ROBERTO ARMANDO RAMOS DE AGUIAR, Professor de Filosofia do Direito da Universidade de Brasília - UNB.
Discurso
Comenta o tema: "Administração de recursos humanos do sistema de justiça
criminal".
Reunião
32ª reunião ESPECIAL
Legislatura 15ª legislatura, 4ª seção legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 13/09/2006
Página 32, Coluna 2
Evento Seminário Legislativo: "Segurança para todos - Propostas para uma Sociedade mais segura".
Assunto SEGURANÇA PÚBLICA.
Legislatura 15ª legislatura, 4ª seção legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 13/09/2006
Página 32, Coluna 2
Evento Seminário Legislativo: "Segurança para todos - Propostas para uma Sociedade mais segura".
Assunto SEGURANÇA PÚBLICA.
32ª REUNIÃO ESPECIAL DA 4ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 15ª
LEGISLATURA, EM 22/8/2006
Palavras Sr. Roberto Armando Ramos de Aguiar
Inicialmente, gostaria de agradecer a oportunidade de estar aqui.
Tenho a impressão de que tenho uma vida mais ou menos
esquizofrênica. Sou Professor de Filosofia do Direito e fui
Secretário de Segurança do Distrito Federal e do Rio de Janeiro.
A esquizofrenia é muito peculiar, o que de certa forma me dá uma
certa angulação meio privilegiada com relação ao problema.
Este encontro é muito importante. Primeiramente gostaria de
trocar idéias com todos vocês para que nossa reflexão não caia nos
riscos de uma sociedade de massa. Assustou-me o fato de, com os
últimos acontecimentos de São Paulo, as pessoas correrem em nossa
direção a cada vez que acontecia um arrufo maior. Foram dezenas de
entrevistas, e eu dizia aos entrevistadores que, em alguns dias,
como viria o campeonato de futebol, eles nos esqueceriam. E isso
efetivamente aconteceu. Veio o segundo arrufo, e eu disse aos
entrevistadores que, como viriam as eleições, eles nos esqueceriam
novamente.
Nossa sociedade é de espetáculo e leva-nos a reações
espetaculares. Lembro-me do Prof. Adorno falando sobre o plano do
Fernando Henrique. Quando foi apresentado, o Plano Nacional de
Segurança Pública do Fernando Henrique tinha contradições
gravíssimas. Foi elaborado depois do episódio do ônibus 174, quer
dizer, a comoção geral deu origem ao plano, como se fosse uma
espécie de lista telefônica de medidas muito complicadas. Uma das
medidas determinava que deveriam ser iluminados todos os lugares
onde houvesse possibilidade de crimes. Outra medida, do mesmo dia,
dizia que seria feito blecaute em determinadas regiões por causa
da falta de energia. Tudo estava absolutamente desarticulado, mas
era uma resposta. Era a reação espasmódica.
O Legislativo Federal reage assim. Diante de determinado
acontecimento, pensa-se em diminuir a imputabilidade penal; diante
de um outro fato, a idéia é o aumento da punibilidade de certos
crimes. Se formos nessa lógica, logo os fetos serão imputáveis.
Poderão sair diretamente para as penitenciárias. Algumas reações
são absolutamente irracionais de uma sociedade medíocre, de um
debate medíocre, em que as pessoas sempre perguntam as mesmas
coisas e nunca fazem novas perguntas. O conhecimento não se faz
com respostas, mas com perguntas novas. Todavia, não há perguntas
novas.
Precisamos sair de um segundo risco, de uma sociedade de mídia,
de uma sociedade cuja democracia é estranha. Precisamos sair do
Mito de Sísifo. Devemos lembrar-nos de que segurança pública é
política de Estado, e não de governo. No Brasil, alguém do partido
X faz uma gestão. Havendo sucessão, a primeira coisa que o
sucessor faz é não analisar o que o gestor anterior fez de bom ou
de mal. O novo gestor procura destruir tudo e dar outra
personalidade àquela administração. Lembro-me de que o Dr. Herbert
falava de preço. Em termos de custos, isso é um desespero. Parece
que a pedra sobe até um determinado ponto do morro, depois cai, e
tudo começa novamente. Tudo isso é absolutamente irracional.
