Pronunciamentos

ROBERTO ARMANDO RAMOS DE AGUIAR, Professor de Filosofia do Direito da Universidade de Brasília - UNB.

Discurso

Comenta o tema: "Administração de recursos humanos do sistema de justiça criminal".
Reunião 32ª reunião ESPECIAL
Legislatura 15ª legislatura, 4ª seção legislativa ORDINÁRIA
Publicação Diário do Legislativo em 13/09/2006
Página 32, Coluna 2
Evento Seminário Legislativo: "Segurança para todos - Propostas para uma Sociedade mais segura".
Assunto SEGURANÇA PÚBLICA.

32ª REUNIÃO ESPECIAL DA 4ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 15ª LEGISLATURA, EM 22/8/2006 Palavras Sr. Roberto Armando Ramos de Aguiar Inicialmente, gostaria de agradecer a oportunidade de estar aqui. Tenho a impressão de que tenho uma vida mais ou menos esquizofrênica. Sou Professor de Filosofia do Direito e fui Secretário de Segurança do Distrito Federal e do Rio de Janeiro. A esquizofrenia é muito peculiar, o que de certa forma me dá uma certa angulação meio privilegiada com relação ao problema. Este encontro é muito importante. Primeiramente gostaria de trocar idéias com todos vocês para que nossa reflexão não caia nos riscos de uma sociedade de massa. Assustou-me o fato de, com os últimos acontecimentos de São Paulo, as pessoas correrem em nossa direção a cada vez que acontecia um arrufo maior. Foram dezenas de entrevistas, e eu dizia aos entrevistadores que, em alguns dias, como viria o campeonato de futebol, eles nos esqueceriam. E isso efetivamente aconteceu. Veio o segundo arrufo, e eu disse aos entrevistadores que, como viriam as eleições, eles nos esqueceriam novamente. Nossa sociedade é de espetáculo e leva-nos a reações espetaculares. Lembro-me do Prof. Adorno falando sobre o plano do Fernando Henrique. Quando foi apresentado, o Plano Nacional de Segurança Pública do Fernando Henrique tinha contradições gravíssimas. Foi elaborado depois do episódio do ônibus 174, quer dizer, a comoção geral deu origem ao plano, como se fosse uma espécie de lista telefônica de medidas muito complicadas. Uma das medidas determinava que deveriam ser iluminados todos os lugares onde houvesse possibilidade de crimes. Outra medida, do mesmo dia, dizia que seria feito blecaute em determinadas regiões por causa da falta de energia. Tudo estava absolutamente desarticulado, mas era uma resposta. Era a reação espasmódica. O Legislativo Federal reage assim. Diante de determinado acontecimento, pensa-se em diminuir a imputabilidade penal; diante de um outro fato, a idéia é o aumento da punibilidade de certos crimes. Se formos nessa lógica, logo os fetos serão imputáveis. Poderão sair diretamente para as penitenciárias. Algumas reações são absolutamente irracionais de uma sociedade medíocre, de um debate medíocre, em que as pessoas sempre perguntam as mesmas coisas e nunca fazem novas perguntas. O conhecimento não se faz com respostas, mas com perguntas novas. Todavia, não há perguntas novas. Precisamos sair de um segundo risco, de uma sociedade de mídia, de uma sociedade cuja democracia é estranha. Precisamos sair do Mito de Sísifo. Devemos lembrar-nos de que segurança pública é política de Estado, e não de governo. No Brasil, alguém do partido X faz uma gestão. Havendo sucessão, a primeira coisa que o sucessor faz é não analisar o que o gestor anterior fez de bom ou de mal. O novo gestor procura destruir tudo e dar outra personalidade àquela administração. Lembro-me de que o Dr. Herbert falava de preço. Em termos de custos, isso é um desespero. Parece que a pedra sobe até um determinado ponto do morro, depois cai, e tudo começa novamente. Tudo isso é absolutamente irracional. O terceiro ponto refere-se ao espetáculo. Tornamos a segurança pública um problema de espetáculo. Aliás, o espetáculo domina nossa sociedade. Eleição virou espetáculo. As pessoas que votaram em Collor são capazes de dizer o que Collor pensava, ou pior, se pensava? Collor foi vendido como um produto, como uma mercadoria. Tudo é espetáculo. Se eu perguntar qual a cronologia dos escândalos Collor, ninguém saberá responder. Alguns de seus atos foram punidos? Ninguém saberá responder também a essa pergunta, embora as pessoas aqui presentes sejam altamente informadas. Somos a elite. Isso significa que nos dobramos à sociedade do espetáculo. Podemos