Cidadania Ribeirinha começa a colher frutos no Cerrado
Financiada pelo Fundo Nacional de Meio Ambiente, iniciativa da ALMG forma líderes e muda vidas na região do Velho Chico.
O que era um lixão virou campo de futebol. Com a adoção de práticas de reaproveitamento de materiais, a produção de lixo diminuiu. E a feira com artesanatos e produtos de agricultores locais já está ficando famosa.
Esses são alguns dos frutos colhidos pelo Cidadania Ribeirinha, passados três anos desde o início de sua segunda edição, no povoado de Retiro, em São Francisco (Norte de Minas). Nessa versão, ele é direcionado a comunidades rurais desse município e também de Januária, na mesma região.
A iniciativa da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), financiada pelo Fundo Nacional de Meio Ambiente (FNMA), capacita lideranças e qualifica novos líderes em lugarejos às margens do Rio São Francisco.
Iniciado em 2011, o projeto do Parlamento mineiro é destinado a municípios da bacia hidrográfica do Velho Chico com baixos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH).
Na primeira etapa da nova edição, a partir de agosto de 2015, foram ofertados cursos de qualificação de lideranças comunitárias. O objetivo foi transmitir e sistematizar conhecimentos, valorizar saberes tradicionais e formar multiplicadores dessas informações, aumentando o protagonismo dessas populações.
Em agosto de 2018, gestores do Cidadania Ribeirinha, acompanhados do representante do Ministério do Meio Ambiente, responsável pela gestão do FNMA, retornaram às localidades com o objetivo de verificar quanto o trabalho caminhou, fazendo um balanço das ações e dos seus resultados.
Após longos trajetos - a maioria em estradas de terra -, foi possível ouvir diferentes personagens que deram seu testemunho sobre a transformação promovida pela iniciativa da ALMG.
Pelos relatos, observam-se diferentes ritmos de implantação das ações. Mas um aspecto que une os depoimentos é a valorização da “centelha” produzida pelo projeto, que inspirou o desenvolvimento de iniciativas locais.
De 2015 até agora, foram promovidas diversas atividades que atendem a metas estabelecidas pelo FNMA.
As duas primeiras metas, já concluídas, promoveram a formação de agentes populares de educação ambiental na agricultura familiar.
Duas ações estão em andamento: a implementação de Projetos Comunitários de Educação Ambiental (PCEAs), envolvendo recuperação de nascentes, resíduos sólidos, extrativismo, horta/horto; e a criação de uma campanha de educação ambiental voltada à sustentabilidade no meio rural.
Comunidades em ação por mais cidadania
Mais conscientes de seu papel social e ambiental após os treinamentos do projeto, cidadãos de Retiro, a cerca de 25 quilômetros da sede de São Francisco, ainda comemoram a inauguração do novo espaço de lazer da comunidade. É lá que também funciona a feirinha com alimentos e objetos confeccionados na região.
Preparação de polpas de frutas - Na viagem da caravana dos técnicos do projeto, também foi visitada a localidade de Jiboia, em São Francisco, onde aconteceu uma reunião com alunos do Cidadania Ribeirinha. Na ocasião, as pessoas manifestaram seu apoio à criação também de uma feira livre no povoado, como meio de valorizar a produção típica deles, melhorar sua alimentação e socialização.
Os participantes destacaram alguns alimentos produzidos ali que poderiam ser vendidos na feirinha: hortaliças, baru (tipo de castanha do Cerrado), polpas (manga, acerola, umbu, tamarindo, goiaba, cagaita, maracujá), além de rapadura, aguardente, frango, queijo, requeijão, doces, biscoitos.
O presidente da Associação dos Moradores de Jiboia, o vereador de São Francisco José Delvan Silva, tem planos de colocar em funcionamento um espaço de preparação de polpas de frutas coletadas pela comunidade.
Há um galpão com algumas máquinas, doado pelo Programa Luz Para Todos, o qual necessita de adaptações de modo a ser usado como uma fábrica.
Por meio do Cidadania Ribeirinha, viabilizaram-se cursos do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) voltados ao processamento de frutos do Cerrado. Várias mulheres de Jiboia se qualificaram e estão aptas a atuar na fábrica, quando ela estiver funcionando.
Jornal pode aproximar e valorizar comunidade
Atendendo à demanda do povoado de Riacho da Cruz foi realizada uma oficina com dez jovens e parte da equipe do projeto, destinada à produção de um pequeno jornal comunitário. A proposta é divulgar notícias de interesse dos moradores, promover sua aproximação e maior participação.
Realizado na Funorte, em Montes Claros (Norte), o evento foi bem avaliado pelos oficinistas, como Daiana Oliveira. A estudante de Riacho da Cruz ressaltou que a oportunidade de conhecer equipamentos e um pouco da técnica jornalística despertou nela a vontade de desenvolver algo. “Precisamos utilizar o poder da comunicação em nossa terra”, frisou ela, que já reuniu material visando criar um site com dados sobre o povoado.
Uma palestra sobre preservação ambiental em áreas de cavernas, incluindo ainda informações sobre espeleologia e arqueologia, com o técnico do Instituto Estadual de Florestas, Raimundo Nonato, também foi realizada na própria comunidade de Riacho da Cruz.