O terceiro ponto refere-se ao espetáculo. Tornamos a segurança
pública um problema de espetáculo. Aliás, o espetáculo domina
nossa sociedade. Eleição virou espetáculo. As pessoas que votaram
em Collor são capazes de dizer o que Collor pensava, ou pior, se
pensava? Collor foi vendido como um produto, como uma mercadoria.
Tudo é espetáculo. Se eu perguntar qual a cronologia dos
escândalos Collor, ninguém saberá responder. Alguns de seus atos
foram punidos? Ninguém saberá responder também a essa pergunta,
embora as pessoas aqui presentes sejam altamente informadas. Somos
a elite. Isso significa que nos dobramos à sociedade do
espetáculo. Podemos refletir sobre essa sociedade e encontrar
soluções absolutamente inadequadas.
Por último, falaremos sobre a retórica vazia, que é
interessantíssima. Às vezes, analisando um discurso de
propositura, se fizermos um “copy desk”, o muito que sobrará é uma
palavra. O resto é advérbio, conjunção, exclamação e “mise-en-
scène”. Parece-me muito importante refletirmos sobre esse risco.
Quando começamos a falar sobre segurança, precisamos fugir desse
tipo de sociedade que nos impõe um tipo de conduta e uma certa
alienação. Trabalhar alienadamente com segurança pública significa
um risco imenso.
Minha primeira afirmação, atendo-me ao tema e ao tempo, é que não
temos um sistema nacional de segurança pública, não temos um
sistema criminal integrado, não temos nada. O que temos é um
feudalismo de instituições, com seus senhores feudais, suas
homenagens e suas hierarquias, suas suseranias e vassalagens -
isso é o real - incomunicáveis. Se em Minas é diferente, ótimo,
mas o que vejo no Brasil é uma incomunicabilidade. Quando era
Secretário no Distrito Federal, fizemos um curso para as
corporações de oficiais superiores. Estavam lá a PM, a Polícia
Civil e o Corpo de Bombeiros Militar. Aliás, pergunto: por que
Corpo de Bombeiros Militar? Como se fazer combate sanitário ao
fogo fosse um ato militar. Muito bem. A primeira coisa que
descobrimos, quando começamos a trabalhar, foi que não havia um
conceito de segurança pública comum. Como trabalhar instituições
em um mesmo sistema quando pensam diferentemente? Em segundo
lugar, não se conheciam operacionalmente, isto é, quando a Polícia
Civil descobria alguma coisa e precisava chamar a PM, quem
chamava? Só 190? E vice-versa. E quando necessito de uma
investigação? Policiais militares pisavam a cena do crime, como se
fossem elefantes. Acabavam-se todos os vestígios, porque não sabem
como a Polícia Civil funciona. São absolutamente incomunicáveis.
Pior ainda é a questão da informatização. Todo mundo se diz
informatizado. Se perguntamos à PM, informatizada; à Polícia
Civil, informatizada. Mas é o mesmo sistema? Não, porque
informação é poder. Então, uso um tipo de “software”, e a outra
trabalha com outro tipo de “software”. Escondemos nossas
informações. É simples, basta fazer camadas de informação. Mas
não. Lembro-me que em Brasília havia um setor, muito cheio de
informações, que eu queria informatizar, para que outras pessoas
tivessem acesso. O escrivão falou que não podia, que
informatização era coisa do demônio, que ele tinha tudo na cabeça.
Então fiz um ofício que ficou famoso em Brasília, solicitando que
ele me informasse a que centro espírita a Secretaria deveria
dirigir-se no caso de seu falecimento, para haurir aquelas
informações. Ficou tão ridículo que ele acabou cedendo. Isso é
para mostrar como há esse fechamento, essa incomunicabilidade.
Então, não há um sistema.
