Convidados classificaram a proibição dos rituais religiosos com animais como hipocrisia, especialmente em um país com alto consumo de carne
Sacrifício de animais é defendido em ritos de expressão religiosa

Proibição de animais em rituais é considerada intolerância

Tema será discutido no STF e motivou audiência pública na ALMG, quando convidados destacaram contradições da proposta.

26/03/2019 - 22:59 - Atualizado em 27/03/2019 - 12:13

“Por que não podemos comer uma carne que acreditamos ser sagrada e que queremos compartilhar entre nós e com os nossos orixás, nossos deuses? É como qualquer cristão com seu peru na mesa de Natal”, disse Makota Kindoialé, do Quilombo Manzo. A comparação foi feita durante audiência na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) que tratou da intolerância religiosa.

Realizada pela Comissão de Direitos Humanos na noite desta terça-feira (26/3/19), a reunião foi motivada pela proximidade do julgamento, no Supremo Tribunal Federal (STF), do Recurso Extraordinário (RE) 494.601, no qual se discute a validade de lei do Rio Grande do Sul que trata do sacrifício de animais em ritos das religiões afro-brasileiras. A Corte deve começar a discussão do assunto na próxima quinta-feira (28).

Os convidados da reunião questionaram os motivos que levariam à proibição, bem como o uso dos termos “abate” e “sacrifício”. O primeiro foi negado, o segundo foi considerado aceitável por muitos dos presentes, enquanto outros preferiram usar a palavra “sacralização” de animais.

O tom geral foi de apontar que é hipócrita proibir os rituais, que implicam na preparação e distribuição da carne do animal sacrificado para todos os participantes dos cultos, em um País com alto consumo de carne e com uma grande indústria de exportação do produto.

Tat’eu Jalabo, também conhecido como Pai Geraldo, da Casa de Cultura Lodê Apara, ressaltou que a indústria alimentícia se utiliza de métodos como inseminação artificial, alimentação com hormônios para os bezerros e abate em grande escala, mas isso não é questionado legalmente como violência contra os animais.

Nos rituais das religiões afrobrasileiras, por sua vez, são adotadas uma série de medidas purificadoras em relação aos animais que participarão e, depois, a “carne sadia” é distribuída por toda a comunidade.

Caso seja admitida a proibição dos rituais, o Estado estará, para Makota Kindoialé, se declarando ou racista ou não-laico. Para ela, essa tentativa de proibição é parte de uma série de violências que buscam negar aos adeptos de religiões afrobrasileiras a permanência em seus territórios sagrados.

Respeito às crenças religiosas é a demanda dos convidados

Além da comparação do uso dos animais para compartilhamento da carne entre participantes e orixás em rituais religiosos com o uso comercial da carne, os presentes também fizeram um paralelo entre as práticas de várias siglas religiosas questionando as razões das perseguições àquelas de matriz africana.

“Eu adoro o som dos atabaques como os católicos devem gostar dos hinos das suas igrejas. Adoro tomar um passe - qual é a diferença para o pastor que posta as mãos para dar uma benção?”, questionou Makota Celinha, coordenadora-geral do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira (Cenarab).

Ela destacou que a discussão que será feita no STF não diz respeito à sua fé, pois, afirmou, uma proibição pode dificultar, mas não acabará com nenhum ritual. O que está em jogo no julgamento, para ela, é a própria democracia e a validade da Constituição da República. Makota Celinha finalizou ironizando e dizendo que, se a proibição for mantida, será necessário levantar a hashtag #brasilvegano.

Em coro com Makota Celinha, o defensor público da União Diego de Oliveira Silva disse que a proposta de uma lei que proíba o uso de animais nos ritos justificada pela Lei Federal 9.605, que trata de sanções penais contra ações lesivas ao meio ambiente, não passa de expressão de racismo e intolerância religiosa, alé de uma justificativa equivocada, já que a proibição de matar animais contida na norma trata de fauna silvestre, não doméstica.

Desrespeitos - Além de protestarem contra a proibição do uso de animais nos rituais, os presentes também falaram de outros desrespeitos sofridos pelos que professam religiões de matriz africana. Andreia Rodrigues Barroso, da Casa de Candomblé Ilê Asé Omi Ogumsade, contou que sua filha ganhou, de funcionários de uma escola estadual, uma bíblia evangélica e é constantemente abordada por pessoas que dizem que sua fé é diabólica.

“As pessoas precisam entender que não cultuamos o diabo. O diabo não faz parte da nossa fé. Ele faz parte é da fé que tentou nos catequizar e fazer de nós o próprio diabo”, disse. Apesar de destacar seus receios, Andreia finalizou salientando a força do povo negro. “Só estamos aqui porque somos feitos de resistência”, disse.  

Ricardo de Moura, da Associação Resistência Cultural Afrobrasileira Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente, também falou de vários tipos de perseguições sofridas no cotidiano. “Dizem que somos todos iguais. Onde está essa igualdade? Eles sentam em seus privilégios construídos em cima dos cadáveres dos nossos ancestrais e querem aumentar esses privilégios em cima dos cadáveres futuros do nosso povo”, disse.

Representantes do Poder Público reafirmam proteção contra intolerância religiosa

“É dever irrevogável do Estado garantir e defender os direitos humanos, então é preciso acabar com todo tipo de intolerância”, disse o subsecretário de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos da Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania, Thiago Augusto Campos Horta, que se colocou à disposição para dialogar com os grupos atingidos.

A deputada Andréia de Jesus (Psol) agradeceu a presença do subsecretário, que ela entendeu como abertura do Poder Executivo ao diálogo, em um período em que há, segundo ela, muita apreensão em função da proposta de reforma administrativa do governador Romeu Zema (Novo), em tramitação na ALMG na forma dos Projetos de Lei (PL) 367/2019 e 368/2019. Entre as propostas está a extinção da pasta representada por Thiago Horta, vista com preocupação pela deputada.

Além disso, a deputada, que solicitou a reunião, disse que é preciso reafirmar todos os dias que o Estado é e deve continuar sendo, laico. “O direito à livre manifestação religiosa é constitucional, o Estado não pode controlar os nossos ritos”, disse. 

Também a defensora pública Ana Cláudia Storch destacou que a liberdade religiosa é um direito constitucional e que isso não pode significar proteção para alguns e dificuldades para outros. 

O deputado Betão (PT) esteve presente no início da reunião e manifestou seu apoio à resistência contra a intolerância religiosa.

Consulte o resultado da reunião.