Ciclo de violência começa muito antes do primeiro empurrão
De diferentes tipos, violência contra a mulher precisa ser encerrada logo no início, antes que acabe em feminicídio.
Francisca Maria da Silva, mais conhecida como Chica, demorou alguns anos para perceber que era vítima de violência de gênero. Ela, cozinheira, morava na casa de uma família para quem trabalhava. Acabou se envolvendo com o zelador do prédio e, depois de poucos encontros, apaixonada e ansiosa por ter sua própria casa, foi viver com ele.
Logo parou de trabalhar porque ele dizia que poderia cuidar dela. Quando ela queria comprar uma roupa, ele fazia isso e a presenteava. Se ela queria visitar a família em uma cidade vizinha a que morava, ele a levava.
Disfarçada de proteção, estava a violência simbólica. Como discutido na reportagem anterior desta série produzida pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) sobre violência contra a mulher, dar nomes é importante para que as violências sejam reconhecidas e, assim, combatidas.
Em março de 2019, a ALMG promoveu o evento Sempre vivas - Mulheres em luta contra a violência, que integrou a programação preparada para comemor o Dia Internacional da Mulher, celebrado no dia 8. O feminicídio esteve no centro dos debates.
Imposição de limitações
A violência simbólica contra a mulher é marcada por uma série de limitações e obrigações impostas a ela a partir de uma ideia, em geral aceita por todos, inclusive a mulher, de que cada membro do casal tem papéis pré-estabelecidos – como o de que o homem é quem deve sustentar a casa financeiramente e a mulher deve servi-lo.
Não é violência quando a mulher escolhe, por exemplo, não trabalhar, mas sim quando essa decisão é imposta a ela. Foi o caso de Francisca. O marido a proibiu de continuar no emprego e, como alternativa, ela começou a fazer salgados em casa e vendê-los sob encomenda.
Logo, o então companheiro começou a escolher os clientes que ela atenderia: só mulheres. Era para a sua proteção, ele dizia, e ela acreditava. O problema maior é que o ciclo de violência, ideia segundo a qual há uma repetição de agressões, pressupõe também que há um aumento progressivo da brutalidade.
Rede de apoio - Reconhecer essas violências e, assim, quebrar o ciclo antes que ele culmine no feminicídio é o desafio das lutas feministas contemporâneas. Para isso, uma rede de apoio e proteção tem sido construída desde a década de 1980.
Além das delegacias especializadas e da Lei do Feminicídio, existem outras instituições dessa rede e outras violências a serem conhecidas e reconhecidas. Chica, atualmente aos 57 anos, começou a se relacionar com seu agressor ainda na década de 1980, quando essa rede apenas começava a se formar, e só conseguiu se libertar, quando quando essa essa estrutura de proteção já estava mais estabelecida.
Seja "benvinda": rede de proteção
Antes disso, Chica engravidou seis vezes do ex-marido: abortou duas delas porque ele a obrigou e o último filho nasceu morto em função de um espancamento quando ela já estava no oitavo mês de gravidez. No caso dela, demorou cerca de três anos para a "profecia" do ciclo de violência se concretizar e o que era simbólico se tornar físico.
O então marido de Chica começou a agredi-la fisicamente quando ela se negava a fazer, durante o sexo, coisas que não a deixavam confortável. Nessas ocasiões, ele saía de casa e voltava dias depois. “Na minha casa, meu pai sempre dizia que ‘casamento e morte era só uma vez’, eu não achava que podia sair daquela situação”, conta Chica.
Tudo só começou a mudar quando ela leu em um jornal que violência doméstica era crime. Eles já estavam há mais de dez anos juntos e a década de 1990 estava no fim. “Ele lia o jornal e depois jogava no chão. O que estava no chão, eu podia pegar”, conta.
Foram nesses papéis descartados que ela não só soube que ele poderia ser punido pelas agressões, mas também que ela poderia conseguir um lugar para ficar na rede de apoio com as três filhas. E, assim, procurou o Centro Especializado de Atendimento à Mulher Benvinda, que a ajudou a conseguir vaga no Abrigo Sempre Viva.
O Centro Benvinda, órgão da Prefeitura de Belo Horizonte fundado em 1996, foi mais um instrumento da rede de proteção, que deveria agir ao lado, por exemplo, das delegacias especializadas surgidas na década anterior.