Olhando o Judiciário, os Juízes não são treinados e educados para
trabalhar com gente, mas com papel. Quando o Juiz vai tratar do
caso, o criminoso já está limpinho, a vítima já não está
acreditando muito na punibilidade, muito menos no ressarcimento. E
aí ele trabalha com uma realidade que não é a efetiva.
Aqui em Minas Gerais houve uma experiência da aplicação da Lei nº
9.099, de acordo com a qual as coisas deveriam ser resolvidas em
24 horas. Em determinado local estava a Polícia Militar, a Polícia
Civil, o Ministério Público e o Juiz. Quem não agüentou foram os
Juízes, que começaram a se sentir mal. Eles nunca tinham visto
gente. O criminoso que recém cometeu o crime é um camarada com uma
atitude esquisitíssima. A vítima, indignada, porque um bem
jurídico foi lesado. Isso fazia mal. Eles começaram a pular fora
do jogo e acabaram frustrando uma experiência muito interessante.
No Ministério Público acontece a mesma coisa. O problema do
Ministério Público é interessantíssimo. Houve alguns momentos em
que a Secretaria de Segurança precisava do Ministério Público, mas
ainda há certa mentalidade de que criminoso tem horário. Quando
pegávamos um criminoso em cujo interrogatório podíamos,
eventualmente, usar violência, precisávamos trabalhar com direitos
humanos, para garantir que não fossem judiados.
Então, precisávamos chamar o Ministério Público, que estava
dormindo. Havia uma equipe galopando atrás de algum Promotor que
tivesse a honra de olhar para um pobre policial para ver o que
estava acontecendo. Para ele, os criminosos funcionavam das 8
horas às 18 horas, com folga para o almoço. São importantes o
conhecimento entre as corporações e a adequação operacional. Mas
acho muito importante, e estou até orientando uma dissertação
nesse sentido, que a maioria das participações populares nos
conselhos comunitários de segurança são formas mais politizadas no
sentido estreito da palavra. Um conselho comunitário, quando
começa a crescer, lança dois candidatos a Deputado ou Vereador. No
fundo, ainda não achamos uma forma efetivamente democrática de
participação da cidadania. A coisa é tão louca que as Ouvidorias,
que seriam para fiscalizar, têm que pedir ao fiscalizado para
investigar o caso. Elas não têm instrumentos próprios para
desvendar as questões. Isso é muito claro. Temos que sair da
retórica para colocar a mão pesada sobre isso. Não “pesada” no
sentido imbecil da violência, mas “pesada” em termos de uma
democracia cidadã efetiva.
Também se fala muito, e o próprio Adorno falava com muita
propriedade, que, no fundo, a questão da legalidade é um pouco
mais complicada do que se pensa. Nos problemas de legalidade com
relação à segurança pública, temos a legalidade substancial. O
nosso mundo estatal é um mundo “démodé”. As coisas novas não
mordem, por exemplo, os delitos eletrônicos: todos os dias, os
bancos são vítimas desses delitos. Arrastam-se no Congresso
diversos projetos, e nada acontece. A cabeça dele é “belle
époque”: parou na máquina a vapor. Essa questão de
“telemarketing”, de formas de utilização de artefatos eletrônicos
para cometer crimes, não está na cabeça deles. Vejam o crime
organizado. É uma coisa bruta, mas as coisas brutas no Brasil
precisam ser ditas. Os criminosos estão mais organizados do que as
polícias. Estão vigiando os presídios para que os celulares não
entrem. Celular tem perna? O problema é humano. Mas os criminosos
estão usando o computador, já não precisam do celular. Outra coisa
importante é que não sabemos como eles se organizam. O que é a
lavagem de dinheiro? Para muita gente, lavagem de dinheiro é coisa
de lavanderia. Ainda não perceberam a importância desse escoadouro
de todo o crime dito organizado. Há também os crimes relativos ao
colarinho- branco. Agora existem novos crimes ligados à bioética.
Há algumas perguntas idiotas que podemos fazer, como, por exemplo,
se as sementes de fertilização programada não são o velho 171?