refletir sobre essa sociedade e encontrar soluções absolutamente inadequadas. Por último, falaremos sobre a retórica vazia, que é interessantíssima. Às vezes, analisando um discurso de propositura, se fizermos um “copy desk”, o muito que sobrará é uma palavra. O resto é advérbio, conjunção, exclamação e “mise-en- scène”. Parece-me muito importante refletirmos sobre esse risco. Quando começamos a falar sobre segurança, precisamos fugir desse tipo de sociedade que nos impõe um tipo de conduta e uma certa alienação. Trabalhar alienadamente com segurança pública significa um risco imenso. Minha primeira afirmação, atendo-me ao tema e ao tempo, é que não temos um sistema nacional de segurança pública, não temos um sistema criminal integrado, não temos nada. O que temos é um feudalismo de instituições, com seus senhores feudais, suas homenagens e suas hierarquias, suas suseranias e vassalagens - isso é o real - incomunicáveis. Se em Minas é diferente, ótimo, mas o que vejo no Brasil é uma incomunicabilidade. Quando era Secretário no Distrito Federal, fizemos um curso para as corporações de oficiais superiores. Estavam lá a PM, a Polícia Civil e o Corpo de Bombeiros Militar. Aliás, pergunto: por que Corpo de Bombeiros Militar? Como se fazer combate sanitário ao fogo fosse um ato militar. Muito bem. A primeira coisa que descobrimos, quando começamos a trabalhar, foi que não havia um conceito de segurança pública comum. Como trabalhar instituições em um mesmo sistema quando pensam diferentemente? Em segundo lugar, não se conheciam operacionalmente, isto é, quando a Polícia Civil descobria alguma coisa e precisava chamar a PM, quem chamava? Só 190? E vice-versa. E quando necessito de uma investigação? Policiais militares pisavam a cena do crime, como se fossem elefantes. Acabavam-se todos os vestígios, porque não sabem como a Polícia Civil funciona. São absolutamente incomunicáveis. Pior ainda é a questão da informatização. Todo mundo se diz informatizado. Se perguntamos à PM, informatizada; à Polícia Civil, informatizada. Mas é o mesmo sistema? Não, porque informação é poder. Então, uso um tipo de “software”, e a outra trabalha com outro tipo de “software”. Escondemos nossas informações. É simples, basta fazer camadas de informação. Mas não. Lembro-me que em Brasília havia um setor, muito cheio de informações, que eu queria informatizar, para que outras pessoas tivessem acesso. O escrivão falou que não podia, que informatização era coisa do demônio, que ele tinha tudo na cabeça. Então fiz um ofício que ficou famoso em Brasília, solicitando que ele me informasse a que centro espírita a Secretaria deveria dirigir-se no caso de seu falecimento, para haurir aquelas informações. Ficou tão ridículo que ele acabou cedendo. Isso é para mostrar como há esse fechamento, essa incomunicabilidade. Então, não há um sistema. Olhando o Judiciário, os Juízes não são treinados e educados para trabalhar com gente, mas com papel. Quando o Juiz vai tratar do caso, o criminoso já está limpinho, a vítima já não está acreditando muito na punibilidade, muito menos no ressarcimento. E aí ele trabalha com uma realidade que não é a efetiva. Aqui em Minas Gerais houve uma experiência da aplicação da Lei nº 9.099, de acordo com a qual as coisas deveriam ser resolvidas em 24 horas. Em determinado local estava a Polícia Militar, a Polícia Civil, o Ministério Público e o Juiz. Quem não agüentou foram os Juízes, que começaram a se sentir mal. Eles nunca tinham visto gente. O criminoso que recém cometeu o crime é um camarada com uma atitude esquisitíssima. A vítima, indignada, porque um bem jurídico foi lesado. Isso fazia mal. Eles começaram a pular fora do jogo e acabaram frustrando uma experiência muito interessante. No Ministério Público acontece a mesma coisa. O problema do Ministério Público é interessantíssimo. Houve alguns momentos em que a Secretaria de Segurança precisava do Ministério Público, mas ainda há certa mentalidade de que criminoso tem horário. Quando pegávamos um criminoso em cujo interrogatório podíamos, eventualmente, usar violência, precisávamos trabalhar com direitos humanos, para garantir que não fossem judiados. Então, precisávamos chamar o Ministério Público, que estava dormindo. Havia uma equipe galopando atrás