Aleijadinho, barroco de corpo e alma
Comemoração do bicentenário da morte do artista mineiro, em 2014, coloca em primeiro plano a permanência de sua obra.
Um mito que foi apropriado de formas diferentes em diversos contextos da história brasileira. Uma referência não só de arte, mas também de linguagem e pensamento coloniais. Uma mercadoria disputada por colecionadores do patrimônio artístico nacional. Essas são algumas das muitas e possíveis definições de um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos, próximo do bicentenário de sua morte: Antônio Francisco da Costa Lisboa, o Aleijadinho.
Para embaralhar e ampliar as leituras em torno do mestre, muitos fatos de sua vida estão cercados de mistério. Aleijadinho pode ter nascido em 1730 ou em 1738; ele provavelmente sofria de hanseníase ou, talvez, de outra doença; o artista teria criado centenas de obras ou talvez o número não seja tão grande assim. Para contar sua história é preciso se valer de verbos no modo condicional e advérbios de dúvida.
Contudo, é certo que o genial criador dos 12 profetas de pedra-sabão em Congonhas (sua obra máxima de escultura) e da Igreja de São Francisco de Assis em Ouro Preto (sua obra máxima de arquitetura e ornamentação) morreu no dia 18 de novembro de 1814. E outra certeza ilumina a obra criada por ele: em 2014, 200 anos depois de sua morte, está ainda mais viva a admiração em torno de seus notáveis projetos arquitetônicos, estatuárias, relevos e talhas.
Maior expoente da arte colonial no Brasil, sua obra está toda em Minas, nas cidades de Ouro Preto, Sabará, São João del-Rei e Congonhas. Em 18/11/13 é comemorado o Dia do Barroco Mineiro, instituído pela Lei 20.470, de 2012, uma iniciativa da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). Essa legislação origina-se do Projeto de Lei (PL) 3.396/12, do deputado Dinis Pinheiro (PP), presidente da ALMG, e é regulamentada pelo Decreto 46.309, de 2013, do governador.
A lei determina que 2014 é o Ano de Comemoração do Bicentenário de Aleijadinho, e que, anualmente, em 18 de novembro, sejam realizadas no Estado atividades com o objetivo de preservar, valorizar e divulgar o patrimônio histórico, artístico e cultural vinculado ao Barroco Mineiro, à obra de Antônio Francisco Lisboa e aos demais expoentes desse estilo.
“Nossa intenção, ao propor aos colegas parlamentares a dupla homenagem ao maior artista plástico de nossa história, foi buscar dar a ele um reconhecimento popular similar ao que ele já adquiriu nos meios artísticos e acadêmicos, como artista genial”, afirma o deputado Dinis Pinheiro. Além disso, o parlamentar destaca que essa riqueza do Estado é algo que precisa ser celebrado permanentemente. “Dessa forma, toda a sociedade mineira pode dar a sua contribuição para a manutenção e divulgação desse grande patrimônio, simbolizado pela figura de Aleijadinho”, acrescenta.
“Já havia passado da hora de instituir um dia para celebrar essa fase tão importante da arte brasileira, que é o Barroco. O Barroco Mineiro se destaca nacionalmente e, fora do Brasil, ele é super-respeitado nos países em que as pessoas conhecem esse estilo artístico. Cumprimento o presidente da ALMG, deputado Dinis Pinheiro, pois é isso que esperamos dos homens públicos: que reconheçam a importância da cultura e que ela seja devidamente valorizada”, afirma a empresária, colecionadora de arte e empreendedora cultural Ângela Gutierrez.
O diretor de Patrimônio da Prefeitura de Congonhas, Luciomar Sebastião de Jesus, avalia que a obra de Aleijadinho é a primeira manifestação artística genuinamente brasileira. Estudioso da obra do artista, ele busca o ser humano atrás do gênio. “Estou mitificando, sim. O mito faz parte da figura. Aleijadinho era barroco de corpo e alma”, atesta.