Isso é estelionato. Compra-se a semente, faz-se uma plantação
linda, mas, quando se pega a semente para plantar novamente, ela
está estéril. Aí se compra outra partida de semente. Isso não tem
o jeitão de 171? Atualmente, tudo parece muito natural.
Banalizamos, porque temos medo. O novo é muito rápido. Temos uma
sociedade marcada pela velocidade. Não dá para ser devagar.
Outro aspecto é a questão procedimental, muito bem explicada pelo
Dr. Herbert. Temos que sentir que a legalidade funciona. O direito
caminha, hoje, para três grandes movimentos: a deslegalização, a
desformalização e a descentralização.
Esses são os três movimentos mundiais do direito, mas realizamos
o inverso. Cada vez mais nos concentramos e nos normatizamos,
acreditando que a lei modifica o mundo, quando, na verdade, ocorre
justamente o contrário: o mundo modifica a lei. Quando surge um
problema, as pessoas dizem que temos de criar uma lei que o
resolva, mas o problema é social, econômico, político e
relacional!
O terceiro movimento diz respeito às legislações corporativas. O
regulamento disciplinar da Polícia Militar do Rio de Janeiro é de
1968, ano muito problemático. Esse regulamento foi baseado em um
teórico muito importante chamado D. João VI. Trata-se de algo com
muito ranço. Tivemos de trabalhar muito para quebrar os tabus e as
resistências existentes no interior da Polícia Militar e alterar
esse regulamento. Como o período de governo era muito curto, isso
teve de ser feito por decreto, e não por lei. Quando mudou o
governo, a D. Rosinha voltou a adotar o regulamento de D. João VI.
As legislações corporativas são atrasadas. Isso explica por que o
policial é tão ruim quando se trata de direitos humanos. Os
direitos humanos dos policiais não são respeitados por esse
regulamento. Eles não sabem o que é isso e acreditam que o cidadão
deva ser malhado como ele é para conseguirem o que diziam os
jesuítas: obediência de cadáver. O cadáver é posto em qualquer
canto e fica do jeito que tem de ficar, sem reclamar. Fico me
lembrando das penas daquele vigente regulamento disciplinar: cinco
dias de prisão para aqueles que estiverem com uniforme sujo; dez
dias para aquele que se apresentar com o cabelo malcortado; e
nenhum dia para aquele que matar alguém. A distorção é total.
Finalmente, há a questão técnica, ou seja, problemas de
legalidade técnica. No fundo, o negócio é assustador. Não vejo
estudos de estratégia e tática nas academias. Parece-me que a
educação brasileira eliminou os pensadores da estratégia e da
tática. Há trabalhos com ótimos princípios e boas finalidades, mas
como passaremos dos princípios à ação? Todos os pensadores táticos
e estratégicos foram jogados fora. Os sofistas sofismam. Maquiavel
é maquiavélico. Clausewitz é um militarista alemão. Mas são
jogados fora, e todo o mundo fica abestalhado, sem capacidade para
se articular estrategicamente. Em conversas com as corporações,
tenho apertado os policiais, para saber qual a diferença entre
tática e estratégia. Fizemos isso no Rio, pois trabalham todos os
dias enfrentando problemas concretos.
São impressionantes as normas técnicas. Gostaria de trabalhar na
segurança privada, para poder usar todas as armas. Os policiais
militares não podem, porque têm de respeitar os limites. A
segurança particular faz contrabando de armas. De acordo com a
lei, não há nenhum limite para isso. Pode-se levar uma ponto-
trinta ou um canhão em um carro blindado. Há um medo militar por
parte da própria Polícia Militar, que é muito boba, pois obedece a
todos os dados criados, por terem medo de que possam crescer.
Então, controlam as suas armas, mas não controlam as da segurança
privada. Tecnicamente verificam o uso de armas particulares e o de
armas inadequadas, a oportunidade do seu uso, como utilizar e em
que circunstância. Um camarada no meio de um monte de gente pode
tirar uma pistola 9mm e atirar; no entanto essa arma, somente com
um tiro, pode matar várias pessoas.