de algum Promotor que tivesse a honra de olhar para um pobre policial para ver o que estava acontecendo. Para ele, os criminosos funcionavam das 8 horas às 18 horas, com folga para o almoço. São importantes o conhecimento entre as corporações e a adequação operacional. Mas acho muito importante, e estou até orientando uma dissertação nesse sentido, que a maioria das participações populares nos conselhos comunitários de segurança são formas mais politizadas no sentido estreito da palavra. Um conselho comunitário, quando começa a crescer, lança dois candidatos a Deputado ou Vereador. No fundo, ainda não achamos uma forma efetivamente democrática de participação da cidadania. A coisa é tão louca que as Ouvidorias, que seriam para fiscalizar, têm que pedir ao fiscalizado para investigar o caso. Elas não têm instrumentos próprios para desvendar as questões. Isso é muito claro. Temos que sair da retórica para colocar a mão pesada sobre isso. Não “pesada” no sentido imbecil da violência, mas “pesada” em termos de uma democracia cidadã efetiva. Também se fala muito, e o próprio Adorno falava com muita propriedade, que, no fundo, a questão da legalidade é um pouco mais complicada do que se pensa. Nos problemas de legalidade com relação à segurança pública, temos a legalidade substancial. O nosso mundo estatal é um mundo “démodé”. As coisas novas não mordem, por exemplo, os delitos eletrônicos: todos os dias, os bancos são vítimas desses delitos. Arrastam-se no Congresso diversos projetos, e nada acontece. A cabeça dele é “belle époque”: parou na máquina a vapor. Essa questão de “telemarketing”, de formas de utilização de artefatos eletrônicos para cometer crimes, não está na cabeça deles. Vejam o crime organizado. É uma coisa bruta, mas as coisas brutas no Brasil precisam ser ditas. Os criminosos estão mais organizados do que as polícias. Estão vigiando os presídios para que os celulares não entrem. Celular tem perna? O problema é humano. Mas os criminosos estão usando o computador, já não precisam do celular. Outra coisa importante é que não sabemos como eles se organizam. O que é a lavagem de dinheiro? Para muita gente, lavagem de dinheiro é coisa de lavanderia. Ainda não perceberam a importância desse escoadouro de todo o crime dito organizado. Há também os crimes relativos ao colarinho- branco. Agora existem novos crimes ligados à bioética. Há algumas perguntas idiotas que podemos fazer, como, por exemplo, se as sementes de fertilização programada não são o velho 171? Isso é estelionato. Compra-se a semente, faz-se uma plantação linda, mas, quando se pega a semente para plantar novamente, ela está estéril. Aí se compra outra partida de semente. Isso não tem o jeitão de 171? Atualmente, tudo parece muito natural. Banalizamos, porque temos medo. O novo é muito rápido. Temos uma sociedade marcada pela velocidade. Não dá para ser devagar. Outro aspecto é a questão procedimental, muito bem explicada pelo Dr. Herbert. Temos que sentir que a legalidade funciona. O direito caminha, hoje, para três grandes movimentos: a deslegalização, a desformalização e a descentralização. Esses são os três movimentos mundiais do direito, mas realizamos o inverso. Cada vez mais nos concentramos e nos normatizamos, acreditando que a lei modifica o mundo, quando, na verdade, ocorre justamente o contrário: o mundo modifica a lei. Quando surge um problema, as pessoas dizem que temos de criar uma lei que o resolva, mas o problema é social, econômico, político e relacional! O terceiro movimento diz respeito às legislações corporativas. O regulamento disciplinar da Polícia Militar do Rio de Janeiro é de 1968, ano muito problemático. Esse regulamento foi baseado em um teórico muito importante chamado D. João VI. Trata-se de algo com muito ranço. Tivemos de trabalhar muito para quebrar os tabus e as resistências existentes no interior da Polícia Militar e alterar esse regulamento. Como o período de governo era muito curto, isso teve de ser feito por decreto, e não por lei. Quando mudou o governo, a D. Rosinha voltou a adotar o regulamento de D. João VI. As legislações corporativas são atrasadas. Isso explica por que o policial é tão ruim quando se trata de direitos humanos. Os direitos humanos dos policiais não são respeitados por esse