Crise hídrica afeta comunidades do Cidadania Ribeirinha
Falta de água preocupa população de povoados às margens do Rio São Francisco no Norte de Minas.
01/09/2015 - 10:00“De vez em quando, falta água aqui”. “A questão hídrica é o nosso principal problema”. “A nossa maior dificuldade é com a pouca água”. “O maior problema da minha comunidade é a falta de água”. Todos esses depoimentos, dados por moradores do Norte de Minas, ilustram o drama da escassez hídrica que vivem os ribeirinhos de comunidades de Januária e São Francisco, que participam da segunda edição do Cidadania Ribeirinha, projeto da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) financiado pelo Fundo Nacional de Meio Ambiente (FNMA).
Desde agosto, o Cidadania Ribeirinha está promovendo nas comunidades de Várzea Bonita, São Joaquim e Riacho da Cruz, em Januária, e Bom Jardim da Prata, Retiro e Jiboia, em São Francisco, o Curso de Formação de Agentes Populares de Educação Ambiental na Agricultura Familiar. A finalidade é transmitir ou sistematizar novos conhecimentos, bem como valorizar saberes tradicionais e formar multiplicadores dessas informações, na forma de lideranças já conhecidas ou novos líderes que vão fomentar um “empoderamento” dessas comunidades.
A falta de água será um tema recorrente nas discussões do curso, uma vez que já é uma realidade presente no dia a dia da população, que convive com um “Rio São Francisco poluído e assoreado”, nas palavras do coordenador do Cidadania Ribeirinha, Márcio Santos. “Na verdade, a crise hídrica nessa região já é um problema de décadas”, afirma. “O esgotamento dos cursos hídricos já é realidade na região, com efeitos drásticos sobre o Rio São Francisco. Os professores do Cidadania Ribeirinha estão tendo a oportunidade de testemunhar esse triste quadro socioambiental e a missão de, por meio do conhecimento, trazer de volta a esperança para essas comunidades ribeirinhas”, continua.
Córrego seco – Na comunidade de Riacho da Cruz, em Januária, por exemplo, o córrego que dá nome à cidade secou. A localidade conta com cerca de quatro mil pessoas (cerca de mil famílias). Segundo o presidente da Associação de Pequenos Produtores Rurais de Riacho da Cruz, Marcos Lopes, há dez anos o córrego, que era perene, vinha sempre secando no mês de julho, época comum da seca no local. “No entanto, ele secou pela primeira vez na época das águas. Em dezembro do ano passado, 'correu' só uns 15 dias e 'acabou' totalmente em janeiro deste ano”, relata. Segundo Marcos Lopes, desde então o córrego está seco.
“Nossa maior preocupação é, mesmo, a recuperação do riacho”, afirma o ex-presidente da Associação de Riacho da Cruz Hamilton Viana. Ele conta que, atualmente, a comunidade “vive” dos sete poços artesianos do local. “No entanto, se o rio secou, provavelmente, se não tomarmos uma providência, vão secar também os poços, que já começaram a baixar. Na nossa região, estudos mostram que o lençol freático já baixou de 6 a 10 metros”, conta.
Uso indiscriminado da água preocupa
Na opinião de Hamilton Viana, irrigantes e pequenos produtores tornam-se um problema quando fazem uso indiscriminado da água. “Mas acho que isso vai ficar fácil de conscientizar. Antigamente, eram duas safras de feijão e uma de arroz por ano. Hoje, não se produz nada. Portanto, quando você não consegue convencer a pessoa pelo amor, vem pela dor. E a dor hoje é a falta de água, que impede que plantem e faz com vivam de Bolsa Família (programa social do Governo Federal) ou de filho que foi morar em São Paulo”, afirma.
Segundo ele, as pessoas estão indo embora de Riacho da Cruz. “Como ficar em um lugar em que não chove e onde a água do rio acabou?”, questiona. Uma das formas de mitigar o problema, na visão de Hamilton Viana, seria a construção de uma barragem na região, que já foi licitada pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), órgão do Governo Federal. Ele conta que o projeto está pronto e que toda sua fundação já foi feita.
A barragem possui cerca de 480 metros de largura e 38 de altura. “Sua capacidade de armazenamento é de 22 milhões de metros cúbicos de água, ou seja, um espelho d'água de 204 hectares. Se já estivesse construída, já poderíamos ter 'segurado' a água da chuva de dezembro, que foi muita, e, assim, poderíamos atravessar melhor esse período da seca”, acredita.
O presidente da Associação de Pequenos Produtores Rurais de Riacho da Cruz, Marcos Lopes, acredita que o Cidadania Ribeirinha vai contribuir para reverter a situação de seca da região. “O curso vai enriquecer as pessoas de conhecimento. Os alunos vão ser propagadores de informações sobre como podemos revitalizar o córrego”, opina. Hamilton Viana concorda: “o projeto fará um trabalho de conscientização ambiental importante para a comunidade”.