A normatividade está podre, velha e inadequada, e não temos
coragem de trabalhar.
Outros problemas são os de formação. Formar-se em educação
física, para ser bem forte, não é tudo. Uma anta bem-formada
fisicamente nem sempre é boa.
Que formação é importante para o policial? Além da formação
profissional, uma formação cidadã e humana. O policial trabalha
com gente. É um servidor da cidadania. É interessante observar que
essa formação é assimétrica: “Sou policial, e ele é paisano”. Isso
lhe dá o direito de fazer coisas esquisitas com esse paisano, ou
seja, aumentar a violência, não saber abordar no famoso
“baculejo”.
A alternativa é: formação, só junto com universidade, centros de
pesquisa, cidadania e partes técnicas, e - atenção - com a gente
olhando, porque há quem ensine muito mal. Há locais no Brasil em
que o policial militar é treinado com cinco tiros e recebe, de
cara, uma pistola ponto-quarenta. Ele vem fazer alvo na gente, não
é?
Há também a necessidade de atualização. O sistema de segurança -
Juízes, Promotores, cidadãos, policiais - precisa estar atento ao
mundo. Estamos num mundo estranhíssimo. Ninguém percebeu isso
ainda? É a primeira vez na história do mundo que vivemos o
imperialismo de um só país. Esse imperialismo, querendo combater o
terrorismo, tirou todas as garantias dos advogados e das
convenções de guerra - haja vista Guantânamo. E esse negócio está
vindo para cá. Não contem para ninguém, mas o terrorismo está
chegando aqui, ou vocês pensam que o PCC faz isso só de
brincadeira? Logo, logo acontecerá o que sempre se faz quando há
golpe de estado neste país: Getúlio tirou o “habeas corpus” para
crimes políticos; os militares, em 1964, tiraram o “habeas corpus”
para crimes políticos. Começam a retirar direitos. Precisamos
ficar atentos a isso.
Digo que temos de nos atualizar com relação ao mundo, porque
grande parte de vocês lutou para a reconquista da democracia no
Brasil. Os adversários eram os militares. Agora temos uma
democracia que está ameaçada pela delinqüência. Já há uma
infiltração nos Estados. Rondônia e Espírito Santo são um exemplo.
E essa corrupção desenfreada? Aliás, é um jogo interessante.
Recebemos tantas informações que nossa cabeça “pira”. Quem é o
cara que ontem estava envolvido em escândalo? Não sabemos mais,
porque tantos outros já vieram depois dele... O sujeito sai,
assim, no anonimato.
Parece-me importante fazer uma manutenção de direitos, uma
manutenção da democracia. Internacionalmente, as coisas estão
assim, e, nacionalmente, estão surgindo novas demandas para as
quais não estamos preparados.
Faz-se necessário também atualizar a técnica. Quanto mais
ciência, menos violência. A tortura diminui nas polícias à medida
que se adotam procedimentos científicos de investigação. Uma
análise de microvestígios é capaz de dar mais elementos do que um
choque no pau-de-arara, sem falar nos aspectos de crueldade,
desumanidade, diminuição e destruição do outro que isso implica.
O terceiro problema diz respeito à gestão. Pessoal, como é
amadora a gestão! Na maioria das corporações brasileiras e dos
órgãos estatais, podemos tirar 50% dos funcionários que não
acontece nada. Há uma hipertrofia da atividade-meio.
O Distrito Federal promoveu um “upgrade” quando tirou todos os
PMs que estavam assentadinhos fazendo atividades burocráticas,
incluindo o cara que carregava a malinha do Coronel. Ora, tirem
esses policiais desses lugares e os coloquem na rua para que
possam exercer suas funções fundamentais.
É preciso haver um choque de gestão, mas de gestão moderna, em
rede, com investimentos racionais. São impressionantes os
“gadgets” que se nos oferecem: armas com mira telescópica, que aos
domingos fazem feijoada e coisa e tal. Caríssimas.