regulamento. Eles não sabem o que é isso e acreditam que o cidadão deva ser malhado como ele é para conseguirem o que diziam os jesuítas: obediência de cadáver. O cadáver é posto em qualquer canto e fica do jeito que tem de ficar, sem reclamar. Fico me lembrando das penas daquele vigente regulamento disciplinar: cinco dias de prisão para aqueles que estiverem com uniforme sujo; dez dias para aquele que se apresentar com o cabelo malcortado; e nenhum dia para aquele que matar alguém. A distorção é total. Finalmente, há a questão técnica, ou seja, problemas de legalidade técnica. No fundo, o negócio é assustador. Não vejo estudos de estratégia e tática nas academias. Parece-me que a educação brasileira eliminou os pensadores da estratégia e da tática. Há trabalhos com ótimos princípios e boas finalidades, mas como passaremos dos princípios à ação? Todos os pensadores táticos e estratégicos foram jogados fora. Os sofistas sofismam. Maquiavel é maquiavélico. Clausewitz é um militarista alemão. Mas são jogados fora, e todo o mundo fica abestalhado, sem capacidade para se articular estrategicamente. Em conversas com as corporações, tenho apertado os policiais, para saber qual a diferença entre tática e estratégia. Fizemos isso no Rio, pois trabalham todos os dias enfrentando problemas concretos. São impressionantes as normas técnicas. Gostaria de trabalhar na segurança privada, para poder usar todas as armas. Os policiais militares não podem, porque têm de respeitar os limites. A segurança particular faz contrabando de armas. De acordo com a lei, não há nenhum limite para isso. Pode-se levar uma ponto- trinta ou um canhão em um carro blindado. Há um medo militar por parte da própria Polícia Militar, que é muito boba, pois obedece a todos os dados criados, por terem medo de que possam crescer. Então, controlam as suas armas, mas não controlam as da segurança privada. Tecnicamente verificam o uso de armas particulares e o de armas inadequadas, a oportunidade do seu uso, como utilizar e em que circunstância. Um camarada no meio de um monte de gente pode tirar uma pistola 9mm e atirar; no entanto essa arma, somente com um tiro, pode matar várias pessoas. A normatividade está podre, velha e inadequada, e não temos coragem de trabalhar. Outros problemas são os de formação. Formar-se em educação física, para ser bem forte, não é tudo. Uma anta bem-formada fisicamente nem sempre é boa. Que formação é importante para o policial? Além da formação profissional, uma formação cidadã e humana. O policial trabalha com gente. É um servidor da cidadania. É interessante observar que essa formação é assimétrica: “Sou policial, e ele é paisano”. Isso lhe dá o direito de fazer coisas esquisitas com esse paisano, ou seja, aumentar a violência, não saber abordar no famoso “baculejo”. A alternativa é: formação, só junto com universidade, centros de pesquisa, cidadania e partes técnicas, e - atenção - com a gente olhando, porque há quem ensine muito mal. Há locais no Brasil em que o policial militar é treinado com cinco tiros e recebe, de cara, uma pistola ponto-quarenta. Ele vem fazer alvo na gente, não é? Há também a necessidade de atualização. O sistema de segurança - Juízes, Promotores, cidadãos, policiais - precisa estar atento ao mundo. Estamos num mundo estranhíssimo. Ninguém percebeu isso ainda? É a primeira vez na história do mundo que vivemos o imperialismo de um só país. Esse imperialismo, querendo combater o terrorismo, tirou todas as garantias dos advogados e das convenções de guerra - haja vista Guantânamo. E esse negócio está vindo para cá. Não contem para ninguém, mas o terrorismo está chegando aqui, ou vocês pensam que o PCC faz isso só de brincadeira? Logo, logo acontecerá o que sempre se faz quando há golpe de estado neste país: Getúlio tirou o “habeas corpus” para crimes políticos; os militares, em 1964, tiraram o “habeas corpus” para crimes políticos. Começam a retirar direitos. Precisamos ficar atentos a isso. Digo que temos de nos atualizar com relação ao mundo, porque grande parte de vocês lutou para a reconquista da democracia no Brasil. Os adversários eram os militares. Agora temos uma democracia que está ameaçada pela delinqüência. Já há uma infiltração nos Estados. Rondônia e Espírito Santo são um