Até hoje em funcionamento, o local oferece ajuda a mulheres em situação de violência. Segundo a gerente do órgão, Kate Rocha, existem vários protocolos de atendimento, que começam pelo acolhimento psicossocial, no qual é feita a escuta da situação de cada mulher e a busca das soluções mais adequadas a cada caso.
De acordo com Kate, o mais comum é que as mulheres cheguem lá até hoje como Chica: depois de anos de uma violência crônica que começou com limitações cotidianas e culminou em processos de agressões que tornaram a situação insuportável e levaram a mulher a buscar ajuda.
A discussão das questões ligadas às violências de gênero cada vez mais presente no cotidiano do País, bem como a divulgação dos serviços da rede de proteção, porém, têm ajudado, segundo a gerente, algumas mulheres a chegarem mais cedo ao serviço. Inclusive algumas em dúvida se, por exemplo, a proibição de sair de casa pode ser considerada violência. Sim, pode.
Proteção em rede - E quanto mais cedo a mulher quebrar o ciclo, mais opções ela terá de saída da situação. Mais do que atendimento psicossocial e jurídico para aquelas que precisam e querem denunciar os agressores, o Centro Benvinda está ligado a redes de saúde e educação, por exemplo, e a programas de geração de emprego e renda.
Chica se beneficiou dessa rede quando foi orientada e auxiliada na formação de uma cooperativa que se transformou no que até hoje é conhecido como Buffet Amigos da Chica, fonte de renda para ela e outras mulheres que já sofreram com a violência doméstica.
Não é “só” uma questão de gênero
Entre as especificidades do Abrigo Sempre Viva está a possibilidade de as crianças e adolescentes ficarem lá com as suas mães. Outra é a impossibilidade de sair de lá sem o acompanhamento de um funcionário: há constantemente o medo de que algum dos agressores as sigam e as ataquem.
Trata-se, portanto, de uma situação limite causada por uma conjunção de fatores que o Dicionário Feminino da Infâmia, livro que faz parte da exposição atualmente aberta na Galeria de Arte da ALMG, não deixa de nomear: interseccionalidade. Parece palavrão, mas é só uma forma de dizer que não é possível separar questões de gênero de outras, como raça e classe.
Assim, se, como destaca a gerente do Centro Benvinda, violências de gênero assolam mulheres de todas as classes sociais, quanto mais defavorecidas economicamente, mais vulneráveis elas estão e mais elas vão precisar da rede de apoio do Estado.
Em outras palavras: mulheres ricas também são vitimadas, porém, elas terão para onde ir, poderão pagar um advogado e terão condições de se reerguer com menor apoio estatal. Privilégios negados às mais pobres.
Atlas da Violência - A questão racial também fica evidente quando observamos as estatísticas que mostram que, enquanto o assassinato de mulheres brancas foi reduzido em 8% entre os anos de 2006 e 2016, o de mulheres negras aumentou em 15% no mesmo período, segundo o Atlas da Violência 2018, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
“A mulher negra que foi comercializada como escrava no Brasil teve sempre seu direito à família negado. Ela amamentava o filho da sinhá enquanto seu próprio filho era um bem que pertencia a outra pessoa. Isso sem contar que o corpo dessa escrava era sexualizado ao extremo pelo colonizador”, explica Makota Celinha, coordenadora nacional do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira (Cenarab), sobre a maneira como as famílias negras se estruturaram historicamente.
Mulheres negras - Desde então, Makota destaca que elas, mulheres negras, foram muitas vezes deixadas para trás nas lutas feministas. “Quando as brancas estavam nas ruas exigindo seus direitos, direitos esses muito legítimos, claro, as negras estavam nas casas delas cuidando dos filhos delas”, diz, defendendo que o feminismo precisa abraçar as diferenças também de raças para que a luta seja completa.
Abraçar essas diferenças de raça e classe significa criar uma rede de proteção capaz de responder, tanto do ponto de vista preventivo quanto do repressivo, às necessidades específicas de cada grupo de mulheres. E fazer isso implica proteger não apenas as mulheres, mas também várias pessoas que fazem parte das suas configurações familiares.
O estudo “Raio X do Feminicídio em São Paulo: é possível evitar a morte?” indica que, em 26% dos casos de feminicídio, há outras vítimas, diretas ou indiretas, em geral os filhos.
