Feminicídio: o assassinato de mulheres
Apesar da conquista de direitos, mulheres ainda são vítimas da violência de gênero.
Eloá Pimentel, 15 anos, foi mantida em cárcere privado durante cinco dias pelo ex-namorado e depois assassinada. Sandra Gomide, 32 anos, levou um tiro nas costas e na cabeça, disparados pelo ex-namorado. Ângela Diniz, 32 anos, foi morta a tiros em sua casa de praia pelo namorado. Daniella Perez, 22 anos, foi morta com 18 punhaladas pelo colega de trabalho e sua esposa. Eliza Samudio, 25 anos, foi estrangulada e esquartejada a mando do ex-namorado, e seu corpo nunca foi encontrado.
Todos esses casos - que ganharam as manchetes dos jornais e mobilizaram a opinião pública - têm em comum o fato de serem feminicídios. O tema será abordado no Debate Público Trabalhando em Rede no Enfrentamento à Violência contra a Mulher, que as Comissões de Direitos Humanos e de Segurança Pública da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) promovem na próxima segunda-feira (2/12/13). O evento foi solicitado pelas cinco deputadas que compõem a bancada feminina na ALMG e também pelo deputado Dalmo Ribeiro Silva (PSDB), que em 2012 presidiu a Comissão Especial da Violência contra a Mulher.
A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Violência Contra a Mulher do Congresso Nacional deu a seguinte definição ao termo, constante do Projeto de Lei Federal 292/13, que tramita no Senado: “Denomina-se feminicídio a forma extrema de violência de gênero quando há uma ou mais das seguintes circunstâncias: I – relação íntima de afeto ou parentesco, por afinidade ou consanguinidade, entre a vítima e o agressor no presente ou no passado; II – prática de qualquer tipo de violência sexual contra a vítima, antes ou após a morte; III – mutilação ou desfiguração da vítima, antes ou após a morte”.
A socióloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), Wânia Pasinato, reforça que, apesar de o Mapa da Violência 2012 mostrar que 41% das mortes de mulheres ocorrem dentro de casa, o feminicídio não acontece apenas nas relações domésticas e familiares. Isso acontece na maior parte dos casos, mas a morte devido à condição de gênero também se dá em outros contextos. “Esse é um campo sobre o qual ainda não nos debruçamos com cuidado. O foco tem sido nas relações sexuais, mas não pode ser restrito a isso”, explica.
A pesquisadora, feminista e doutoranda em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Cynthia Semíramis, vai além e classifica a impunidade dos crimes de feminicídio como “legitimação da violência”. “A morte de mulheres é uma forma de forçá-las a se manterem subordinadas aos homens, para que não sofram mais violência ou para que não tenham o mesmo fim de outras que foram mortas por não obedecerem a essa cultura misógina. Isso significa crimes de ódio a um grupo específico, alimentado ao longo de séculos por um processo de discriminação jurídica e social”, afirma.
O termo feminicídio, estranho à maioria das pessoas, tipifica um crime comum: o assassinato de uma mulher pela condição de ser mulher. |
O Projeto de Lei Federal 292/13 prevê alteração no Código Penal para que o feminicídio passe a ser circunstância qualificadora do crime de homicídio. Segundo Cynthia Semíramis, a iniciativa é de grande importância. “Tipificar o feminicídio vai além do âmbito privado. Significa reconhecer que houve uma mudança social que faz com que as mulheres hoje não tenham mais a obrigação de serem subordinadas aos homens e se tornem sujeitos de direito que devem ser protegidos pelo Estado para que não sofram mais violência de gênero”, completa.
A socióloga da USP sugere que o projeto seja alvo de discussões maiores e mereça a atenção de toda a sociedade. “O Estado precisa dar uma resposta para o problema. Mas é preciso debater mais, para não qualificar apenas um conjunto de crimes, deixando de fora outras situações de violência, e para não excluir as mulheres das políticas públicas, deixando-as numa situação ainda pior do que temos hoje”, defende.