Precisa-se da arma? Não se precisa, mas dá “status”. E os
Governadores fazem o mesmo. Como segurança tem um jeitão de
esgoto, não aparece, tudo fica debaixo do pano. E o que acontece?
Dizem: “Estou investindo na segurança”. Aí compram viaturas e
armas e aumentam o contingente. Os carros desfilam pelas ruas
buzinando e com as luzes acesas, nas operações Arara e Vagalume. E
dizem: “O Governador comprou aqueles carros”. Só não dizem que os
carros são completamente inadequados.
No Brasil, não há fábrica de carros para polícia. A porta abre
60º, e o policial, ao sair, pode ser morto. Além disso, os
amortecedores não funcionam. Bandidos colocam lombadas nas ruas, e
os carros param na primeira perseguição. Começa tudo bonito,
entretanto dez dias depois 30% dos carros já estão abaixados, pois
não agüentam.
São visões retóricas, ultrapassadas. Temos de pensar como
investir. O grande investimento fundamental e inicial é a educação
permanente para todos - Juízes, Promotores e membros das
corporações. Essa educação tem de possibilitar um diálogo entre
eles que não seja assimétrico, e sim horizontal. No Brasil, há uma
cultura: eu, advogado, quando vou ao encontro do Dr. Herbert, que
é Juiz, chego como um ratinho, falando fininho. Aliás, ele fica no
alto, num lugar que parece um palco.
Há dois mil anos, aprendemos que o processo é um ato
“triumpersonarum”, em que três pessoas horizontais são as partes
interessadas - às vezes, desinteressadas. Como tirar as
assimetrias? Como tirar a assimetria do policial que chega ao
conselho comunitário de segurança e diz que é chefe lá? Chefe
coisa nenhuma. As questões têm de sair dos problemas efetivos por
que passa a sociedade. Quer dizer, há uma série de cacoetes
medíocres.
Em Minas, lugar onde as coisas acontecem - gosto daqui por isso,
sempre venho aqui - e as novidades são testadas, peço-lhes: pelo
amor de Deus, pensem e saiam do preconceito. Há problema de
atualização contra a emergência do novo e quanto à velocidade do
mundo.
Os mais velhos - aqui há muitos jovens -, em 1989, ligaram a
televisão e certamente ficaram assustadíssimos ao verem a bandeira
soviética descer do Kremlin e a russa subir, sem ninguém dizer
nada. Nenhum cientista político havia dito que aquele negócio
implodiria. Com isso, percebe-se a velocidade das mudanças
políticas. Ao ligarem novamente a televisão, viram um rato
fosforescente, fruto de célula germinativa de rato com fragmento
de DNA de anêmona. O que é isso? O que aconteceu? E dissemos que
era bestialidade misturar espécies.
Veio a clonagem. Se olharmos a clonagem do ponto de vista do
direito da sucessão, o que é o clone com relação ao clonado?
Filho, irmão gêmeo? Então, como fica a herança, se forem ricos?
Isso muda toda a concepção das coisas mais insignificantes.
Outro problema é a questão estrutural. A hierarquia e disciplina
das corporações nem sempre são eficazes. A hierarquia só faz
sentido se for teológica, isto é, se se organiza determinado tipo
de instituição para uma finalidade. Portanto, posso hierarquizá-
la.
No Brasil, a Polícia Militar possui um monte de patentes,
alocações, que servem para uma guerra clássica. A diferença entre
1º, 2º e 3º Sargentos era utilizada por Napoleão. Já na Batalha de
Austerlitz, Napoleão reclamava que havia dividido demais; e PM não
fará batalha como a de Austerlitz, pois tem outra finalidade.
O segundo aspecto: haverá hierarquia e disciplina não porque há
baixos vencimentos ou soldos, mas porque a distância entre o topo
e a base é enorme, e acaba-se por não se aceitarem ordens de uma
pessoa que explora.
No Brasil, há um Estado - não citarei seu nome para não pichar,
apesar de ter muita vontade - em que os soldados ganham salário
mínimo. E isso foi conseguido por meio de liminar. Quer dizer,
ainda podem perder, pois trata-se de uma decisão provisória.
