Comissão ouve relatos sobre conflitos pelo Estado e cobra fiscalização em cumprimento de decisão de ministro do STF
Segundo Frei Gilvander, 2% da população detém 50% da terra brasileira
A lavradora Nezete da Silva denunciou que quilombolas do Norte têm sido ameaçados por fazendeiros
Mesa de diálogo e negociação permanente do Estado monitora 49 conflitos fundiários em Minas

Despejos continuam suspensos, mas medida é paliativa

Prazo proibindo desocupações é prorrogado, mas movimentos cobram regularização fundiária e despejo zero permanente.

31/03/2022 - 16:36 - Atualizado em 31/03/2022 - 19:02

Despejos e desocupações estão suspensos em todo o País por mais três meses, por decisão do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF). Mesmo comemorando a medida, tomada na véspera, representantes de ocupações e comunidades tradicionais advertiram nesta quinta-feira (31/3/22) que isso apenas dá fôlego ao movimento de resistência, sem resolver o problema da moradia e sem garantir o respeito aos direitos humanos se não houver fiscalização.

O assunto foi discutido em reunião da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), a pedido da presidenta, deputada Andréia de Jesus (Psol), tendo em vista que o prazo suspendendo as desocupações e despejos em função da pandemia vencia nesta própria quinta (31).

Consulte o resultado e assista ao vídeo completo da reunião.

Esta é a segunda prorrogação, válida até 30 de junho de 2022, dos efeitos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, que proíbe despejos urbanos e rurais e decorre da Lei Federal 14.216, de 2021, que estabeleceu medidas excepcionais em razão da pandemia.

“A prorrogação é fruto da nossa resistência em todo o País”, frisou Jairo Pereira, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), numa manifestação endossada pela presidenta da comissão e pela maioria dos presentes. A luta, repetiram, é pelo movimento Despejo Zero.

Manoel Vieira, do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas, acrescentou que o deficit de moradias no País seria de cerca de 8 milhões de unidades habitacionais. “O preço médio de aluguel em Belo Horizonte é de mil reais. As contas não fecham e as pessoas são obrigadas a decidir se vão pagar ou comer”, criticou ele. 

Comissão cobra cumprimento de decisão

Conforme ressaltou a presidenta da comissão, haveria em Minas mais de 200 mil casos envolvendo desapropriações, despejos e ações de reintegração de posse. 

“O desafio é o que será feito para cumprir a lei e a decisão judicial de prorrogação”, frisou a parlamentar, mencionando situações recorrentes e recentes de tentativas de desocupações à força.

Como exemplo, ela e outros participantes denunciaram que em Betim, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), a prefeitura estaria descumprindo decisão judicial contra despejos e que no Norte de Minas comunidades quilombolas como Sangradouro e Gameleira enfrentam situações de conflito.

Leninha (PT), vice-presidenta da comissão, endossou a fala da colega. “Vamos resistir junto com essas comunidades”, afirmou.

Função social da propriedade é defendida

Frei Gilvander Moreira, coordenador da Comissão Pastoral da Terra de Minas Gerais, elogiou a prorrogação do prazo para despejos, mas defendeu que o despejo zero seja para sempre.

“O ministro do STF teve sensibilidade, mas essa é uma medida paliativa num País que reproduz cotidianamente uma desigualdade das mais absurdas, em que 2% da população está aprisionando 50% da terra brasileira”, afirmou o representante da pastoral.

Ele disse que mais de 7 milhões de famílias estão sem moradia no Brasil, o que equivaleria ao número de imóveis e terrenos sem ocupação no País. Nesse sentido, cobrou que constitucionalmente prevalece a função social da propriedade.

Corroborando a fala, o procurador do Ministério Público de Minas Gerais,  Afonso Henrique Teixeira, avaliou que as decisões judiciais nem sempre abrangem a verificação da função social da propriedade como deveriam, e esse seria o ponto central da discussão.

