamente entristecido por uma das cenas mais revoltantes que eu já vi em toda a minha vida. Nós, mulheres, exigimos respeito. E hoje eu vi uma mulher, mãe, ter o seu direito ao luto, ter o seu direito ao ritual religioso, ter o direito de sepultar, semear o seu filho, o cacique Merong Kamakã Mongoió, violado pela Vale e pela Justiça Federal.

Eu fui às 5 horas da manhã para o Território Kamakã Mongoió, em Brumadinho, para me juntar às famílias e aos parentes indígenas que estavam absolutamente revoltados com um pedido da empresa Vale, que buscava impedir a sepultura do cacique Merong dentro de um território que já é uma retomada há muitos anos. A Justiça, Macaé, determinou o uso violento da força policial, caso necessário fosse, para retirar Merong à força, de forma violenta, dos braços da sua família, dos seus parentes, para ser enterrado em outro lugar. Isso é a violação mais profunda de todos os direitos que a gente pode conceber.

Mais uma vez, a Vale proporciona a Minas Gerais uma das cenas mais tristes de que se tem notícia. Ela quis impedir o cacique Merong de ser enterrado no seu território, mas não pediu licença nem autorização a ninguém para sepultar vivas 272 pessoas debaixo da sua lama tóxica. Neste exato momento, está sendo julgado o responsável pela Vale durante o crime que aconteceu em Brumadinho. Não queremos que esse crime continue impune, porque é essa impunidade que tem feito com que essa empresa assassina continue ameaçando territórios quilombolas, ameaçando territórios indígenas, colocando em risco a vida da população local e massacrando-a com atos violentos como esse de tentar impedir o velório, de tentar impedir o direito ao luto dos parentes, dos companheiros indígenas da região metropolitana.

A despossessão dos povos indígenas iniciou-se em 1500. Mas aquilo foi só o início. Há mais de 500 anos, os povos indígenas vêm sendo despossuídos por empreendimentos que buscam lucro e destruição ambiental. As retomadas dos territórios, da vida, da dignidade e da cultura indígena são uma estratégia histórica.

Eu, junto com o cacique Merong, entoamos cânticos pela Assembleia Legislativa no dia da audiência pública da Comissão de Direitos Humanos que tratou da tese do marco temporal, para protocolar um projeto de lei que reconhecia o interesse cultural e ambiental das retomadas indígenas em Minas Gerais. São elas, e não a Vale, que hoje têm feito a recuperação ambiental, cultural, econômica e humanitária de toda a Bacia do Rio Paraopeba, que foi destruída. E segue o rastro da destruição. São os povos e comunidades tradicionais que, preservando as matas, semeando-as, construindo vida naquele território, têm garantindo que ele não vire mais uma fronteira de expansão da mineração, ampliando a despossessão cada vez mais. Esses territórios têm que ser reconhecidos.

Eu espero, Macaé, que esta Assembleia Legislativa possa aprovar a Lei Merong Kamakã Mongoió, que é como ela passará a se chamar a partir de agora. A morte do cacique Merong é uma morte absolutamente suspeita. E, em todos os casos, houve responsabilidade direta da Vale, seja pela pressão psicológica, seja pelo entendimento no território de acesso a direitos, o que tornava a vida na aldeia tão dura, ou, inclusive, pela suspeita de assassinato do cacique Merong. Hoje essas investigações estão a cabo da Polícia Federal, estão a cabo da Polícia Civil. Não cabe fazermos afirmações, mas dizer que essa empresa é suspeita, conforme grande parte das pessoas e dos parentes indígenas, de ter interesse na morte do Merong, e tentar impedir o sepultamento dele é mais um escândalo.

A Constituição Federal prevê o direito fundamental ao livre exercício de cultos religiosos e à garantia de proteção aos locais de culto e liturgia. O velório, o sepultamento ou a semeadura de um parente, como os indígenas falam, é um ato religioso, cultural, tradicional do povo brasileiro. O Código de Processo Civil prevê que quem estiver participando de ato ou culto religioso não pode ser sequer citado em processo judicial. Imaginem vocês, hoje de manhã, a Polícia Militar, com a Polícia Federal, interromper um velório, interromper o culto de semeadura do cacique Merong para intimar a mãe. Para intimar a mãe! O nome disso é violação de preceitos constitucionais.