Lá os Coronéis ganham um pouco mais: vinte e tantos mil reais.
Com que cara eu fico quando o sujeito acaba recebendo uma gorjeta
qualquer para não multar? Ele ganha pouquíssimo. É evidente que há
algo errado. Há uma grande distância entre o topo e a base.
A segunda coisa é a estrutura funcional, ponto interessantíssimo.
Na estrutura funcional, só se considera o homem unidimensional.
Ele é Sargento, eu, atendente e tenho de obedecer-lhe. Ele é visto
como Sargento, mas é músico, psicólogo ou economista, e não um
Sargento besta que tem de fazer as coisas. O potencial humano não
é trabalhado.
Essa idéia veio de uma experiência que vivi. Fui ao Corpo de
Bombeiros do Distrito Federal visitar uma pessoa. Sempre entro
onde estão os praças, e isso causa uma grande confusão. Nessa
visita encontrei um sujeito consertando um fio elétrico. Conversei
com ele e senti que possuía um nível vocabular de construção
diferente. Chamaram-me para entrar e, na volta, falei novamente
com ele. Perguntei quem ele era, e respondeu-me que era Major.
Perguntei qual era a sua formação. Ele disse que era doutor em
eletrônica pelo ITA, e estava consertando fios. Então, chamei-o, e
ele fez toda a informatização do Distrito Federal.
A hierarquia impessoal unívoca não consegue perceber as outras
riquezas das pessoas. Além disso, o investimento é completamente
distorcido: compra-se o que não precisa e falta o que precisa. No
Rio de Janeiro compram carros de combate que não conseguem andar
nem dois metros e meio na subida do morro. São completamente
inadequados, mas dão grande “status”. É uma questão de ponderação.
Tenho alguns encaminhamentos para discussão. Gostaria de falar
mais tempo, mas, com esses encaminhamentos, vocês me superarão.
Como construir um processo de reeducação contínua de diagnóstico
que não seja espasmódico, feito somente quando as coisas
acontecem? Em segundo lugar, como fazermos uma formação única,
multidisciplinar na questão da justiça criminal? É preciso que
haja uma só formação e, depois, que sejam consideradas as
peculiaridades regionais. Converso com um sujeito do Piauí, um de
Pernambuco, um de Minas e um de Brasília, e todos têm as mesmas
concepções básicas de segurança, as mesmas concepções técnicas
mínimas. Como é que se estabelece um piso salarial nacional? São
lutas que precisam ser travadas.
Como estruturarmos experimentos de participação cidadã que não
sejam aparelhos de políticos?
Ao mencionarmos novas políticas, é interessantíssimo ouvirmos
alguém explicar que são políticas do Secretário tal, do Governador
tal. Isso é feudo. Outra questão diz respeito à maneira de
trabalharmos, constantemente, a atualização científica e
tecnológica com centros de pesquisa. Enquanto isso for notícia,
não está sendo feito: aconteceu no Rio, em São Paulo, no Distrito
Federal e em Belo Horizonte. Deve ser algo normal.
Outro problema é lidarmos com seres interinstitucionais:
Promotores, magistrados, cidadãos, policiais militares e civis. Às
vezes, morremos de rir de algumas coisas, mas não sabemos
exatamente o que são. Por exemplo: bombeiros e Defesa Civil. Quem
é quem? São os bombeiros que assumem a Defesa Civil, mas quem
chefia a Defesa Civil é um bombeiro? Onde fica a perícia? É do
Judiciário? Do Ministério Público? Da polícia?
Existem certos ranços operacionais, como o inquérito. Foi dito
que, conforme pesquisa, cerca de 9,5% dos casos são resolvidos e
encaminhados para inquérito policial. No Rio, 2% vão para decisão
final. Os outros conflitos, evidentemente, são resolvidos no pau.
Evidentemente, são resolvidos na injustiça. Evidentemente, servem
apenas para reiterar as formas de dominação.