Além das mulheres: vítimas indiretas
Em acompanhamento no Centro Benvinda, uma jovem de 26 anos que preferiu não se identificar e que será chamada aqui de Marcela vive uma situação difícil que mostra como os filhos acabam sendo também vitimados em casos de violência doméstica – mesmo quando não se chega ao extremo do assassinato.
Seu ex-marido a agredia fisicamente e, com a ajuda também da rede de apoio, ela conseguiu se separar. Sem ter para onde ir, precisou deixar seus três filhos com o ex-marido, mas ela está tranquila porque diz que ele nunca agrediu os meninos. A filha, porém, levou com ela.
Há quem diga que o Brasil é um País difícil para se criar meninas. Para Marcela, isso é verdade. Teve receio de deixar a criança com o pai e ela precisou compartilhar as moradias temporárias pelas quais a mãe passou: de abrigo à casa do irmão da mãe. Quando Marcela se casou novamente, levou a filha junto.
Conselho Tutelar - Acabou voltando a viver uma relação abusiva, com outro parceiro, esse 30 anos mais velho do que ela. Diante da percepção e denúncia de membros da comunidade escolar sobre a situação, o Conselho Tutelar, primando pela segurança da criança, destituiu a mãe temporariamente do poder sobre a filha.
A criança passou a ser tutelada por tios, enquanto Marcela tenta se restabelecer. Procurou de novo a rede de apoio e está agora em um abrigo de Belo Horizonte. Lá, faz um curso de computação e procura emprego.
É necessário ter renda para conseguir um lugar para morar e, principalmente, provar para a Justiça que pode voltar a ser responsável pela filha. Assim, a rede de apoio torna-se essencial não apenas para a mulher, mas também para outros membros da família.
Construção de saídas
Uma das premissas do atendimento em toda essa rede, como explica Kate Rocha, do Centro Benvinda, é o protagonismo das mulheres. São apresentadas a elas várias opções e é ela que constrói, junto com os funcionários da rede, o caminho a seguir.
É a mesma lógica utilizada pela Companhia Independente de Prevenção à Violência Doméstica, criada na Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG), em 2017. De acordo com a Major Cleide, comandante da Companhia, são selecionados casos que, pela descrição, parecem mais graves a partir de boletins de ocorrência registrados em Belo Horizonte.
Nesses casos, uma dupla de policiais, formada por um homem e uma mulher, visita a residência da família. A policial feminina aborda a mulher que foi vitimada e, entre outras coisas, apresenta a rede de apoio existente na cidade. Oferece encaminhamento para atendimento psicossocial ou assistência jurídica, por exemplo. Também em casos mais extremos, encaminha para abrigamento.
E, por fim, pergunta se ela quer acompanhamento da polícia em seu caso. Caso a mulher aceite, a dupla policial fará visitas periódicas à residência para coibir novas violências e orientar a mulher.
Lei Maria da Penha - Já o policial masculino aborda o homem que teria agredido de alguma forma a mulher. A ele, é apresentada a Lei Maria da Penha, outra conquista dos movimentos feministas.
Quando Chica sofria sob o jugo do ex-marido, a lei ainda não existia. Sancionada em 2006, a norma passou a assegurar não apenas a punição dos agressores em casos de violências domésticas como também criou diretrizes para o atendimento das vítimas e a previsão de proteção e acolhimento emergencial nos casos extremos.
Com essa abordagem, a Companhia comandada pela Major Cleide atendeu 2.730 casos no último ano – cada um deles acompanhado por, no mínimo, dois meses. Nenhum deles culminou em feminicídio, orgulha-se a Major Cleide.
Contextos de violência - Há casos, segundo a oficial, em que os relacionamentos continuaram e outros em que terminaram, mas o importante é que, aos poucos, as mulheres entenderam que viviam contextos de violência e que existiam alternativas para sair deles.
Entender que se vive um contexto de violência antes que o ciclo termine em feminicídio: esse é um passo importante e é para isso que lutam movimentos feministas e gestores públicos ligados à rede de apoio. Educação para se entender quais são e o que são os diferentes tipos de violência de gênero é o único caminho eficiente para resolver definitivamente o problema, acreditam todos eles.
A próxima matéria especial da série vai tratar das lutas e conquistas femininas ao longo das últimas décadas e será publicada na segunda-feira (25/03/19).