Soluções simples podem minimizar crise hídrica em Minas
Captação de água da chuva e proteção dos mananciais são práticas recomendadas por especialistas.
Os “meninos do Dolfinho”, apelido que ganharam em função da popularidade do pai, são cinco irmãos solteiros, entre 45 e 55 anos, que vivem juntos e em harmonia no sítio onde nasceram, no distrito de Souza, da pacata Rio Manso, na Região Metropolitana de Minas Gerais (RMBH). O engenheiro mecânico Euler de Carvalho Cruz mora na agitada Belo Horizonte, num recanto da cidade, com sua esposa e filhas. Embora nem se conheçam e estejam a mais de 60 quilômetros de distância, eles compartilham de um mesmo ideal: cultuar uma vida simples e sustentável, com respeito à natureza e uso racional de seus recursos.
Para isso, as duas famílias, de hábitos muito diferentes, lançam mão de formas também distintas, mas de objetivos iguais. Ambas não apenas protegem o meio ambiente, como contribuem para melhorá-lo.
A busca de soluções para enfrentar a escassez de água vivida atualmente pelo Brasil é um dos objetivos do Seminário Legislativo Águas de Minas III - Os Desafios da Crise Hídrica e a Construção da Sustentabilidade, cuja etapa final será realizada na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) entre 29 de setembro e 2 de outubro.
Maurício, Lindolfo, José, Gilmar e Carlos, que carregam o nome da família Vieira Morais, dividem o mesmo espaço e o trabalho para manter a propriedade de aproximadamente 75 hectares, dos quais 20% totalmente preservados. Eles se revezam nos afazeres domésticos e na responsabilidade de preservar as três nascentes contidas ali (e também as demais espalhadas pela região), além de manter vigília sobre o que acontece no entorno.
Entre as tarefas ambientais, os irmãos fincam mourões e instalam cercas de arame farpado ao redor das nascentes para espantar animais e intrusos, combatem focos de incêndio e regulam o fluxo da água que abastece todo o sítio. A propriedade dos meninos de Dolfinho não utiliza água da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) - vive do líquido puro oferecido pelas nascentes.
Maurício conta que o cuidado com o meio ambiente foi ensinado pelo pai Lindolfo, o Dolfinho, que há aproximadamente 60 anos enfrentou uma seca tão grande quanto a atual. “Ele já falava que um dia podia faltar água novamente e que a gente sempre tinha que deixar sombra onde havia água”, lembra o mais velho dos irmãos.
Tecnologia simples assegura economia
Euler Cruz é quase um Professor Pardal, o cientista gênio dos quadrinhos criado por Walt Disney. Em sua casa no bairro Cidade Taquaril, zona leste de Belo Horizonte, ele montou uma parafernália que garante água em abundância e energia de sobra.
Em um dos reservatórios, com capacidade para 48 litros, é captada água de chuva que escorre pelo piso da propriedade e é utilizada para lavar roupa, molhar as plantas e manter limpo o quintal. O líquido passa por uma tela para reter os resíduos e é represado para assegurar o consumo por aproximadamente seis meses.
Em outra caixa, de 50 mil litros, Euler coleta a água que vem pelo telhado e também é filtrada por telas de nylon, para o consumo na alimentação. O engenheiro já fez exames químicos e bacteriológicos e constatou que essa água apresenta pH (escala que mede o nível de acidez, neutralidade ou alcanilidade de líquidos) entre 8,5 e 9 e pureza superior à oferecida pela Copasa.
A água que abastece a casa de Euler Cruz é levada às caixas por bombas movidas a energia solar, recurso que também é usado para a iluminação e aquecimento dos chuveiros. E o líquido também é reutilizado: passa por reservatórios de tratamentos anaeróbico e aeróbico, construídos pelo engenheiro, e é reaproveitado na irrigação das plantas.
A tecnologia utilizada pelo engenheiro é de fácil aplicação. Para o tratamento anaeróbico, ele pica mangueiras usadas em instalações elétricas e as coloca em sacos de telas de nylon, acomodando-as na caixa de decantação. Ali são cultivadas bactérias que digerem os resíduos da água.
No reservatório para o tratamento aeróbico, que recebe a água do anterior, são instalados sopradores de ar (um tipo de ventilador) para estimular o surgimento de bactérias que vão eliminar os outros resíduos. Finalmente, a água vai para uma caixa de areia que retém as bactérias e os resíduos sólidos, para depois ser liberada para uso final. E o material orgânico ainda é aproveitado como adubo no quintal. A água vinda do esgoto, por sua vez, é destinada a uma fossa séptica.
“Há uma cultura de que tudo tem que ser artificial. As pessoas precisam voltar a ter contato com a natureza, até para destruir menos. Não há por que comprar água e desperdiçar a que chega de graça”, afirma o engenheiro. Em sua opinião, se o Estado construísse caixas de captação, economizaria no tratamento de água e, ainda, preservaria os mananciais.