Outro fato é um fundo efetivo. Todos dizem que segurança pública
é prioridade. O “Diário Oficial” é um lugar lindo para lermos
isso. Embora chatíssimo, é muito bom. Por exemplo, Senaspe, 22 de
agosto. Desde janeiro, não recebe nenhum tostão. Aí dizem que é
prioridade de governo o trato com a segurança pública. Às vezes,
ocorrem distorções: dão dinheiro para quem não precisa, mas quem
precisa não o recebe. Basta lermos o “Diário Oficial”, que é
identificador de vários fatos.
A diversificação das penas é uma questão importante. Cerca de 90%
da população carcerária não deveria estar em prisões. Isso se
aplica àqueles que, efetivamente, são um perigo para a sociedade.
Existem outras formas de punição. Parece que nascemos com o gene
da privação da liberdade - que, aliás, é uma pena novíssima, de
1814, do Código Penal da França - e com o gene da multa. Será que
não existem outras formas de punição? A diversificação das penas é
fundamental. Nessas prisões horrorosas, que são grandes cidades
prisionais, como Carandiru e Bangu, todos os presos são colocados
juntos, com várias gradações de penalidades. Lá, fazem pós-
graduação em criminalidade, como foi dito aqui.
Lembrei-me de um fato interessante: Franco Basaglia, responsável
pela saúde pública italiana, baixou uma portaria estabelecendo que
todos os loucos deveriam ser soltos. Isso caiu como uma bomba,
seria o fim da Itália. A ordem foi cumprida, soltaram todos os
loucos. Cerca de 11% dos loucos voltaram para tratamento
ambulatorial. Os loucos estavam fora, na família dele, mas isso é
outro problema que não discutiremos agora.
Citei esse caso para mostrar a vocês que existem penas
alternativas. Vocês julgam que as prisões de Georgina e de Lalau
significam grandes penas para eles? A maior pena seria confiscar o
dinheiro deles. O órgão mais sensível desses senhores é o bolso.
Alegam que o ex-Juiz Lalau está preso. Sim, está preso em sua
casa, que é muito bonita, tomando uísque. Existem penas em vista
do tipo de delinqüente e da natureza da delinqüência.
É preciso que trabalhemos em prol da vivência dos direitos
fundamentais. Tenho visto no Brasil uma grande jogada esquisita e
ruim. Por exemplo, a polícia tal possui um curso de direitos
humanos. Criam uma cadeira de direitos humanos e colocam uma anta
dando aulas.
E aí aquilo é um negócio chatíssimo, sem nenhuma significação.
Como trabalhar em termos dos direitos fundamentais? Com vídeos,
mostrando situações concretas, possibilidades de tratamento,
alternativas de ação. Direitos fundamentais se aprendem com “case
histories”, olhando como são as coisas. Aprendem-se com policiais
militares ensinando policiais militares, policiais civis ensinando
policiais civis, Juízes ensinando Juízes, porque há Juiz que não
sabe bem o que é isso. Sou adepto do Darcy Arruda Miranda, um
grande Procurador, tão bom que foi cassado pela Revolução. Ele
dizia que todo Promotor deve fazer o concurso e passar, dentro dos
cânones normais. Antes de tomar posse, deve ficar preso por uns 10
dias, para saber para onde vai mandar seus denunciados. Aí ficará
sabendo como é o quadro. Ele dizia isso, estou repetindo.
Para terminar, a questão da inteligência, que é uma grande
bobagem no Brasil. Temos problemas com a inteligência,
primeiramente em virtude de um ranço do golpe de 1964, que se
tornou denuncismo, que se tornou chantagem. Em segundo lugar,
temos uma visão de inteligência que trabalha com informes, e não
com informação. E não existe analista de alto nível para conferir
uma significação real aos dados levantados. Com isso, quando se
chega lá, na ponta, está mal-informado, e a ação policial e a do
sistema são ruins. Eram essas coisas que queria dizer, perdoem-me
por ter ultrapassado um pouco o tempo. Um abraço.