A Comissão de Direitos Humanos recebeu denúncias de representantes de quatro comunidades de Betim contra a prefeitura local
Juliana denuncia troca de 50 mil metros quadrados por duas carrocerias e uma cabine de caminhão
Alexandre:
Grace Kelly cobra que prefeito edite decreto extinguindo de vez ameaça de despejo
Frei Gilvander diz que prefeito empresário uso poder publico para beneficiar seus semelhantes

Betim dá preferência a empreendimentos em vez de moradias

Segundo participantes de audiência, prefeitura age como “Robin Hood às avessas”, tirando dos pobres para dar aos ricos.

28/09/2022 - 16:00

Um Robin Hood às avessas, que retira o direito à moradia digna dos pobres para beneficiar os ricos, sobretudo os empresários. A definição, feita por um dos participantes de audiência pública realizada na noite desta terça-feira (27/9/22) pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), foi bastante repetida e resumiu o tom das críticas feitas à política habitacional, ou na prática à ausência dela, da Prefeitura de Betim, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), onde o debate foi realizado.

Consulte o resultado da reunião.

Nas denúncias feitas por representantes de quatro comunidades estão relatos que vão desde a falta de negociação prévia e transparência nos atos da administração pública municipal, passando por truculência, até a prática de diversos crimes, conforme resumiu a deputada Andréia de Jesus (PT), que é a presidenta da comissão e autora do requerimento para a realização da audiência.

“Peculato, tráfico de influência, usurpação da função pública, só para citar alguns crimes graves previstos no Código Penal. São crimes pra sair algemado, como esses que adoram prender pobres e pretos gostam de dizer”, afirmou Andréia de Jesus.

“Providências precisam ser tomadas e se não forem vamos levar tudo o que foi dito aqui para instâncias superiores. O prefeito Vittorio Medioli desrespeitou inclusive ordem judicial. O que acontece se o cidadão comum desrespeita uma ordem de um desembargador? O prefeito fez isso e nada aconteceu”, lamentou.

Cobrados por maior sensibilidade e empenho na mediação dos conflitos habitacionais na cidade, o Tribunal de Justiça (TJMG) e o Ministério Público (MPMG) de Minas Gerais, além da Câmara Municipal de Betim, apesar de convidados, não mandaram representantes ao debate.

O secretário municipal de Ordenamento Territorial e Habitação da Prefeitura de Betim, Marco Túlio de Freitas Rezende Lara, chegou a confirmar presença na audiência e também não compareceu.

Advogado amigo do prefeito teria empreendimento beneficiado

Segundo relato de Juliana de Fátima Vilela Silva, representante do Movimento Liderança Comunidade Cidade Verde, duas áreas nas imediações da Rua de Mizar, com mata, nascente e mais de 50 mil metros quadrados, avaliadas em R$ 19 milhões, estariam sendo doadas para uma fundação irregular e uma empresa.

Ambas seriam supostamente ligadas ao advogado Joabe Ribeiro da Costa e a doação teria contrapartidas que não chegariam a R$ 400 mil – duas carrocerias e uma cabine de caminhão, conforme consta do Projeto de Lei municipal 150/21, sancionado pelo prefeito na forma da Lei 6.933, do mesmo ano.

Segundo Juliana, o advogado é amigo pessoal do prefeito Vittorio Medioli e representaria a Prefeitura de Betim na cobrança de uma dívida de R$ 500 milhões contra a Construtora Andrade Gutierrez. Sob o pretexto da criação de uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), os moradores alegam que a área sediará uma área de eventos e de lazer.

Crime ambiental

Ainda de acordo com Juliana, todos os moradores zelam pela área verde, têm escritura e registro dos seus imóveis, situado em loteamento instalado em 1978, mas estão sendo pressionados, sob acusação de crime ambiental, a demolir muros de arrimo erguidos por eles próprios para dar mais segurança aos imóveis.

O projeto de doação foi aprovado na Câmara de Betim em 2021 e, diante dos protestos e da mobilização da comunidade local, os moradores, teriam sido pressionados pelos vereadores a desistir da causa. “Sofremos ameaça de alguns vereadores de que essa era uma luta difícil, contra pessoas influentes, e que deveríamos aceitar algum tipo de acordo. Mas não vamos desistir”, afirmou a líder comunitária.

Casas demolidas

Zélia Rodrigues da Silva, representante da Liderança do Beco Fagundes, no Bairro Jardim Terezópolis, também acusou a Prefeitura de Betim de “impor o terror” desde o final do ano passado contra cerca de 150 moradores do local, visando desocupar a área para ceder a empresários interessados em construir um shopping center que contaria até com um teleférico como atração.

Sob o pretexto de risco geológico após o desabamento de duas casas, que resultou em duas mortes, outras moradias teriam sido demolidas durante a madrugada, segundo ela, apesar de decisão da Justiça contra a medida.

“A área não serve para a gente morar mas para os empresários é excelente? Para o prefeito de Betim, nós não somos nada e isso é muito injusto. A gente só precisa de um lar para cuidar da nossa família”, afirmou Zélia, emocionada.