Ele ainda defendeu a criação de vara especializada também em conflitos urbanos e disse que tentativas de conciliação ainda esbarram na ausência de políticas públicas e de uma jurisdição vocacionada para a causa. “Tem que haver mediação”, insistiu.

A defensora pública Ana Cláudia da Silva Alexandre Storch acrescentou que o Estado viola os direitos humanos dos moradores das ocupações ao cumprir reintegrações de posse que não apresentam alternativas de moradia para as famílias. 

Denúncias de conflitos foram recorrentes

Entre as várias denúncias feitas por participantes da audiência, foram relatadas situações de conflitos vividas no Beco Fagundes, em Betim, em que mais de 100 famílias estariam sendo afetadas. Segundo as denúncias, a prefeitura teria mandado ao local um “aparato de guerra com retroescavadeira”, tendo sido derrubadas mais de 40 casas em descumprimento a uma decisão judicial em contrário. 

Já Alexandre Santos Araújo, liderança do Quilombo Araújo, disse que a comunidade tradicional existe há cerca de 40 anos, e agora enfrentaria pedido judicial de remoção de posse, segundo ele sem direito a reassentamento, indenização e assistência social. “Só sairemos mortos”, afirmou.

Liderança da Comunidade Quilombola Croatá, no Norte de Minas, a lavradora Nezete da Silva também disse que quilombolas têm sofrido agressões e ameaças por parte de fazendeiros em sua área de refúgio, e sem contar com assistência social.

Também foi feita denúncia de que a prefeitura da Capital atua para cumprir ordem judicial de desocupação da Vila Maria, apesar da decisão do STF mantendo a suspensão de despejos.

Executivo diz que mesa de negociação tem atuado

O subsecretário de Direitos Humanos da Secretaria de Estado de Defesa Social (Sedese), Duílio Campos, discorreu sobre a importância de atuação da Mesa Estadual de Diálogo e Negociação Permanente com Ocupações Urbanas e Rurais instituída por lei em 2019 e coordenada pela pasta.

Ele disse que a missão da mesa é possibilitar o diálogo dos envolvidos nos conflitos, chegando a soluções negociadas e atuando com base em três princípios: o direito à propriedade, o respeito às decisões judiciais e o direito à moradia.

“Recebemos com alegria a decisão do ministro. Claro que é pouco, mas já nos dá um folego de continuar pensando adiante”, disse ele.

Sobre cobranças ao Estado nesse sentido, ele disse que o papel da esfera municipal também é importante e garantiu que a Polícia Militar será informada formalmente pela mesa de diálogo sobre a prorrogação do prazo impedindo desocupações.

Acompanhamento é questionado

O subsecretário informou que a mesa de diálogo acompanha hoje 49 situações de conflitos no Estado, sendo 28 urbanos e 21 rurais, envolvendo cerca de 4.800 famílias.

O advogado Ailton Matias, contudo, disse que há 300 ocupações em situação de conflito em Minas, concluindo que aquelas em acompanhamento pela mesa de diálogo não chegariam a 15% da necessidade real.

Deputada apoia mapeamento e cobra assistência social

A deputada Andréia de Jesus avaliou que relatos feitos comprovam a prática de higienização, que segundo ela atua para afastar negros e pobres de espaços onde vivem há anos, o que definiu como etnocídio e racismo estruturado.

Ela avaliou que a mesa de negociação de conflitos tem cumprido papel ímpar, evitando por exemplo operações policiais muitas vezes violentas. Porém, disse que essa instância precisa atuar mais na identificação de terras devolutas e ampliar seu quadro de somente três servidores.

“A primeira ação (em conflitos) tem que ser de assistência social, e não policial”, também cobrou ela.

A deputada ainda apoiou sugestão da promotora de Justiça Cláudia Xavier, para criação de uma câmara técnica na mesa de negociação do Estado.

O objetivo é mapear todas as ocupações existentes no Estado e sua situação atual, planejando como atuar uma vez encerrado o prazo que suspende os despejos.