Debates Público Língua, Estado e Democracia foi realizado pela Comissão de Redação
Para Carla Viana (na tela), o preconceito em relação à língua tira a voz do indivíduo e enfraquece a democracia

Fortalecimento da democracia passa pela linguagem

Para especialistas, é preciso valorizar a diversidade e ter em mente que a língua é viva e deve atender aos falantes.

13/06/2022 - 18:24 - Atualizado em 14/06/2022 - 15:30

A democracia pressupõe não apenas valores e atitudes democráticos, mas também uma cultura democrática, que envolve questões linguísticas. Assim, o fortalecimento da democracia no Brasil dependeria, por exemplo, da redução do alto índice de analfabetos funcionais, bem como da valorização da diversidade. A língua é viva, dinâmica e muda rapidamente, pondo em xeque análises do que é certo e errado. Ela é fruto do uso e tem que atender aos falantes.

Essas foram as principais análises feitas pelos participantes do painel “A língua do Estado: entre a gramática e a democracia”, parte do Debate Público Língua, Estado e Democracia, realizado ao longo desta segunda-feira (13/6/22) pela Comissão de Redação da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). O evento foi realizado a requerimento do presidente da comissão, deputado Virgílio Guimarães (PT).

A necessidade de adequação da língua ao contexto foi destacada pela professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Carla Viana Coscarelli, doutora em Estudos Linguísticos, pós-doutora em Ciências Cognitivas pela University of California San Diego e em Educação pela University of Rhode Island.

Ela cita, por exemplo, a diferença entre janta e jantar. "Jantar pode ter uma conotação diferente, exigir uma roupa diferente. Da mesma forma, a língua exige uma adequação", reforça.

Carla cita as novas palavras e novos sentidos introduzidos no nosso vocabulário pelo universo tecnológico, como navegar e mouse. “Nós importamos, modificamos, enriquecemos. Precisamos nos comunicar nesse universo, nos adequar. Não adianta pensar que aprender gramática habilita a pessoa. Importante é saber usar a língua para dizer da melhor forma o que precisa ser dito e compreender as entrelinhas”, reforça.

Para a professora, o preconceito em relação à língua é como o racismo e a homofobia, mas é velado, apoiado por uma educação que prega apenas um jeito de falar. “A regra da ortografia toma todos os lugares da língua. E o preconceito tira a voz e a cidadania e enfraquece a democracia”, sintetiza.

Ausência de debate adia uma sociedade mais justa

Embora a língua seja um fator indispensável para se entender o Brasil e superar os problemas educacionais do País, o assunto não é tema de debates e acaba restrito aos ambientes acadêmicos. Para Carlos Alberto Faraco, doutor em Linguística pela University of Salford e pós-doutor em Linguística na University of California, isso impacta nossa democracia e nosso desenvolvimento social.

O especialista dá vários exemplos dessa ausência de debates, sendo um deles a seleção dos 200 livros importantes para se entender o Brasil, feita por 169 intelectuais da língua portuguesa a convite da Folha de São Paulo. “Nenhum linguista participou, e nenhum livro sobre isso foi selecionado”, enfatiza.

“A sociedade brasileira precisa conhecer a fundo sua história e sua realidade socio-linguísticas e construir consensos com base nos usos correntes da língua, livre de purismos”, prega Faraco, que também é membro do Grupo de Pesquisa Historiografia, Gramática e Ensino de Línguas da Universidade Federal da Paraíba.

O analfabetismo funcional também é destacado por Faraco. segundo ele, o Brasil tem apenas 30% de alfabetizados funcionamente, que são as pessoas que transitam com familiaridade e autonomia pelos espaços da escrita. "E não paramos de criar analfabetos. Muitas crianças de 9 e 10 anos, ainda que escolarizadas, não estão alfabetizadas", afirmou.

Mudanças

Para ilustrar as constantes mudanças na língua, o doutor em Linguística, professor da Unicamp e pesquisador na Área de Sociolinguística, Fonologia e Linguística Histórica, Emilio Gozze Pagotto, apresentou estudo comparativo entre as constituições do Império (1824) e da República (1891), essa última influenciada por mudanças implementadas em Portugal. Em pouco mais de 60 anos, as diferenças são enormes e o que era certo passa a ser visto como errado.