exemplo. E essa corrupção desenfreada? Aliás, é um jogo interessante. Recebemos tantas informações que nossa cabeça “pira”. Quem é o cara que ontem estava envolvido em escândalo? Não sabemos mais, porque tantos outros já vieram depois dele... O sujeito sai, assim, no anonimato. Parece-me importante fazer uma manutenção de direitos, uma manutenção da democracia. Internacionalmente, as coisas estão assim, e, nacionalmente, estão surgindo novas demandas para as quais não estamos preparados. Faz-se necessário também atualizar a técnica. Quanto mais ciência, menos violência. A tortura diminui nas polícias à medida que se adotam procedimentos científicos de investigação. Uma análise de microvestígios é capaz de dar mais elementos do que um choque no pau-de-arara, sem falar nos aspectos de crueldade, desumanidade, diminuição e destruição do outro que isso implica. O terceiro problema diz respeito à gestão. Pessoal, como é amadora a gestão! Na maioria das corporações brasileiras e dos órgãos estatais, podemos tirar 50% dos funcionários que não acontece nada. Há uma hipertrofia da atividade-meio. O Distrito Federal promoveu um “upgrade” quando tirou todos os PMs que estavam assentadinhos fazendo atividades burocráticas, incluindo o cara que carregava a malinha do Coronel. Ora, tirem esses policiais desses lugares e os coloquem na rua para que possam exercer suas funções fundamentais. É preciso haver um choque de gestão, mas de gestão moderna, em rede, com investimentos racionais. São impressionantes os “gadgets” que se nos oferecem: armas com mira telescópica, que aos domingos fazem feijoada e coisa e tal. Caríssimas. Precisa-se da arma? Não se precisa, mas dá “status”. E os Governadores fazem o mesmo. Como segurança tem um jeitão de esgoto, não aparece, tudo fica debaixo do pano. E o que acontece? Dizem: “Estou investindo na segurança”. Aí compram viaturas e armas e aumentam o contingente. Os carros desfilam pelas ruas buzinando e com as luzes acesas, nas operações Arara e Vagalume. E dizem: “O Governador comprou aqueles carros”. Só não dizem que os carros são completamente inadequados. No Brasil, não há fábrica de carros para polícia. A porta abre 60º, e o policial, ao sair, pode ser morto. Além disso, os amortecedores não funcionam. Bandidos colocam lombadas nas ruas, e os carros param na primeira perseguição. Começa tudo bonito, entretanto dez dias depois 30% dos carros já estão abaixados, pois não agüentam. São visões retóricas, ultrapassadas. Temos de pensar como investir. O grande investimento fundamental e inicial é a educação permanente para todos - Juízes, Promotores e membros das corporações. Essa educação tem de possibilitar um diálogo entre eles que não seja assimétrico, e sim horizontal. No Brasil, há uma cultura: eu, advogado, quando vou ao encontro do Dr. Herbert, que é Juiz, chego como um ratinho, falando fininho. Aliás, ele fica no alto, num lugar que parece um palco. Há dois mil anos, aprendemos que o processo é um ato “triumpersonarum”, em que três pessoas horizontais são as partes interessadas - às vezes, desinteressadas. Como tirar as assimetrias? Como tirar a assimetria do policial que chega ao conselho comunitário de segurança e diz que é chefe lá? Chefe coisa nenhuma. As questões têm de sair dos problemas efetivos por que passa a sociedade. Quer dizer, há uma série de cacoetes medíocres. Em Minas, lugar onde as coisas acontecem - gosto daqui por isso, sempre venho aqui - e as novidades são testadas, peço-lhes: pelo amor de Deus, pensem e saiam do preconceito. Há problema de atualização contra a emergência do novo e quanto à velocidade do mundo. Os mais velhos - aqui há muitos jovens -, em 1989, ligaram a televisão e certamente ficaram assustadíssimos ao verem a bandeira soviética descer do Kremlin e a russa subir, sem ninguém dizer nada. Nenhum cientista político havia dito que aquele negócio implodiria. Com isso, percebe-se a velocidade das mudanças políticas. Ao ligarem novamente a televisão, viram um rato fosforescente, fruto de célula germinativa de rato com fragmento de DNA de anêmona. O que é isso? O que aconteceu? E dissemos que era bestialidade misturar espécies. Veio a clonagem. Se olharmos a clonagem do ponto de vista do direito da sucessão, o que é o clone com relação ao