Ele deu uma nova roupagem para o Barroco. “Tem algo do barroco alemão, do litorâneo, mas é algo novo. Um exemplo são os cabelos dos santos. Eles têm a forma de espiral, tal como no alemão, mas é algo diferente. Aleijadinho termina com voluta, ou seja, forma serpenteada de espiral”, diz o diretor.
O valor estético e artístico da obra de Aleijadinho foi percebido de diversas formas, através dos séculos. Como explica o escritor e professor da Universidade de São Paulo (USP), João Adolfo Hansen, no século XVIII, o escultor/arquiteto Aleijadinho e outros artesãos de oficinas que faziam obras com o estilo dele eram reconhecidos pela aptidão artística com que executavam encomendas das diversas irmandades religiosas da região de Vila Rica, Sabará e São João del-Rei.
“No século XX, o nome Aleijadinho passou a significar um artista genial, 'mulato façanhudo', na fórmula de Mário de Andrade, que expressou sua condição colonial-racial subordinada em obras expressionistas que revelam seu inconformismo sociopolítico. E também o nome de uma mercadoria original e rara, disputada por colecionadores de 'arte colonial mineira' ou 'Barroco Mineiro', completa Hansen.
A professora da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Guiomar de Grammont, lançou em 2008 “Aleijadinho e o aeroplano: o paraíso barroco e a construção do herói colonial”, fruto de tese defendida na USP seis anos antes. O livro despertou polêmica, por defender algumas posições que afrontaram o cânone já formado em torno de Aleijadinho até então. Na opinião de Grammont, há muitos Aleijadinhos .
“Aleijadinho é um mito que foi apropriado de formas diferentes em diversos contextos da história brasileira. Para o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) do século XIX, regido por Dom Pedro II, por exemplo, interessava enfatizar um personagem branco, filho de pai português; para o modernismo, interessava o mestiço, filho de uma escrava... São Aleijadinhos muito diferentes entre si, não? E houve outros mais, ao longo da história da arte nacional brasileira”, destaca a professora.
Guiomar de Grammont considera que esses diferentes Aleijadinhos foram sobrepostos à vida de Antônio Francisco Lisboa, um homem simples, que trabalhou com dificuldade como mestre de um ateliê que reunia outros escultores, alguns deles escravos. “Teve um talento para a escultura prodigioso e menos reconhecido em seu tempo do que na atualidade. Foi pardo e trabalhou em igrejas de brancos, as quais certamente não podia frequentar depois, o que me toca profundamente”, completa.
Memorial de Aleijadinho deve ser inaugurado em 2014
Foi em julho deste ano que o doutor em Musicologia e conselheiro da Fundação Padre Anchieta de São Paulo, Maurício Monteiro, esteve em Congonhas. Ele diz que, por ser uma região mineradora, deveriam ser criadas formas alternativas de preservação dos profetas esculpidos em pedra-sabão, como redomas de polietileno ou vidro.
“Não penso que tirar os profetas dos lugares onde foram criados seja uma solução. Uma coisa é pensar a obra como atração turística ou arte; outra é observá-la como parte integrante de um conjunto maior que, nas perspectivas e pensamentos das Minas do século XVIII e XIX, era a religiosidade”, explica.
O musicólogo, residente em São Paulo, refere-se à possibilidade de os profetas serem transferidos para o Centro de Estudos da Pedra e Centro de Referência do Barroco, museu que está sendo construído em Congonhas. Mas nada ainda foi decidido, segundo o diretor-presidente da Fundação Municipal de Cultura, Lazer e Turismo de Congonhas (Fumcult), Dener Alexandro Pereira.
Em 2003 surgiu a ideia do museu, concebido pelo Ministério da Cultura, Iphan e Prefeitura de Congonhas. A licitação para a primeira fase da obra saiu em 2008. Dez anos depois da ideia inicial, o memorial voltado para as obras de Aleijadinho ainda não ficou pronto. Segundo Pereira, já foram captados R$ 1,8 milhão do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e é necessário captar mais R$ 1,8 milhão, também com o BNDES, para completar a obra. Depois de muitas previsões, Pereira prevê que o museu fique pronto até meados do ano que vem, com estrutura metálica, ar condicionado, elevador e cuidados com acessibilidade.