Gente, o mais assustador é o desenho do processo judicial que teve a decisão da juíza. Constam como réus do processo o cacique Merong, que é citado como réu, embora não esteja vivo mais – ele é justamente a pessoa que iria ser sepultada e é réu da ação – e uma criança de 9 anos. Desde quando, deputada Leninha, uma criança pode ser ré num processo judicial? Desde quando uma pessoa morta pode ser ré num processo judicial? Isso é uma aberração jurídica. A juíza que determinou isso precisa ser afastada do caso, precisa ser levada ao CNJ. É uma ausência completa de humanidade você não observar a idade do réu que está citado num processo judicial, a condição de um réu. Ela manda a força policial impedir um enterro, que tem como pessoa citada a pessoa que está sendo enterrada. Gente, o que é isso? O que é isso? É realmente um racismo gigantesco da Justiça Federal, da injustiça brasileira, não considerar que os povos indígenas são sequer sujeitos de direitos, são sequer gente. Repete-se, mais uma vez, Macaé, o colonialismo, a colonialidade do poder, que teima em dizer que pessoas indígenas não são gente, que pessoas negras não são gente. Há poucos anos, o Brasil e o Vaticano, inclusive, não consideravam os povos indígenas sujeitos com alma. Isso se repete hoje numa decisão judicial em pleno 2024, quando uma pessoa, prestes a ser sepultada, é considerada ré numa ação judicial que evoca a violência para ferir a Constituição Federal.

Impedir ou perturbar enterro ou cerimônia funerária é uma violência que infringe o Código Penal também, porque ele determina que é crime impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso, ainda mais desse nível. São muitas as irregularidades. Eu estou absolutamente convencida de que nós precisamos de uma audiência pública, que vamos aprovar logo mais, na Comissão de Direitos Humanos. Queremos nos reunir com a presidência do Tribunal Regional Federal para pedir providências em relação às decisões dessa juíza, que não tem condição de estar à frente do caso dos camacã mongoió – já se provou que não tem condições, deve ser afastada desse caso e talvez responsabilizada. Essa é a minha defesa e a defesa da comunidade dos povos indígenas.

É preciso também, Macaé, que eles sejam inseridos imediatamente no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos do Estado. Algumas lideranças indígenas ameaçadas pela Vale estão esperando retorno desse programa há dois anos. Esse era o caso inclusive do cacique Merong, que já tinha feito o pedido de socorro, o pedido de ajuda. Ele não foi atendido, viu-se desamparado e hoje foi semeado pelo seu próprio povo no seu território; território onde o corpo de um cacique, de um guerreiro que lutou não apenas pela sua comunidade… Quem o conheceu sabe que Merong estava em Brasília, viajou para a Europa para defender os direitos indígenas, esteve presente em praticamente todas as aldeias e povos de Minas Gerais e do Brasil; sabe que essa luta ali e a semeadura do Merong clamam por uma demarcação imediata do Território Kamakã Mongoió, assim como dos demais territórios que estão na Bacia do Paraopeba. A Vale até hoje não fez nada para reparar ambiental e socialmente esses povos. É hora de o recurso da reparação ir imediatamente para garantir essa demarcação.

Obrigada, presidenta. Eu estou, de fato, muito emocionada hoje. É um dos dias mais tristes que eu já vivenciei. Muita força para nós nessa luta, força para a deputada federal Célia Xakriabá, que me acordou às 4 horas da manhã para que a gente estivesse lá e fez um trabalho importantíssimo para evitar um derramamento de sangue. Sem a mediação da deputada Célia Xakriabá, a polícia teria chegado, e o povo não deixaria que o Merong fosse retirado do território. Aquilo ocasionaria, sem dúvida nenhuma, um derramamento de sangue ainda maior.

Então, deixo aqui também o meu agradecimento à minha companheira de luta Célia Xakriabá. No mais, vamos seguir semeando luta. Queria aqui chamar o nome de Merong Kamakã Mongoió. Cacique Merong. Presente! Cacique Merong. Presente! Cacique Merong. Presente! Hoje e sempre nós estamos na luta!

A presidenta (deputada Bella Gonçalves) – Obrigada, deputada Leninha. Não estou acostumada a ser presidenta, não. Essa é sua mesma, com muito orgulho. Com a palavra, para seu pronunciamento, o deputado Cristiano Silveira.