clonado? Filho, irmão gêmeo? Então, como fica a herança, se forem ricos? Isso muda toda a concepção das coisas mais insignificantes. Outro problema é a questão estrutural. A hierarquia e disciplina das corporações nem sempre são eficazes. A hierarquia só faz sentido se for teológica, isto é, se se organiza determinado tipo de instituição para uma finalidade. Portanto, posso hierarquizá- la. No Brasil, a Polícia Militar possui um monte de patentes, alocações, que servem para uma guerra clássica. A diferença entre 1º, 2º e 3º Sargentos era utilizada por Napoleão. Já na Batalha de Austerlitz, Napoleão reclamava que havia dividido demais; e PM não fará batalha como a de Austerlitz, pois tem outra finalidade. O segundo aspecto: haverá hierarquia e disciplina não porque há baixos vencimentos ou soldos, mas porque a distância entre o topo e a base é enorme, e acaba-se por não se aceitarem ordens de uma pessoa que explora. No Brasil, há um Estado - não citarei seu nome para não pichar, apesar de ter muita vontade - em que os soldados ganham salário mínimo. E isso foi conseguido por meio de liminar. Quer dizer, ainda podem perder, pois trata-se de uma decisão provisória. Lá os Coronéis ganham um pouco mais: vinte e tantos mil reais. Com que cara eu fico quando o sujeito acaba recebendo uma gorjeta qualquer para não multar? Ele ganha pouquíssimo. É evidente que há algo errado. Há uma grande distância entre o topo e a base. A segunda coisa é a estrutura funcional, ponto interessantíssimo. Na estrutura funcional, só se considera o homem unidimensional. Ele é Sargento, eu, atendente e tenho de obedecer-lhe. Ele é visto como Sargento, mas é músico, psicólogo ou economista, e não um Sargento besta que tem de fazer as coisas. O potencial humano não é trabalhado. Essa idéia veio de uma experiência que vivi. Fui ao Corpo de Bombeiros do Distrito Federal visitar uma pessoa. Sempre entro onde estão os praças, e isso causa uma grande confusão. Nessa visita encontrei um sujeito consertando um fio elétrico. Conversei com ele e senti que possuía um nível vocabular de construção diferente. Chamaram-me para entrar e, na volta, falei novamente com ele. Perguntei quem ele era, e respondeu-me que era Major. Perguntei qual era a sua formação. Ele disse que era doutor em eletrônica pelo ITA, e estava consertando fios. Então, chamei-o, e ele fez toda a informatização do Distrito Federal. A hierarquia impessoal unívoca não consegue perceber as outras riquezas das pessoas. Além disso, o investimento é completamente distorcido: compra-se o que não precisa e falta o que precisa. No Rio de Janeiro compram carros de combate que não conseguem andar nem dois metros e meio na subida do morro. São completamente inadequados, mas dão grande “status”. É uma questão de ponderação. Tenho alguns encaminhamentos para discussão. Gostaria de falar mais tempo, mas, com esses encaminhamentos, vocês me superarão. Como construir um processo de reeducação contínua de diagnóstico que não seja espasmódico, feito somente quando as coisas acontecem? Em segundo lugar, como fazermos uma formação única, multidisciplinar na questão da justiça criminal? É preciso que haja uma só formação e, depois, que sejam consideradas as peculiaridades regionais. Converso com um sujeito do Piauí, um de Pernambuco, um de Minas e um de Brasília, e todos têm as mesmas concepções básicas de segurança, as mesmas concepções técnicas mínimas. Como é que se estabelece um piso salarial nacional? São lutas que precisam ser travadas. Como estruturarmos experimentos de participação cidadã que não sejam aparelhos de políticos? Ao mencionarmos novas políticas, é interessantíssimo ouvirmos alguém explicar que são políticas do Secretário tal, do Governador tal. Isso é feudo. Outra questão diz respeito à maneira de trabalharmos, constantemente, a atualização científica e tecnológica com centros de pesquisa. Enquanto isso for notícia, não está sendo feito: aconteceu no Rio, em São Paulo, no Distrito Federal e em Belo Horizonte. Deve ser algo normal. Outro problema é lidarmos com seres interinstitucionais: Promotores, magistrados, cidadãos, policiais militares e civis. Às vezes, morremos de rir de algumas coisas, mas não sabemos exatamente o que são. Por exemplo: bombeiros e Defesa Civil. Quem é quem? São