A do Império usa “aonde” em todas as citações, enquanto a da República usa “onde”. A primeira também tem expressões como “de 40 anos para cima” para se referir aos maiores de 40 anos, e “parente mais chegado”, outra expressão considerada inadequada anos depois. Outra polêmica semelhante, envolvendo o Código Civil no final do século XIX, também foi citada por Pagotto para ilustrar que a norma linguística é “produto da história, sujeita a correlações de forças.

Preservação dos territórios e línguas indígenas é desafio urgente

A necessidade urgente da preservação da cultura dos povos indígenas, por meio sobretudo da sua identidade linguística como aspecto indissociável disso, foi a temática mais explorada pelos expositores da terceira mesa do debate público, que teve como tema “Diversidade linguística e políticas da língua: qual é o papel do Estado?”, na qual foram abordados a pluralidade linguística no Brasil e as políticas públicas no campo da língua.

O desaparecimento e provável execução no Vale do Javari (AM), região habitada por povos indígenas isolados, do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips foi lembrado pelo professor da UFMG Fábio Bonfim Duarte como o mais recente capítulo trágico dessa ameaça. Ele é doutor em Estudos Linguísticos e professor titular da Faculdade de Letras e lembra que o Brasil e a Nova Guiné são os únicos locais do mundo onde ainda são encontrados povos isolados.

“E o Vale do Jaguari tem com certeza a maior concentração de povos isolados do mundo, dos quais os dois são defensores. Esses povos falam línguas que a gente ainda não conhece, mas que precisam manter esse isolamento para que elas sejam preservadas e estudadas”, aponta. Além dessa região, há registros de povos isolados ainda no Acre, Rondônia, Mato Grosso e Maranhão.

Risco de extinção

Segundo o professor, estima-se que sejam faladas cerca de 6,5 mil línguas diferentes no planeta, das quais dois terços podem estar extintas até o final deste século. Dessas, são cerca de 600 línguas diferentes faladas na América do Sul, onde é maior o perigo de extinção devido ao baixo número de falantes de cada uma. Com menos de 50 mil falantes já é grande o risco de extinção na avaliação dele, mas algumas delas há registro de apenas um único falante sobrevivente.

“Sabemos bem os fatores que levam a isso e o maior deles é a pressão das chamadas línguas majoritárias. Todas as línguas estão intimamente interligadas com as culturas dos seus falantes e um povo originário sem seu território, sem bioma e tradições preservadas, tem sua saúde linguística seriamente afetada”, aponta Fábio Duarte.

Invisibilidade e apagamento

A doutora em Linguística Aplicada e professora associada da UFMG, Maria Gorete Neto, traçou um panorama histórico da relação do Estado brasileiro com a cultura dos povos indígenas que, no que diz respeito às línguas faladas por eles, foi marcada por grande invisibilidade e apagamento. E, apesar dos avanços recentes trazidos sobretudo pelo fortalecimento do movimento indigenista na década de 1970 e pelo advento da Constituição Federal de 1988, o momento atual é de retrocesso.

“A demarcação de terras indígenas é condição essencial para que o direito ao uso das línguas indígenas se concretize. A gente quer pessoas vivas falando as suas línguas”, defende a professora, que lembra ainda que a Unesco declarou o período de 2022 a 2032 a "Década Internacional das Línguas Indígenas".

Complexidade linguística

O reconhecimento do princípio da territorialidade como instrumento de preservação da língua também foi classificado como fundamental pelo doutor em Linguística, Literatura no Âmbito Galego-Português, com pós-doutorado em Linguística, Letras e Artes, Xoán Carlos Lagares Diez, que é professor associado da Universidade Federal Fluminense (UFF).

“Como os estados nacionais lidam com sua complexidade linguística é um indicativo do nível de sua saúde democrática”, analisa. Esse direito, que existe tanto em nível individual quanto coletivo, consta inclusive, conforme lembra, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, editada em 1948.

Essa complexidade deve ser discutida inclusive no ensino de línguas na escola, que, segundo ele, deve superar a dicotomia de língua nacional e língua estrangeira.