O coordenador do Centro Risoleta Neves de Atendimento (Cerna), Diego Garzon, considera que a inclusão do feminicídio como circunstância qualificadora dos assasinatos é uma questão fundamental. “Temos que quebrar essa relação de poder, para equiparar homens e mulheres. É uma questão cultural muito arraigada e abrangente. Até atingirmos a igualdade de direitos, é algo que precisa ser feito”.
De acordo com o psicólogo, dados da Organização das Nações Unidas (ONU) revelam que sete de cada dez mulheres sofrem, sofreram ou sofrerão violência no País. “Ser mulher no Brasil, hoje, é um risco muito grande. E a questão da violência é tão naturalizada que muitas vezes ela nem percebe que está sendo vítima de agressões. Você conversa com a mulher e ela diz que é a primeira vez que é agredida. Aí você vai conversando e ela diz: 'ah, uma vez um ex-namorado me empurrou'. Ou o namorado apertava muito o braço dela, ou a proibia de sair com determinadas roupas. Tudo isso é violência. Mas a visão da própria mulher é muito deturpada. A violência é naturalizada”, afirma.
Mulheres são acolhidas na Casa de Direitos Humanos
Belo Horizonte é uma das poucas capitais do País que possui uma Casa de Direitos Humanos, local que reúne sob uma mesma estrutura delegacia de atendimento a mulheres vítimas de violência, atendimento psicológico, assistência social e jurídica a essas vítimas, além de contar com uma unidade do Instituto Médico Legal, que realiza exames de corpo de delito. No local, são atendidas cerca de mil mulheres por mês.
Diego Garzon, do Cerna, esclarece que, apesar de a maior parte dos atendimentos serem de mulheres de classes mais baixas, a violência perpassa todas as classes sociais. “As pessoas de condições sociais mais elevadas denunciam menos, pois querem manter as aparências”, justifica. Segundo ele, a maior parte dos casos são reincidências, com vítimas dependentes financeiramente do agressor.
De acordo com a delegada Marcelle Moreira Bacellar Nunes, da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, a submissão da mulher é histórica. "As mulheres estão conquistando espaço no mercado de trabalho, mas os homens têm os maiores salários, há todo um histórico de desigualdade financeira e também nas obrigações domésticas que são impostas a elas. E, às vezes, a mulher não trabalha, tem muitos filhos e aí não tem como sair desse ciclo de violência. A questão financeira pesa muito”, explica.
A pesquisadora Wânia Pasinato reforça a necessidade de mecanismos como a Casa de Direitos Humanos, com os quais a mulher vítima de violência possa contar. “Devemos continuar divulgando informações sobre a Lei Maria da Penha e buscar a criação de mais serviços como os centros de referência, um espaço seguro onde possam falar, tenham assistência psicológica e adquiram forças para denunciar a agressão à polícia. Elas precisam, além da delegacia, de um outro espaço, como a Casa de Direitos Humanos e a Casa da Mulher Brasileira, presente em 11 Estados”, defende.
Cynthia Semíramis explica que o atendimento psicológico é importante não só para a vítima, pois ele ajuda a mulher a lidar com a pressão para denunciar, além de se fortalecer para não se submeter a outros relacionamentos abusivos. "Familiares são beneficiados pelo apoio psicológico para que não pressionem a vítima a tomar atitudes prejudiciais a si mesma, além de aprenderem a não ser coniventes com a violência. E os agressores precisam de atendimento específico, inclusive previsto pela Lei Maria da Penha, para que modifiquem seu comportamento”, diz Cynthia.
A feminista reforça ainda que as mulheres que estiverem em dúvida quanto aonde ir, quiserem fazer denúncias anonimamente ou buscar informações, podem ligar para o Disque 180, que esclarece dúvidas e faz encaminhamentos para os serviços disponíveis em cada região.
Minas Gerais possui 15 Centros de Referência de Atendimento à Mulher, 51 delegacias especializadas e 18 delegacias comuns com seção para atendimento à mulher. |
Ranking – De acordo com o relatório da CPMI da Violência contra a Mulher, Minas Gerais ocupa a 19ª colocação no ranking desse tipo de crime. O Estado conta com 15 Centros de Referência de Atendimento à Mulher, 51 delegacias especializadas e 18 delegacias comuns com seção para atendimento à mulher.
