Audiência foi motivada por decisão do CRM anunciada no final de julho, após fiscalização em todos os Cersams de BH
Para Fernando Ribeiro, questionamento do CRM expõe disputa entre modelos opostos baseados em bandeira política e na ciência
Interdição de Cersams divide opiniões

Interdição ética de Cersams é criticada em audiência

Decisão do CRM-MG se oporia à reforma psiquiátrica e luta antimanicomial, resultado de décadas de mobilizações sociais.

24/08/2021 - 19:42 - Atualizado em 24/08/2021 - 21:20

A decisão do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais (CRM-MG) de sugerir publicamente a interdição ética dos 16 Centros de Referência em Saúde Mental de Belo Horizonte (Cersams) foi duramente criticada pela maioria dos participantes da audiência pública da Comissão de Administração Pública da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), realizada na tarde desta terça-feira (24/8/21), no Auditório José Alencar. A reunião foi realizada atendendo a requerimento da deputada Beatriz Cerqueira (PT).

Consulte o resultado e assista ao vídeo completo da reunião.

À exceção dos representantes do próprio CRM e de outras entidades médicas, do governo federal e da Ordem dos Advogados do Brasil em Minas Gerais (OAB-MG), todos os demais participantes do debate se posicionaram em defesa da estrutura e dos profissionais de saúde que atuam na Rede de Atenção Psicossocial (Raps), entre eles representantes de outros conselhos da área da saúde, de usuários dos serviços e da administração municipal, além de especialistas em saúde mental.

A reforma psiquiátrica e luta antimanicomial, em especial a implementada em Minas Gerais, é resultado de ao menos quatro décadas de mobilizações sociais pelo fim dos manicômios e para se promover tratamentos dignos sem privar os pacientes de liberdade e de convívio social. Essas conquistas foram lembradas nos pronunciamentos em defesa da Raps, em especial dos Cersams.

A deputada Beatriz Cerqueira (PT) denunciou a estratégia do governo federal e seus aliados de desmonte do modelo de atendimento dos serviços de saúde mental, que ficaria evidente na revogação, na atual gestão, de 99 portarias do setor editadas entre 1991 e 2014.

“Não faz sentido direcionar recursos somente para mais hospitais psiquiátricos. Precisamos escutar quem vive essa realidade e não foi escutado antes dessa decisão do CRM. Mas em tempos antidemocráticos como os que vivemos no nosso País, nada mais normal do que essa política de higienização que não reconhece a pluralidade e a diversidade, na qual quem não se adapta ao padrão é retirado do convívio à sociedade”, ironizou a parlamentar.

“A quem interessa a regressão aos manicômios e às internações forçadas, a quem interessa o mercado de internações? Querem transferir recursos para comunidades terapêuticas e também colocarem a internação como primeira medida de tratamento”, apontou ainda Beatriz Cerqueira. A deputada anunciou que vai mobilizar uma frente parlamentar na ALMG que já atuou na luta antimanicomial e prometeu promover novas audiências sobre o tema.

O deputado Cleitinho Azevedo (Cidadania) também prestou seu apoio à causa e disse ser importante cobrar do poder público, em todas as esferas, mais investimentos no setor.

Polêmica – A decisão do CRM-MG foi anunciada no final de julho, após fiscalização em todos os Cersams de BH, na qual teriam sido encontradas diversas irregularidades, sobretudo no atendimento ao paciente agudo na Capital, devido à ausência do médico psiquiatra. Tais pacientes seriam então encaminhados aos centros de saúde, atendidos por um clínico geral e liberados, em vez de remetidos a um hospital para internação.

Em Belo Horizonte, essa internação é realizada atualmente apenas pelo Hospital Raul Soares, já que a outra unidade de referência, o Hospital Galba Veloso, teria cessado as internações em março do ano passado, como uma medida de contingência em virtude do início da pandemia de coronavírus.

Médicos dessas duas unidades teriam acionado o CRM justamente em virtude da dificuldade de efetivar as internações de pacientes psiquiátricos graves, que seriam redirecionados novamente aos Cersams, numa peregrinação infrutífera. Para complicar, segundo o apurado pelo CRM, dos 16 Cersams, apenas dois funcionariam 24 horas.

Indicativo - A presidente do CRM, Cibele Alves de Carvalho, minimizou a repercussão da medida. Segundo ela, trata-se apenas de um “indicativo de interdição ética”, necessário após os gestores responsáveis pelo serviço terem ignorado alertas anteriores. Segundo ela, ficou combinado com o secretário municipal de Saúde, Jackson Machado Pinto, um prazo de 60 dias para que a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) possa também fazer um diagnóstico da situação.