Ouro Preto - Em Ouro Preto, o Museu Aleijadinho foi criado em 1968, pelo então pároco, padre Francisco Barroso Filho. O museu, que passou em 2007 por uma revitalização museológica e museográfica, funciona em um circuito que reúne três igrejas históricas: São Francisco de Assis, Nossa Senhora das Mercês e Perdões e o Santuário Nossa Senhora da Conceição. O santuário, construído pelo pai de Aleijadinho, o mestre de obras português Manuel Francisco Lisboa, é uma das mais antigas paróquias de Minas (1707).
A historiadora da Arte e consultora cultural Cristina Ávila é também diretora da Revista Barroco, cuja nova edição será lançada nesta segunda-feira (18), na ALMG. Para ela, há agora um crescente interesse de parte de empresas privadas em investir no patrimônio público material e imaterial. “Mas a ação e fiscalização de seu patrimônio cabe, especialmente, a iniciativas de nossos representantes legais e democraticamente eleitos, cujo exemplo da ALMG, com a criação da lei que consolidou o Dia do Barroco Mineiro é importantíssimo. Ao valorizar o seu patrimônio, Minas Gerais ganhará visibilidade nacional e internacional”, diz Cristina Ávila.
Enfermidade do artista ainda é mistério
A alcunha de Aleijadinho surgiu com a perda dos dedos dos pés e alguns das mãos, a atrofia e o curvamento das mãos, bem como a desfiguração facial. Contudo, nada disso o impediu de esculpir obras monumentais. A enfermidade é um dos mistérios que cercam a história do artista. Uma futura descoberta do mal que o acometia poderia esclarecer algumas de suas atitudes.
Em 1997, o médico Geraldo Barroso de Carvalho, especialista em dermatologia e hanseníase, coordenou uma equipe que exumou os restos mortais de Aleijadinho em Ouro Preto. De Barbacena (Região Central do Estado), Carvalho diz que é possível afirmar, hoje, que o artista tinha hanseníase. Ele também investigou a possibilidade de Aleijadinho ter também outra doença, a porfiria, distúrbio que afeta a síntese da heme, parte da hemoglobina sanguínea. Porém, o médico ressalva que a porfiria é só uma hipótese, e, portanto, sua ocorrência não está provada.
“Mas há algumas características que apontariam para essa possibilidade: ossos avermelhados, presença de muito ferro e fotossensibilidade (que teria relação com seu hábito de só sair à noite, para evitar o sol), afirma Geraldo de Carvalho. Ele sugere a exumação dos ossos de Manuel Francisco Lisboa, pai de Aleijadinho, que estão na mesma igreja.
ANO |
FATO |
1730 |
Nasce em Vila Rica (atual Ouro Preto) Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. |
1766 |
Início da construção da Igreja de São Francisco em Vila Rica (Ouro Preto). |
1767 |
Morre o pai, o arquiteto e mestre de obras português Manuel Francisco Lisboa. |
1768 |
Alista-se no Regimento da Infantaria dos Homens Pardos de Ouro Preto. |
1775 |
Nasce seu filho com Narcisa Rodrigues, batizado de Manoel Francisco Lisboa. |
1777 |
Primeiras notícias sobre sua misteriosa enfermidade. |
1790 |
Começa a ser chamado pela alcunha de Aleijadinho. O capitão Joaquim José da Silva escreve memorando sobre ele para a Câmara de Mariana. |
1800 a 1805 |
Elaboração dos 12 profetas de pedra-sabão em Congonhas. |
1814 |
Morre em 18 de novembro em Vila Rica (atual Ouro Preto), e seu corpo é sepultado na Matriz de Antônio Dias. |
1858 |
Primeira biografia sobre o artista, de Rodrigo José Ferreira Bretas: “Traços biográficos relativos ao finado Antônio Francisco Lisboa, distinto escultor mineiro, mais conhecido pelo apelido de Aleijadinho”. |