os bombeiros que assumem a Defesa Civil, mas quem chefia a Defesa Civil é um bombeiro? Onde fica a perícia? É do Judiciário? Do Ministério Público? Da polícia? Existem certos ranços operacionais, como o inquérito. Foi dito que, conforme pesquisa, cerca de 9,5% dos casos são resolvidos e encaminhados para inquérito policial. No Rio, 2% vão para decisão final. Os outros conflitos, evidentemente, são resolvidos no pau. Evidentemente, são resolvidos na injustiça. Evidentemente, servem apenas para reiterar as formas de dominação. Outro fato é um fundo efetivo. Todos dizem que segurança pública é prioridade. O “Diário Oficial” é um lugar lindo para lermos isso. Embora chatíssimo, é muito bom. Por exemplo, Senaspe, 22 de agosto. Desde janeiro, não recebe nenhum tostão. Aí dizem que é prioridade de governo o trato com a segurança pública. Às vezes, ocorrem distorções: dão dinheiro para quem não precisa, mas quem precisa não o recebe. Basta lermos o “Diário Oficial”, que é identificador de vários fatos. A diversificação das penas é uma questão importante. Cerca de 90% da população carcerária não deveria estar em prisões. Isso se aplica àqueles que, efetivamente, são um perigo para a sociedade. Existem outras formas de punição. Parece que nascemos com o gene da privação da liberdade - que, aliás, é uma pena novíssima, de 1814, do Código Penal da França - e com o gene da multa. Será que não existem outras formas de punição? A diversificação das penas é fundamental. Nessas prisões horrorosas, que são grandes cidades prisionais, como Carandiru e Bangu, todos os presos são colocados juntos, com várias gradações de penalidades. Lá, fazem pós- graduação em criminalidade, como foi dito aqui. Lembrei-me de um fato interessante: Franco Basaglia, responsável pela saúde pública italiana, baixou uma portaria estabelecendo que todos os loucos deveriam ser soltos. Isso caiu como uma bomba, seria o fim da Itália. A ordem foi cumprida, soltaram todos os loucos. Cerca de 11% dos loucos voltaram para tratamento ambulatorial. Os loucos estavam fora, na família dele, mas isso é outro problema que não discutiremos agora. Citei esse caso para mostrar a vocês que existem penas alternativas. Vocês julgam que as prisões de Georgina e de Lalau significam grandes penas para eles? A maior pena seria confiscar o dinheiro deles. O órgão mais sensível desses senhores é o bolso. Alegam que o ex-Juiz Lalau está preso. Sim, está preso em sua casa, que é muito bonita, tomando uísque. Existem penas em vista do tipo de delinqüente e da natureza da delinqüência. É preciso que trabalhemos em prol da vivência dos direitos fundamentais. Tenho visto no Brasil uma grande jogada esquisita e ruim. Por exemplo, a polícia tal possui um curso de direitos humanos. Criam uma cadeira de direitos humanos e colocam uma anta dando aulas. E aí aquilo é um negócio chatíssimo, sem nenhuma significação. Como trabalhar em termos dos direitos fundamentais? Com vídeos, mostrando situações concretas, possibilidades de tratamento, alternativas de ação. Direitos fundamentais se aprendem com “case histories”, olhando como são as coisas. Aprendem-se com policiais militares ensinando policiais militares, policiais civis ensinando policiais civis, Juízes ensinando Juízes, porque há Juiz que não sabe bem o que é isso. Sou adepto do Darcy Arruda Miranda, um grande Procurador, tão bom que foi cassado pela Revolução. Ele dizia que todo Promotor deve fazer o concurso e passar, dentro dos cânones normais. Antes de tomar posse, deve ficar preso por uns 10 dias, para saber para onde vai mandar seus denunciados. Aí ficará sabendo como é o quadro. Ele dizia isso, estou repetindo. Para terminar, a questão da inteligência, que é uma grande bobagem no Brasil. Temos problemas com a inteligência, primeiramente em virtude de um ranço do golpe de 1964, que se tornou denuncismo, que se tornou chantagem. Em segundo lugar, temos uma visão de inteligência que trabalha com informes, e não com informação. E não existe analista de alto nível para conferir uma significação real aos dados levantados. Com isso, quando se chega lá, na ponta, está mal-informado, e a ação policial e a do sistema são ruins. Eram essas coisas que queria dizer, perdoem-me por ter ultrapassado um pouco o tempo. Um abraço.