Oficina do Cidadania contribui para resgate cultural
Em Bom Jardim da Prata, moradores revalorizam o carneiro, dançado desde o início do quilombo, no fim do século 19.
Bom Jardim da Prata, distante 15 km da sede de São Francisco (Norte de Minas), é o núcleo de uma região formada por 13 comunidades ocupadas por moradores de origem quilombola. A localidade recebeu a equipe do Cidadania Ribeirinha no mês de agosto, passados três anos do início das ações de qualificação realizadas em três povoados do município – além de Bom Jardim, foram contemplados Retiro e Jiboia.
Na segunda semana de agosto, aconteceu uma oficina de fabricação de tambores, com o luthier de viola, rabeca e tambor de folia, Antônio Raposo. O curso ajudou a despertar nos participantes a necessidade de revalorizar uma tradição que contribuiu na formação de sua identidade.
Trata-se do carneiro, que remonta aos primórdios do quilombo e que vem sendo passada de geração em geração. Dançada por pares, a manifestação cultural foi decisiva para o reconhecimento, pela Fundação Palmares, de Bom Jardim da Prata como remanescente quilombola.
Outro símbolo do passado é o umbuzeiro, árvore bicentenária que, de acordo com moradores mais antigos, foi plantada logo quando se criaram os primeiros núcleos populacionais no povoado, no fim do século XIX.
Diamante - “O Cidadania Ribeirinha lapida um diamante que já existe na comunidade. O nome é adequado por incluir a palavra cidadania, que iguala e une as pessoas. E tem um certo caráter de provocação, e ao provocar, faz as pessoas irem pra frente”. A afirmação é de um dos alunos da oficina de batuque, Adão Pedro Batista Jesus Aguiar, que faz parte da equipe do projeto.
Financiado pelo Fundo Nacional de Meio Ambiente (FNMA), a iniciativa da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) é destinada a municípios da bacia hidrográfica do Velho Chico com baixos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH). A iniciativa capacita lideranças locais e prepara novos líderes.
A segunda etapa do Cidadania começou em agosto de 2015, com o objetivo de atender São Francisco e Januária (Norte), esta última representada por Riacho da Cruz, São Joaquim e Várzea Bonita.
Gestores da ação da ALMG, acompanhados do representante do Ministério do Meio Ambiente, responsável pela gestão do FNMA, retornaram aos lugarejos com o objetivo de verificar quanto ela caminhou, fazendo um balanço das atividades.
Dança foi importante para reconhecer comunidade quilombola
Dois participantes falaram sobre o resgate cultural ensejado pelo projeto e reforçado pela oficina. Com a palavra, José da Conceição Pereira Júnior e José Astério Rodrigues Cordeiro:
Tradições revigoradas – José Júnior: “o povoado é dividido em 13 partes e, com o Cidadania, se conseguiu reunir todo mundo. Nós pudemos trazer de volta tradições que estavam perdidas, como o carneiro. E com isso, a gente aprendeu a revalorizar a terra, a cuidar do que é nosso, como faziam nossos antepassados”.
José Astério: “Antes, tinha uma separação entre as comunidades daqui. Então, nós conseguimos nos unir mais e buscar a revitalização da nossa cultura”.
Pesquisa – José Astério: “Acho muito importante falar do carneiro porque muitos só viam a apresentação, nas não sabiam quando começou, de que jeito, quem foram os pioneiros. Só conseguimos entender isso melhor com o trabalho de campo que fizemos, entrevistando alguns moradores mais velhos. Agora, podemos repassar a outras pessoas a importância e o porquê do surgimento”.
“Uma história interessante que contaram é que o carneiro era a maneira que os rapazes tinham de se aproximar das moças. Era a única dança em que não tinha nenhum tipo de ‘preconceito’ porque era respeitosa. Então, os pais aceitavam suas filhas participarem. Por isso é que em todas as festas, todos os reisados, até em casamentos e batizados, tudo terminava com ele”.
Afro - José Astério: “Tinha um programa chamado Seriema em que alguns membros da comunidade iam a encontros em Januária, em Gorutuba, São João das Missões. E nesses encontros, eram apresentadas danças típicas. Aí, constataram que o carneiro existia há muito tempo e que era uma manifestação afro. E através dela, começaram a fazer a pesquisa para oficializar Bom Jardim da Prata como quilombola”.