Euler também aproveita a luz do sol para gerar energia. Com placas fotovoltaicas, consegue gerar o dobro do que precisa - o excedente é fornecido para a Cemig. “Uma casa sustentável traz retorno financeiro e ambiental”, assegura. O investimento em energia solar, segundo ele, tem retorno no prazo de cinco anos.
Especialistas apresentam sugestões
É consenso entre os especialistas a necessidade de melhor gestão das águas para evitar futuras crises como a que se instalou na Região Sudeste nos últimos dois anos. A coleta da água da chuva é citada por todos como forma de aproveitar o recurso, até mesmo para suprir a demanda na época de estiagem.
A secretária-executiva do Conselho de Empresários para o Meio Ambiente da Federação das Indústrias de Minas Gerais (Fiemg), Patrícia Boson, sugere a construção de mais reservatórios para acumulação de água durante a época de chuva, de modo a enfrentar a diminuição da oferta durante o período de seca. Ela lembra que os principais reservatórios brasileiros, como o sistema Cantareira, de São Paulo, foram construídos ainda na década de 1970.
Como boa prática de gestão de recursos hídricos, Patrícia Boson cita o exemplo do Aquapolo de São Paulo, considerado o maior empreendimento para a produção de água de reúso industrial na América do Sul e quinto maior do planeta.
O aquapolo é uma parceria entre a Odebrecht Ambiental e a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp). A concessionária fornece 650 litros/segundo de esgoto da estação de tratamento (ETE) do ABC. Esse esgoto, que recebe tratamento primário, é transformado em água de reúso e fornecido para o polo petroquímico da região, para a produção industrial. Conforme informações da empresa, o volume equivale ao abastecimento de uma cidade de 500 mil habitantes, o que contribui para o aumento da oferta de água potável para a Região Metropolitana de São Paulo.
Outras sugestões para o enfrentamento da crise hídrica e melhoria da gestão das águas são apresentadas pelos especialistas. O assessor de Meio Ambiente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Minas Gerais (Fetaemg), Eduardo Nascimento, defende a ampliação de políticas de pagamento por serviços ambientais (como a Bolsa Verde) e de subsídios para reduzir o custo da energia com irrigação para agricultores familiares, como forma de estimular práticas mais sustentáveis e que exijam menos recursos naturais. Ele também sugere políticas que estimulem o consumo racional e a expansão dos serviços de saneamento.
A superintendente da Associação Mineira de Meio Ambiente (Amda), Maria Dalce Ricas, adverte para a necessidade de um diagnóstico das bacias hidrográficas para traçar um plano mais eficiente de gestão. “Só conhecendo as demandas é possível traçar as prioridades”, justifica.
Todos também concordam que o enfrentamento da crise precisa do envolvimento de toda a sociedade – poder público, empresas e cidadãos. “É necessário quebrar o paradigma cultural do desperdício”, alerta o gerente de Pesquisa e Desenvolvimento de Recursos Hídricos do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam), Thiago Figueiredo Santana.
Nesse contexto, a educação ambiental torna-se fundamental. Os especialistas defendem políticas públicas para expandir a conservação ambiental, valorizar o recurso e implantar práticas de uso racional da água. “O respeito, o acesso, o múltiplo uso têm que estar presentes em todo o processo”, complementa Thiago Santana.
"Os municípios, comitês de bacias e órgãos de regulação precisam se unir para pensar estratégias de preservação e utilização da água. Assim, será possível evitar, por exemplo, a poluição gerada pelo despejo irregular de esgoto nos mananciais", afirma o presidente da Comissão Extraordinária das Águas da ALMG, deputado Iran Barbosa (PMDB).
Tratamento de esgoto - Em Minas Gerais, são poucas as cidades que realizam o tratamento do esgoto doméstico. Na maioria, os dejetos são despejados diretamente nos cursos d´água. E mesmo onde há o tratamento, como na RMBH, é implantada apenas a fase secundária, que somente retira os resíduos sólidos.
A sugestão dos especialistas é o tratamento terciário, que devolveria a água totalmente limpa para os cursos d´água, contribuindo para sua recomposição e facilitando o tratamento, depois, da água destinada ao consumo.
Força-tarefa para enfrentar a crise hídrica
A diretora-geral do Igam, Maria de Fátima Chagas Dias Coelho, afirma que ainda neste ano será lançado o Plano Estadual de Segurança Hídrica, alinhado à política implantada pelo Governo Federal. Para tanto, foi criada uma força-tarefa composta por técnicos de todas as secretarias de Estado, para fazer um diagnóstico das áreas críticas em Minas Gerais.
Baseado nesse diagnóstico, serão propostas ações de infraestrutura hídrica, de recuperação de cobertura vegetal e de conservação de bacias. A gestão vai considerar, segundo a diretora, os períodos de escassez e excesso de chuvas.
Dentre as propostas, o plano vai buscar estimular o uso adequado da água entre os usuários, a implantação de tecnologias que permitam a economia do recursos nas empresas e a sensibilização da sociedade para o problema. Também será abordada a necessidade de se ampliar o tratamento de esgoto para evitar a poluição dos mananciais e reduzir os investimentos para a limpeza da água contaminada.