Na ocasião, os participantes visitaram o sumidouro, uma grande erosão provocada por água de chuva, que vem sendo utilizada pelos moradores como depósito de lixo. Na conversa, foi lembrado que o jornal comunitário a ser criado pode ajudar na conscientização sobre o problema e na busca de soluções.
Carneiro, uma tradição da época dos quilombos
Bom Jardim da Prata, distante 15 quilômetros da sede de São Francisco, é o núcleo de uma região formada por 13 comunidades ocupadas por moradores de origem quilombola. Na segunda semana de agosto aconteceu uma oficina de fabricação de tambores, com o luthier de viola, rabeca e tambor de folia, Antônio Raposo.
O curso ajudou a despertar nos participantes a necessidade de revalorizar uma tradição que contribuiu na formação de sua identidade. Trata-se do carneiro, que remonta aos primórdios do quilombo e que vem sendo passada de geração em geração.
Dançada por pares, a manifestação cultural foi decisiva para o reconhecimento, pela Fundação Palmares, de Bom Jardim da Prata como remanescente quilombola.
Outro símbolo do passado é o umbuzeiro, árvore bicentenária que, de acordo com moradores mais antigos, foi plantada logo quando se criaram os primeiros núcleos populacionais no povoado, no fim do século XIX.
“O Cidadania Ribeirinha lapida um diamante que já existe na comunidade. O nome é adequado por incluir a palavra cidadania, que iguala e une as pessoas. E tem um certo caráter de provocação. Ao provocar, faz as pessoas irem pra frente”. A afirmação é de um dos alunos da oficina de batuque, Adão Pedro Batista Jesus Aguiar, que faz parte da equipe do projeto.
Experiências inspiram moradores
Ainda em Riacho da Cruz, em Januária, a equipe do Cidadania Ribeirinha visitou a comunidade de Alegre, onde algumas experiências inspiraram os moradores. Uma das empreendedoras locais é Lucilene Rodrigues da Silva, da Associação de Moradores de Alegre.
Filha de horticultores, Lucilene desenvolve há anos programas com hortas comunitárias. “Por seis anos, atuei num desses aqui na minha terra, mas devido a problemas de saúde, tive que me afastar”, afirmou.
Ela continuou trabalhando em casa, plantando verduras e legumes orgânicos utilizados no consumo próprio e no comércio. Ao saber que o Cidadania Ribeirinha promoveria cursos no local, Lucilene Silva se inscreveu. E fez a formação de agentes populares de educação ambiental na agricultura familiar.
Depois, concluiu a capacitação sobre implementação de PCEAs, envolvendo horta/horto, recuperação de nascentes, resíduos sólidos e extrativismo. “Todos os treinamentos foram muito importantes, porque adquirimos com eles conhecimento que vai ser aplicado agora, na horta comunitária”, elogiou.
Antes disso, Lucilene já buscava conhecimento por meio de cursos que lhe ensinaram como aumentar a produtividade e melhorar a qualidade dos alimentos. “Não deixei de plantar o que eu plantava, só passei a buscar técnicas diferenciadas com o objetivo de ter água de qualidade e não desperdiçá-la, usar cobertura morta e obter bons produtos”, relembrou.
Calçadão - Tamanho empreendedorismo resultou na escolha de Lucilene em Januária como beneficiária do Uma Terra e Duas Águas (P1+2), programa da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) em parceria com o Governo Federal e a Caritas Brasileira.
O projeto consiste na construção do chamado calçadão, composto por uma cisterna com capacidade de até 52 mil litros colocada junto a uma área cimentada de 200 m², que capta água da chuva.
O sistema permite que o líquido captado abasteça um sistema de irrigação manual ou por gotejamento que pode ser usado em uma horta, um viveiro de mudas ou na dessedentação de animais. “Se a gente quiser ficar com água em abundância é importante zelar por ela”, afirma a empreendedora.
Produção de alimentos agroecológicos é exemplo
Outra experiência que salta aos olhos em Riacho da Cruz é a Escola Estadual Antônio Corrêa e Silva, também em Alegre. Ela implantou um sistema integrado de produção de alimentos agroecológicos, o que levou o idealizador e diretor da escola, Odair Nunes de Almeida, a ganhar o prêmio Bom Exemplo 2018, da Rede Globo, na categoria educação.
No local, o diretor Odair e a equipe escolar desenvolvem atividades que permitem a inclusão social de crianças, jovens e adolescentes carentes da região. Funcionam na escola um criatório de tilápias, minhocário, hortas orgânica e hidropônica, galinheiro, área de compostagem, sistema de placas de captação de água de chuva e pomar.
Além de produzir alimentos saudáveis, preparados na merenda escolar - frutas, verduras, legumes e peixes - todo o aparato é utilizado pelos professores como ferramenta de aprendizagem. “O sistema se transformou num laboratório vivo para as ciências da natureza e humanas, matemática e todas as disciplinas do currículo geral”, destaca Odair Almeida.
A horticultora Lucilene Rodrigues matriculou seus filhos na escola e é uma das entusiastas do projeto. Ela orientou inclusive no treinamento de pessoas que hoje cuidam da horta escolar. Com a ajuda de alunos, a empreendedora construiu uma casa de adobe (tijolo de barro), que funciona como um espaço de lazer e conhecimento da história do quilombo.