A delegada da Divisão Especializada de Crimes contra a Mulher, o Idoso e o Portador de Deficiência de Belo Horizonte, Margaret de Freitas Assis Rocha, reforça que a intenção da Polícia Civil é expandir o atendimento especializado à mulher vítima de violência. “No interior ainda é pior, pois o ambiente é muito machista e as mulheres são vítimas duas vezes: do agressor e da sociedade. Estamos ministrando cursos para que haja um atendimento mais humanizado nas delegacias”, informa.
A delegada explica também que, em Minas Gerais, há nove centros de referência em saúde para onde as mulheres podem ser encaminhadas em casos de agressão e estupro, para receberem os primeiros medicamentos que previnem doenças sexualmente transmissíveis e para a coleta de material genético.
ALMG na luta contra a violência de gênero
A Comissão Especial da Violência contra a Mulher da ALMG, cujos trabalhos se deram entre março e agosto de 2012, teve, entre suas ações de destaque, audiência pública na qual recebeu membros da CPMI da Violência contra a Mulher. Na ocasião, representantes do Estado puderam fornecer aos parlamentares federais informações sobre o atendimento especializado feito em Minas.
A comissão também realizou reuniões em Pará de Minas (Região Central do Estado), Divinópolis (Centro-Oeste), Itajubá (Sul de Minas) e Ipatinga (Vale do Aço), com o objetivo de obter um panorama regional do atendimento especializado às vítimas.
Foi realizada, ainda, uma visita à Divisão Especializada de Crimes contra a Mulher de Belo Horizonte, para verificar as condições de atendimento às vítimas. Na época, a Casa de Direitos Humanos ainda não havia sido inaugurada e o local agregava também o atendimento de plantão. Além disso, durante uma das audiências públicas, a desembargadora Heloísa Combat noticiou a criação da 15ª Vara Maria da Penha no Estado.
No relatório final da comissão, foram sugeridas a implantação de uma unidade móvel da Delegacia de Atendimento às Mulheres na Região Metropolitana de Belo Horizonte e a criação do Fundo Estadual dos Direitos da Mulher.
Como consequências positivas do trabalho da comissão, a deputada Luzia Ferreira (PPS) destaca o programa de monitoramento eletrônico de agressores, iniciado neste ano. “Foi um grande avanço. As mulheres recebem dispositivos eletrônicos que emitem avisos caso seus ex-companheiros descumpram as medidas. Isso foi uma medida fundamental. Precisamos garantir que as medidas protetivas sejam cumpridas”, afirma.
“A sociedade precisa mudar”
A deputada Liza Prado (Pros) acredita que, apesar das conquistas, ainda há muito a ser feito. “O debate e a busca de informações são fundamentais para que a sociedade seja mais igualitária, com atitudes pautadas pelo respeito e pela fraternidade”.
Já a deputada Ana Maria Resende (PSDB) destaca a importância da mudança de mentalidade dentro da sociedade patriarcal brasileira. “Não devemos esperar as mulheres serem agredidas. Precisamos fazer um trabalho preventivo, buscar uma mudança cultural mais profunda da nossa sociedade. Precisamos propagar a cultura da paz e da convivência. E desde a primeira infância, educar as crianças para a igualdade de direitos”.
Por sua vez, a deputada Rosângela Reis (Pros) enfatiza a importância da proteção às mulheres vítimas de violência. “Elas precisam de apoio e proteção. O feminicídio apresenta números assustadores. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 15 mulheres são mortas por dia no Brasil, uma a cada uma hora e meia”.
De acordo com a deputada Luzia Ferreira, o debate público sobre a violência contra a mulher promovido pela ALMG será importante pois, com a presença de todos os envolvidos com a execução da Lei Maria da Penha, será feita uma avaliação da eficácia dos serviços oferecidos. A deputada Maria Tereza Lara (PT) também ressalta a importância do debate. “Queremos ouvir os órgãos públicos e os movimentos sociais que trabalham para erradicar a violência doméstica e construir, coletivamente, propostas para solucionar este grave problema”.