Represa de Jiboia está com menos de um terço de sua capacidade
A escassez de água também atinge a comunidade de Jiboia, em São Francisco. Segundo o presidente do Conselho Municipal de Conservação e Defesa do Meio Ambiente (Codema), João Naves de Melo, a Represa da Jiboia passa por momento crítico nos últimos dois anos. “Seu nível está só caindo. Está assoreada demais e com menos de um terço de sua capacidade. Ela depende totalmente da água da chuva hoje em dia”, conta. Ele acrescenta que a represa tinha profundidade de 15 metros e, atualmente, está com cerca de cinco.
Além da comunidade de Jiboia, a única a receber água tratada pela Copasa, a represa, construída pela Codevasf há 30 anos, atende a outras 11 comunidades da região, beneficiando cerca de 12 mil pessoas. “Na época em que foi criada, ficou estabelecido que a represa serviria ao consumo humano e para irrigação, desde que não prejudicasse o uso dos moradores”, conta João Naves. Para ele, boa parte dos problemas da represa começa nesse ponto. “Esse item do contrato faz muitos irrigantes acreditarem que têm o direito de usar a água à vontade e aí começa o conflito”, afirma.
Na opinião de João Naves, o uso indiscriminado da água por parte dos irrigantes, como ocorreu em Riacho da Cruz, poderá fazer secar a represa. O presidente do Codema/São Francisco sugere que todas comunidades atendidas façam uso de hidrômetros, como forma de racionar o uso. “No entanto, um dificultador para regular o consumo é o fato de haver outro conflito, dessa vez, na gestão da represa”, explica.
Segundo João Naves, já foi feito o pedido à Codevasf para passar a administração para o município de São Francisco, como forma de promover uma gestão mais próxima da água. Enquanto a questão não é resolvida, foi criada uma comissão gestora formada por membros das comunidades atendidas pela represa. “Há um representante dos irrigantes, e tudo é decidido no voto. As ações que a comissão vem tomando já estão provocando a diminuição do uso abusivo da água, mas ainda tem muito conflito (entre usuários, moradores e irrigantes)”, ressalta.
Para vereador, é preciso mudar cultura sobre consumo de água
Para o vereador e presidente da Associação Comunitária de Jiboia, José Delvan da Silva, “se não cuidarmos da represa, ela vai morrer”. Segundo ele, atualmente, “ela está em estado de alerta”. Delvan também acredita que seja preciso mudar a cultura sobre o consumo de água por parte, principalmente, de alguns irrigantes. “Muitos tratam a represa como particular. Se o uso não for consciente, vai haver risco para o consumo humano”, argumenta.
Sobre a falta de consenso sobre a administração da represa, ele concorda com João Naves sobre a necessidade de se definir claramente um responsável. “Estamos no vácuo. Há conflito administrativo, não se sabe quem deve geri-la”, afirma. Ele também defende que a prefeitura de São Francisco assuma a administração para que o uso seja mais racional, evitando desperdício de quem atualmente não paga pelo uso da água.
Na opinião dos presidentes da Associação Comunitária de Jiboia e do Codema/São Francisco, o Cidadania Ribeirinha pode contribuir para disseminar o uso consciente da água da represa e para se chegar a um consenso sobre uma gestão adequada do local. O vereador sugere, ainda, que a importância da conservação do solo para preservação da represa também seja um dos tópicos a serem abordados nas turmas do Curso de Formação de Agentes Populares de Educação Ambiental na Agricultura Familiar em Jiboia.
Bom Jardim da Prata – Na comunidade quilombola de Bom Jardim da Prata, em São Francisco, a questão da água também é um “problema grave”, segundo João Naves. Ele explica que lá existem dois poços artesianos para atender toda a comunidade, que conta com cerca de 585 famílias (aproximadamente 3.400 pessoas). Porém, um dos poços está em terreno privado, e, “atualmente, o proprietário acha que é o dono do poço”. Segundo ele, a comunidade e o proprietário vivem em briga. “E lá, apesar de o Rio São Francisco correr próximo, sua água é imprópria para uso”, acrescenta.
Embora a comunidade faça uso, portanto, de praticamente apenas um poço artesiano, João Naves diz que existe água suficiente para os moradores. “No entanto, há problema, sim, de abastecimento. É comum a água não chegar para todo mundo”, afirma.
O líder comunitário de Bom Jardim da Prata, José dos Passos, aponta a questão hídrica como o principal problema do local. Ele disse que alguns programas do Governo Federal, como o Água para Todos, “salvam” a região. “Em alguns locais, entretanto, já falta água para beber”, afirma. Em sua opinião, o curso do Cidadania Ribeirinha vai despertar as pessoas sobre como se organizar para que, unidos, possam buscar mecanismos para sanar esse e outros problemas dentro do território quilombola.
O Cidadania Ribeirinha é focado em municípios pertencentes à Bacia do São Francisco que apresentam baixos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH). O sucesso da primeira edição ajudou que o projeto fosse um dos 19 selecionados entre 240 inscritos em todo o País para receber recursos do FNMA, repassados por meio do Banco do Brasil.