“Não questionamos em nenhum momento a atuação dos trabalhadores dos Cersams, dos demais membros da equipe multidisciplinar. O que questionamos é a qualidade assistencial, sobretudo no período noturno, e as condições de trabalho do médico. Nesse sentido, o Conselho cumpriu seu papel, pois assim busca também o melhor para o paciente psiquiátrico. Não defendemos a internação, nem interesses mercadológicos, tampouco levantamos uma bandeira politica. Estamos falando da saúde mental como um todo”, afirmou Cibele.

PBH diz que serviço funciona bem e de acordo com práticas consagradas

O gerente da Rede da Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde da PBH, Fernando de Siqueira Ribeiro, defendeu o modelo de atendimento oferecido pelos Cersams e cobrou mais investimentos do governo federal. Segundo ele, todos os órgãos que compõem a chamada Raps na Capital mineira atuam conforme todas as normativas vigentes do Ministério da Saúde e, ainda, das organizações Mundial e Panamericana de Saúde.

“Sempre estamos dispostos a conversar, mas com base no que diz a ciência. Esse tipo de questionamento expõe dois modelos dicotômicos em disputa, um baseado em uma bandeira política e outro ético-científico. Afinal, a luta antimanicomial já acumula 60 anos no mundo e ganhou força nos últimos 30 anos no Brasil”, avaliou. Segundo ele, o fechamento de leitos do Hospital Galba Veloso nem pode ser incluído na discussão, já que não foi uma decisão da PBH.

O secretário-geral da Mesa Diretora do Conselho Municipal de Saúde de Belo Horizonte, Bruno Abreu, afirmou que a decisão do CRM também foi repudiada por unanimidade em plenária do órgão colegiado. “Tentar impedir o trabalho médico em 16 Cersams é interferir no direito à saúde de milhares de pessoas em BH. Jamais recebemos queixas de pessoas que querem a internação de um paciente psiquiátrico, mas sim de que às vezes faltam médicos nas Unidades de Pronto-Atendimento (UPAs) e nos postos de saúde. E por isso o fechamento do Galba Veloso, para nós, inclusive, não representou nenhum prejuízo”, explicou.

Intimidação - Posição semelhante foi defendida pela vice-presidente da Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental de Minas Gerais e membro do Fórum Mineiro de Saúde Mental, Laura Fusaro Camey, que também é conselheira municipal de Saúde em BH, e ainda pela médica psiquiatra e integrante do coletivo “Médicas e Médicos pela Democracia”, Vera Maria Velloso Prates.

Estamos estarrecidos com a atuação do CRM, cujo intuito é desconstruir uma rede de atendimento psicossocial. Eles extrapolaram prerrogativas legais e intimidaram os médicos que atuam nessa rede. Os Cersams atuam sim em urgências psiquiátricas, e com eficiência. Entendo que precisamos contar com leitos, mas o hospital psiquiátrico nunca foi o modelo a ser seguido”, avaliou a médica.

Aumento de suicídios seria indício de problemas no serviço

O presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Antônio Geraldo da Silva, lembrou que o Brasil é campeão mundial em casos de transtorno de ansiedade e depressão, o que foi agravado com a pandemia e tem levado a índices cada vez mais preocupantes de suicídio.

“Isso indica que a população não tem acesso ao tratamento psiquiátrico adequado. Precisamos de locais que proporcionem uma assistência com dignidade, mas também com toda infraestrutura, inclusive centro cirúrgico e UTI, pois todas as etapas podem ser necessárias”, ponderou.

A presidente da Comissão de Saúde Mental da OAB, Luciana Chamone, lamentou a precarização dos serviços do Cersams. Na avaliação dela, a defesa da luta antimanicomial tem servido para encobrir a desassistência aos pacientes do SUS. “Eu vivo esta realidade, pois pessoas recorrem a mim por não terem assistência na saúde mental”, disse.

Governo federal - Por fim, o secretário nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas do Ministério da Cidadania, Quirino Cordeiro Júnior, apoiou a medida do CRM pois, segundo ele, a reforma psiquiátrica teria sido baseada em “conceitos equivocados” que levaram, por exemplo, ao crescimento da população em situação de rua e dos índices de criminalidade, já que muitos pacientes não receberam o atendimento adequado em fases iniciais.

“O Cersam não vai dar conta de tudo. O quadro agudo precisa sim do pronto-atendimento e da internação. É isso que defende o governo federal”, resumiu.