Em vez de quilombo urbano, um novo hotel

Segundo denúncia de participantes da audiência, nem mesmo os povos tradicionais teriam sido poupados da disposição da Prefeitura de Betim de repassar novas áreas a empresários.

No caso da Comunidade Família Araújo, primeira comunidade quilombola urbana identificada e autodeclarada em Betim, a ameaça de despejo que enfrentam desde 2017 é para que o terreno onde vivem há cerca de 40 anos no Bairro Jardim Brasília seja repassado a um empresário do ramo hoteleiro. Bem ao lado, já funciona um shopping center. A Comissão de Direitos Humanos da ALMG esteve na comunidade em maio deste ano para conhecer de perto a situação.

“Querem nos mandar para apartamentos de 40 metros quadrados no Bairro Citrolândia, que sempre alagam no período chuvoso. Os vereadores nos viraram as costas e na Prefeitura a mensagem é que, se a gente não sair por bem, vai sair pela força policial, e que depois o trator vai passar por cima de tudo”, contou Alexandre Santos Araújo, da Liderança do Quilombo Araújo.

“Mas com o apoio que recebemos estamos conquistando nosso reconhecimento e descobrindo nossos direitos de ficar na terra onde sempre plantamos e criamos nossos animais. Quando nos mudamos era tudo mato, a cidade cresceu e agora querem tomá-la da gente”, completou.

A deputada Andréia de Jesus definiu o caso como emblemático por não se tratar apenas da luta pela posse da terra, mas por uma reparação histórica.

Quase final feliz

Por fim, a luta travada pela Comunidade Pingo D ́Água, relatada na audiência e que parece estar perto do fim, serve de inspiração para quem defende a causa da moradia popular em Betim, a despeito das ameaças.

Marcada por vários fechamentos da BR-262 que margeia o bairro e até a ocupação da sede do Legislativo municipal por quatro dias, os moradores locais conseguiram neste ano a aprovação da lei que declara a área de interesse social para fins de regularização fundiária.

Mas não sem antes a ameaça de cumprimento de reintegração de posse em nome da Construtura MRV, que desenvolve um grande empreendimento imobiliário na região, após veto total do prefeito ao projeto, depois derrubado pelos vereadores.

Eles vivem lá desde a década de 1980 e o que começou como uma ocupação se transformou num bairro.

“São dezenas de casas construídas, temos coleta de lixo, crianças matriculadas que são levadas pelo ônibus escolar do município, até CEP reconhecido e agora queriam nos tirar dali?”, aponta Grace Kelly Soares Sousa, representante da Comunidade Pingo D ́Água.

Segundo ela, a mobilização vai continuar até que o prefeito Vittorio Medioli edite decreto regulamentando a medida e extinguindo de vez a ameaça de despejo.

Defensoria e advogados populares são última linha de defesa

Além da Comissão de Direitos Humanos, foram várias as manifestações de apoio à luta pela moradia durante a audiência pública. A defensora pública Cleide Aparecida Nepomuceno, que já atua em três dos casos citados, promete que o órgão também vai se mobilizar no caso da Cidade Verde, classificado por ela como igualmente grave.

“A mobilização e a organização são de fundamental importância porque, contra o poder público, a briga judicial às vezes não é suficiente para fazer valer a Constituição e a democracia”, advertiu.

“O poder público sistematicamente desconhece o direito das pessoas de morar com dignidade. Em Betim, não é diferente”, apontou o advogado Edson Rodrigues Gonçalves, que atua na cidade em nome da Rede Nacional de Advogados Populares (Renap).

Ele atua em parceria nos mesmos casos da Defensoria e corroborou todos os relatos feitos na audiência. “A Prefeitura tem doado terrenos a empresários com critérios subjetivos de acordo com os interesses do prefeito”, resumiu.

Deficit habitacional

O assessor da Comissão Pastoral da Terra de Minas Gerais, frei Gilvander Luis Moreira, o primeiro a apelidar o prefeito Vittorio Medioli de “Robin Hood às avessas”, acusou o chefe do Executivo municipal de Betim de usar o poder público para beneficiar seus semelhantes, os grandes empresários.

“No Beco Fagundes ele já fez o absurdo de anunciar a construção de um shopping que já tem até nome, Riccardo Medioli, do qual não sei nem o parentesco com ele”, criticou. O nome é uma homenagem ao pai do prefeito.

Segundo a coordenadora do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), Poliana de Souza Pereira Inácio, em Minas Gerais o deficit de moradias atinge cerca de 500 mil famílias, com 18 mil pessoas morando nas ruas, o que supera a população de mais de 450 cidades do Estado. “É um ato criminoso arrancar a casa da mão do povo para entregar na mão de gente rica. E esse prefeito nem em Betim mora”, afirmou.

Luta incessante

O presidente do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Betim, Camilo de Leles Mendes Campos, lembrou que algumas vitórias nessa área já foram conseguidas, mas sempre às custas de muita luta.

“Infelizmente temos um prefeito que até pode ser um bom empresário, mas é um péssimo prefeito. E como empresário ele prefere tirar dos pobres para dar para os ricos”, concluiu.