Consciência Negra – José Júnior: “Em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, é nosso objetivo trazer o pessoal mais idoso da nossa terra, os sábios, que vão passar a vivência deles. E juntar os jovens para escutar as histórias e saber porque vale a pena valorizar. A gente tem história: as cirandas, capoeira, folia, São Gonçalo, Santos Reis. Isso faz parte da nossa vida, do nosso ser, vem dos nossos antepassados. Essas tradições estão se perdendo. Mas se a gente conseguir trazer todo mundo pro lado nosso, chegamos ao auge e, aí, vai continuar pra sempre”.
José Astério: “Temos que frisar que as pessoas, às vezes, brincam na folia, no São Gonçalo, sem saber da origem. A gente também não sabia e com esse trabalho de campo, está começando a entender o porquê de tudo isso”.
Em Riacho da Cruz, empreendedores inspiram comunidade
No quarto dia de viagem, a equipe do Cidadania visitou o distrito de Riacho da Cruz, especificamente Alegre, em Januária, onde algumas experiências inspiraram os moradores. Uma das empreendedoras locais é Lucilene Rodrigues da Silva, da Associação de Moradores de Alegre.
Filha de horticultores, Lucilene desenvolve há anos programas com hortas comunitárias. “Por seis anos, atuei num desses aqui na minha terra, mas devido a problemas de saúde, tive que me afastar”, afirmou. Ela continuou trabalhando em casa, plantando verduras e legumes orgânicos utilizados no consumo próprio e no comércio.
Ao saber que o Cidadania Ribeirinha promoveria cursos no local, Lucilene Silva se inscreveu. E fez a formação de agentes populares de educação ambiental na agricultura familiar.
Depois, concluiu a capacitação sobre implementação de Projetos Comunitários de Educação Ambiental (PCEAs), envolvendo horta/horto, recuperação de nascentes, resíduos sólidos e extrativismo. “Todos os treinamentos foram muito importantes, porque adquirimos com eles conhecimento que vai ser aplicado agora na horta comunitária”, elogiou.
Antes disso, Lucilene já buscava conhecimento por meio de cursos que lhe ensinaram como aumentar a produtividade e melhorar a qualidade dos alimentos. “Não deixei de plantar o que eu plantava, só passei a buscar técnicas diferenciadas com o objetivo de ter qualidade de água e não desperdiçá-la, usar cobertura morta e obter bons produtos”, relembrou.
Tamanho empreendedorismo resultou na escolha dela em Januária como beneficiária do Uma Terra e Duas Águas (P1+2), programa da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) em parceria com o Governo Federal e a Caritas Brasileira.
O projeto consiste na construção do chamado calçadão, composto por uma cisterna com capacidade de até 52 mil litros colocada junto a uma área cimentada de 200 m², que capta água da chuva. O sistema permite que o líquido captado abasteça um sistema de irrigação manual ou por gotejamento que pode ser usado em uma horta, um viveiro de mudas ou na dessedentação de animais. “Se a gente quiser ficar com água em abundância é importante zelar pela que tem”, afirma a empreendedora.
Bom Exemplo - Outra experiência que salta aos olhos em Riacho da Cruz é a Escola Estadual Antônio Corrêa e Silva, também em Alegre. Ela implantou um Sistema Integrado de Produção de Alimentos Agroecológicos, o que levou o idealizador e diretor da escola, Odair Nunes de Almeida, a ganhar o prêmio Bom Exemplo 2018, da Rede Globo, na categoria Educação.
No local, o diretor Odair e a equipe escolar desenvolvem atividades que permitem a inclusão social de crianças, jovens e adolescentes carentes da região. Funcionam na escola: criatório de tilápias, minhocário, hortas orgânica e hidropônica, galinheiro, área de compostagem, sistema de placas de captação de água de chuva e pomar.
Além de produzir alimentos saudáveis, preparados na merenda escolar - frutas, verduras, legumes e peixes - todo o aparato é utilizado pelos professores como ferramenta de aprendizagem. “O sistema se transformou num laboratório vivo para as ciências da natureza e humanas, matemática e todas as disciplinas do currículo geral”, destaca Odair Almeida.
Adobe - Lucilene Rodrigues matriculou seus filhos na escola e é uma das entusiastas do projeto. Ela orientou inclusive no treinamento de pessoas que hoje cuidam da horta escolar. Com a ajuda de alunos, a empreendedora construiu uma casa de adobe, que funciona como um espaço de lazer e conhecimento da história do quilombo.